Ano 2472, África Austral.
Julian Akim esquecera-se da derrota iminente. Também esquecera-se do que deveria esquecer. Ele era todo sorriso para os homens e máquinas que levavam equipamentos para dentro da estrutura que mais parecia um vagão de trem, com cerca de trinta metros de comprimento.
– General! – Akim virou-se, era o doutor Foster. – Lembre-se de tudo que lhe falei. Retornará exatamente um mês antes do evento que quer testemunhar e terá um ano para se preparar.
– Eu sei, meu amigo. Não vou me esquecer.
O velho cientista deu-lhe um abraço, dizendo:
– Respeite a minha descrença tanto quanto eu respeito a tua crença, mas acho que é tudo perda de tempo.
O general sorriu e replicou:
– Seu velho e adorável ateu, confie em mim! Minha fé é a base do meu ser. – Em seguida pareceu fixar seu olhar em algum ponto acima e disse: – Ogum me dará as forças que tanto preciso neste momento.
Eles foram interrompidos por um oficial que ficou parado diante deles em posição de sentido.
– Fale, Linterbaun!
– General, todos os equipamentos requisitados estão a bordo e os homens estão aqui! – Ele disse. – Todos os que chamei?
– Sim, General! Os dezoito melhores homens do nosso exército. Na verdade, do que sobrara do seu exército.
– Chame-os! Quero vê-los!
Linterbaun bateu continência, deu meia-volta e gritou:
– Pelotão!
E entraram dezoito homens marchando em fila dupla, fazendo muito barulho com o viril pisar de suas botas. Ao passarem por Akim, pararam, giraram seus calcanhares e ficaram de frente para ele em posição de sentido. A uma ordem do Capitão, prestaram continência a Akim.
– Formidáveis! – disse Akim num entusiasmo juvenil.
O pelotão permaneceu em posição de sentido. Apesar dos reveses, o moral daqueles homens ainda era alto e estavam sentindo-se orgulhosos por estarem ali, diante de seu líder. Aguardaram num respeitoso silêncio por um discurso que certamente viria – e veio:
– Camaradas, embarcaremos numa missão da mais alta importância que, coroada de êxito, nos dará a vitória que tanto almejamos. Do nosso sucesso dependem nossa causa, nossa gente, nossa pátria e todo Exército; por isso os convoco a darem seu precioso sangue nesta missão, até mesmo com o sacrifício de nossas vidas se somente esta alternativa nos restar.
Akim reconheceu que não estava num de seus dias mais inspirados e deu o discurso por encerrado. Desceu do ‘palanque’ e cumprimentou um a um, com calorosos apertos de mão. Em seguida, ordenou que embarcassem no ‘vagão’, inclusive Linterbaun, no que foi prontamente obedecido. Quando ia também embarcar, o doutor Foster ainda disse:
– Há mais uma coisa, General.
Akim deu um sorriso cansado e pousou a mão no ombro do cientista ao indagar:
– O que foi dessa vez, meu amigo? Há o risco de cairmos no jurássico e sermos devorados por dinossauros?
O velho cientista sacudiu a cabeça e respondeu em voz baixa:
– Pode parecer mera especulação, mas trata-se de uma possibilidade mais concreta do que gostaria que fosse.
Akim tentou adivinhar, pois Foster tinha essa mania irritante de iniciar frases sem concluí-las, esperando pelo raciocínio alheio. Akim deu de ombros e pediu que ele concluísse.
– General, o deslocamento de matéria no Campo Quântico é feito com o manuseio das leis da física e suas equações são parte da matemática, portanto as viagens pelo tempo são verdades matemáticas, acessíveis a quem quer que desenvolva tais equações. Assim como eu, digo, nós descobrimos um meio de transportar matéria pelo Campo Quântico, certamente outros o fizeram – ou o farão, o que cria o risco real de que se esbarre em outros viajantes temporais. Talvez crononautas que estejam dispostos a impedi-lo.
Akim sorriu e disse:
– Claro que estou considerando isso também, meu amigo. Não é à toa que destaquei meus melhores homens para essa missão.
Trocaram um forte abraço e Akim afastou-se, indo para o ‘vagão’.
– Akim! – o velho gritou e o ditador virou-se. – Tome cuidado!
O General ergueu o punho direito e bradou:
– “Ogum-iê”!
E entrou, fechando a porta atrás dele. Foster fez um sinal e vários homens diante de painéis começaram a mexer com alavancas e botões. Uma estranha luz parecia envolver o ‘vagão’ até cobri-lo todo, num brilho ofuscante e desaparecer em seguida, para espanto dos que ficaram.
Foster aproximou-se do local onde deveria estar o ‘vagão’ e murmurou num sorriso cínico: – Não é que funciona?
***
O ‘vagão’ surgiu em meio ao platô de uma montanha, mais ou menos na metade da altura da mesma, com árvores e arbustos por toda parte. Antes de descer, Akim pediu ao Capitão Linterbaun que conferisse “quando” estavam e a resposta foi quase uma comemoração:
– Mil e oitocentos anos antes de Cristo, General.
Akim abriu um largo sorriso e respirou fundo. Contemplou a savana e por alguns instantes apagou da mente as dolorosas lembranças de uma guerra perdida, permitindo-se uma euforia provocada pela esperança.
– General – disse Linterbaun – o senhor está certo de que aqueles deuses virão?
Akim mostrou-se surpreso, pois em tantos anos de cega devoção, jamais Linterbaun ousou questionar seus propósitos, limitando-se a usar toda sua capacidade para cumprir suas determinações. – Não entendi, Linterbaun?!
O Oficial passou a língua nos lábios e escolheu cuidadosamente as palavras:
– General, nós poderíamos usar a máquina do doutor Foster para voltarmos alguns anos e mudarmos nossa sorte na guerra. A meu ver, uma atitude mais viável do que retroceder milhares de anos sem t ermos certeza do que encontraremos aqui.
Akim franziu a testa e esbravejou:
– O que deu em você, Linterbaun? Resolveu questionar meus atos logo agora? Eu sei o que estou fazendo! Voltar alguns anos é impossível, pois o tal do Salto Quântico só permite grandes hiatos no tempo e eu vim aqui buscar for ças muito mais poderosas do que nossa vã tecnologia pode opor. O reforço que levarei de volta ao nosso tempo será a arma definitiva.
Linterbaun optou por nada dizer. Se seguiu Akim até esses derradeiros momentos, por quê haveria de agir diferente logo agora, quando seu líder parecia estar com a certeza do sucesso? Por seu turno, Akim estava exultante e completou:
– Eu sei o que estou fazendo, Linterbaun. Quando voltarmos para o nosso tempo levaremos meu pai Ogum para lutar ao nosso lado.
E ele gargalhou, sob os olhares curiosos dos demais oficiais que descarregavam seus equipamentos do ‘vagão’.
– Ogum é grande! – concluiu. – A vitória será nossa!
***
Adebisi acordou todo suado no meio da noite. Levantou-se e passou entre os que também ali dormiam e foi até a porta da cabana, onde havia uma fogueira acessa e mais adiante um grupo de homens mais velhos do que ele montava guarda com suas lanças de madeira. Eles notaram sua presença mas fizeram pouco caso, pois ele ainda não era um guerreiro e nem mesmo havia se casado para reclamar qualquer coisa ou ter a importância necessária para que se importem com ele.
Era noite de lua cheia e o céu estava cheio de estrelas, mas algo de sinistro assombrava sua mente jovem e confusa com tudo aquilo que os deuses queriam que visse e soubesse.
Tudo era confuso e seu vocabulário por demais simples para definir o que está acontecendo. Ele foi-se afastando cada vez mais da aldeia até chegar num ponto onde tinha visão livre para as montanhas ao longe.
O que os deuses querem? O que há naquelas montanhas que o faz sentir tanto medo?
Ele sentia-se inseguro diante de toda aquela grandeza que lhe abria aos olhos. O escolhido dos deuses não se achava um privilegiado nem mesmo um homem especial, principalmente quando voltou seus pensamentos para os homens que montavam guarda na aldeia. Todos maiores e mais fortes do que ele.
Ao contemplar as montanhas mais uma vez, Adebisi sentiu um frio na barriga. Algo muito ruim estava por vir e os deuses não iriam ajuda-lo.
Ele fechou os olhos e lembrou do sonho em que um deus surgia entre os homens, todo coberto por palha da costa e portando um pequeno cajado de madeira, tão pequeno que era do tamanho do seu braço. O deus estava feliz e dançava diante de homens e mulheres que, em sinal de respeito, ajoelhavam-se para em seguida tocar o chão com suas cabeças.
Adebisi novamente abriu os olhos. Só via a montanha, sem deuses e sem salvação.
***
Giácomo e Roberto estavam ansiosos, até que surgiu Fraga em companhia de Tadeu e de um agente negro alto, de feições finas e aspecto jovem, vestindo o indefectível terno preto.
Por seu turno, Fraga mal se acostumava em ver o deus com trajes, digamos, ocidentais, sem aquelas argolas e outros apetrechos que lhe davam um ar demasiado africano.
– Senhores, esse é o Comissário Franco, que comandará a missão.
O deus-Franco adiantou-se e foi logo dizendo:
– Saibam que estamos indo ao ano mil e oitocentos antes de Cristo, numa missão que envolve seres extradimensionais cuja existência desafia nossas concepções e não tem paralelo entre humanos. Os detalhes estão no relató rio preparado pelo Resgate de Informações.
Tadeu ergueu o braço e indagou:
– Por que devo ir também? Missões desse porte nada têm a ver comigo. Meu negócio é o gabinete.
Fraga levou o dedo aos lábios. Inútil.
– Silêncio porra nenhuma! Eu sou historiador e não agente!
O deus-Franco virou-se para Fraga e indagou:
– Eu pedi um psicólogo!
– Eu sei – e apontou para Tadeu.
– Mas eu sou psico-historiador e não psicólogo! – protestou.
– Não é a mesma merda? – Fraga insistiu.
– Claro que não. Nada a ver!
Fraga olhou para o deus e disse:
– Culpa do Departamento de Recrutamento e Seleção que parou de contratar psicólogos e remanejou os psico-historiadores – e deu de ombros.
– Sei – disse o deus. – Contenção de despesas.
Giácomo e Alves se entreolharam. Esse tal de Franco parecia ter ascendência sobre Fraga que é um Comissário.
– Eu não serviria para nada lá – continuou Tadeu – a minha especialidade é o século 25. O deus ignorou, mas Fraga ficou surpreso. De quando seria Tadeu?
– Nasci em 1975, mas fui formado aqui mesmo, na Empresa, por isso pude especializar-me no século 25, o século neutro.
Vivendo e aprendendo. Fraga sabia dos relatórios e documentários sobre o século 25 e suas tragédias, mas não sabia que havia um psico-historiador especializado naqueles tempos tão misteriosos.
Na Intempol, nenhum acaso é por acaso.
– Teremos um aliado que nos acompanhará. O nome dele é Francisco Ferreiro, africano que chegou ao Brasil em fins do século 19 e lá se estabeleceu, fundando um terreiro de Candomblé , a Casa Branca do Engenho Velho, no Rio de Janeiro.
Franco parou de falar porque Fraga deu-lhe um tapa no ombro e disse:
– Por acaso foi para achar esse sujeito que enviamos o Sobrinho para o século 20?
– Sim – respondeu o deus.
– O que houve?
– Um pequeno engano – começou Fraga – o computador pirou de novo e trocou alguns dados essenciais da missão. Em vez de ser enviado para o começo do século 20, ele foi parar em 1986, num terreiro de Umbanda, onde destratou um pai-de-santo.
– E daí?
– E daí que o pai-de-santo não gostou do que ouviu e o resultado foi esse que vou te mostrar:
Ele fez um gesto e dois seguranças trouxeram Sobrinho, que vestia uma saia vermelha e trazia uma rosa presa ao lado da orelha:
– Ría-rá-rá-rá! Cadê o marafo? – Sua voz soava como a de uma mulher bêbada.
Os outros olhavam espantados. O tempo todo Sobrinho mantinha os olhos fechados e requebrava levemente os quadris. Nem parecia ele.
– O que significa isso? – O deus perguntou.
Sobrinho (?) virou-se para o deus e respondeu:
– Eu sou Pomba-gira Sete-rosas e quero marafo! – em seguida olhou de cima a baixo para Giácomo e disse: – Môcho bunito!
– Sai prá lá, assombração! – disse Giácomo, benzendo-se.
Roberto Alves não perdeu a piada: – É mole? E quem vai botar a Pomba-gira para subir?
Os seguranças levaram Sobrinho-Pomba embora e em seguida entrou um homem negro, trajando um terno de linho branco e aparentando cinqüenta anos. Ele exibia um olhar desconfiado e parecia pouco à vontade.
– Senhor Francisco Ferreiro? – Fraga perguntou.
– Sou eu – o sotaque soava como o de um Preto-velho.
– Sabe por que está aqui?
Ferreiro fitou Fraga nos olhos e respondeu:
– Vosmecê não precisa contar tudo de novo, porque seu amigo Valladão já me contou tudinho.
O deus adiantou-se e foi até Ferreiro, cumprimentando-o com um caloroso aperto de mãos. – Senhor Francisco Ferreiro, é um prazer imenso para nós estarmos na presença do Babalossain. Bem-vindo!
Ferreiro sorriu e devolveu um ‘muito obrigado’, enquanto seu olhar ainda transmitia uma certa incredulidade quanto ao que ia acontecer.
– Acho que estão todos aqui – disse Fraga, voltando-se para o deus.
– Estão todos aqui – disse o deus.
Fraga entregou a Ferreiro uma caixa e um cartão, perguntando a seguir:
– Já sabe usar?
– Acho que sei, sim – respondeu Ferreiro, olhando para ambos – o comissário Valladão ficou muito tempo me explicando.
Todos digitaram alguns números na caixa, menos Ferreiro, pois foi Fraga quem digitou-os para ele, afastando-se um pouco e dizendo:
– Quando Franco – apontou para o deus – ordenar, é só passar o cartão pela fenda. Sabe como é?
– Sei sim – respondeu Ferreiro.
O deus piscou para Fraga e disse:
– Senhores, é agora!
Todos passaram os cartões e sumiram diante dos acostumados olhos de Fraga, que murmurou um ‘boa sorte’ assim que se foram.
***
O deus, Tadeu, Giácomo, Roberto e Ferreiro surgiram próximos a uma árvore grande às margens de um rio. Ao longe uma montanha dominava a paisagem e o canto dos pássaros fazia-se ouvir.
– Chegamos! – disse o deus, olhando ao redor.
Ferreiro agachou-se na margem e apanhou um pouco de água com a mão em concha. Disse:
– Mãe África, tô de volta!
– Sabe disso pelo gosto da água do rio? – Indagou Tadeu, surpreso.
– Não, mizinfio. O Comissário Valladão me contou que eu viria para cá.
O deus apontou seu aparelho para montanha e viu o alarme disparar.
– Akim já chegou! Temos pouco tempo!
Giácomo sussurrou no ouvido de Roberto: – Será que as tribos dessa época têm aquela estranha tradição de oferecer as mulheres da aldeia para os viajantes?
– Sei lá! Acho que têm!
– Beleza! – comemorou Giácomo.
O grupo começou a caminhar, seguindo o deus e o curso do rio.
Caminhando com eles, Ferreiro olhou para o chão e murmurou:
– “Ogum mo pê”!
E o grupo prosseguiu.
Continua...
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