domingo, 3 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 1ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

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Ano 2472, em algum lugar na África Austral.


Quando se sabe que chegou o fim? Para um militar, é quando se descobre que a guerra está perdida.

O General Julian Akim estava na segurança do seu bunker onde aguardava a última esperança para sua causa ou para o seu ego ferido. Atrás da porta de metal, um gênio da física quântica, o último ganhador do Prêmio Nobel de Física da derradeira premiação de 2460, trabalhava num ritmo frenético para provar sua teoria na prática.

“Ele não apenas tem de estar certo,” pensava Akim, “mas precisa estar certo”.
– General! – Um oficial negro, bem alto, com as divisas douradas reluzindo nos ombros do uniforme verde-escuro, entrou sem se anunciar.
– O que foi, Linterbaun?
O Oficial ficou em posição de sentido e anunciou solenemente: – General Akim, o doutor Willian Foster conseguiu!
Akim mal podia acreditar no que ouvia. Enfim a esperança derradeira se concretizara. Ele ainda poderia vencer.
O Generalíssimo se levantou, derrubando as garrafas de whisky que esvaziara há pouco. Correu com a alegria de um colegial em fim de turno, seguido de perto por Linterbaun, até a porta de ferro atrás da qual havia um grande laboratório, repleto de homens de jalecos brancos. Todos ficaram em posição de sentido, exceto um velho negro com cabelos brancos e ar cansado. Foi a ele que Akim dirigiu a palavra.
– Doutor Foster!
O velho sorriu e assentiu, apontando para uma estrutura de aço na forma de um vagão de trem.
– Sim, meu amigo, eu consegui. Nós conseguimos! Agora é possível retornar no tempo.
Akim deu um forte abraço em Foster. Há duas décadas, quando ele ainda era um jovem oficial do exército da Confederação da África Austral em visita ao Brasil, conheceu este notável cientista norte-americano que abandonou seu país para lutar pela causa africana no longo conflito mundial. Os dois logo se tornaram amigos, a despeito da diferença de idade e de algumas desavenças políticas. Enquanto Foster prosseguia em silêncio com suas pesquisas, Akim conspirava para se tornar o ditador do que ele convencionou chamar de ‘Nação Africana’, um grande e grave equívoco.
Depois de muitas conspirações, traições, intrigas, espionagem, chantagem e suborno, Akim emergiu como o Líder Supremo da Confederação da África Austral, a despeito da guerra que devastava o mundo. Sem escrúpulos, envolveu ainda mais seu país naquele conflito genocida, contrariando a todos que viam nele uma esperança para a paz.
Agora tudo estava perdido: cidades, satélites, barragens, pontes, usinas, plantações e indústrias. Em alguns lugares a civilização simplesmente desapareceu e áreas antes superpovoadas eram cenários abandonados. O pouco que restou estava espalhado em bases subterrâneas em meio às florestas e nas montanhas, numa heróica e inútil resistência.
Akim acariciou a estrutura de aço, virou-se para os cientistas e militares que ali estavam e disse:
– Quero que contatem as tropas mais próximas! – e, depois de procurar por alguém em meio àquela pequena multidão, complementou: – Linterbaun! Forme uma força-tarefa para uma missão da mais alta importância!
O oficial bateu continência e saiu dali a passos largos. Akim novamente virou-se para a estrutura e murmurou: – Obrigado, Ogum! “Adupé” Ogum “bába mi”!

***

Costa da Guiné, 1800 a. C.


Adebisi tinha apenas quinze anos. Em outra época e em outro lugar, seria quase uma criança, mas aqui e agora já era um homem – e dele esperavam que agisse como tal.
O rapaz saiu da cabana da sua família em pleno alvorecer com sua lança de ponta de pedra e a faca de madeira presa à cintura. Caminhou em silêncio na direção dos primeiros raios de sol e diminuiu o passo somente quando deparou-se com Iawana, sua futura primeira esposa. Os outros da tribo apenas olhavam-no em silêncio.
Adentrou a mata sozinho, ciente dos perigos, em busca da novidade que somente um velho seria capaz de lhe contar: uma mensagem dos deuses. E por uma pequena trilha ele foi até uma cabana coberta de palha, em frente a restos de uma fogueira e com potes de barro na porta. Havia mais pessoas por perto, mas se afastaram ao vê-lo, abrindo caminho até a cabana, onde um homem tão negro quanto ele, mas de cabelos e barba brancos, foi logo dizendo: – Então você veio. Exatamente como previsto!

Foi convidado a entrar. Sentou-se diante do velho numa larga esteira de palha trançada e entre eles havia um pequeno tablado de madeira sobre o qual via-se pequenos pedaços de fava ligados por um fio.
– Os deuses disseram que eu viria? – o rapaz não continha mais a curiosidade, a despeito do velho ter iniciado uma prece.
– É Orunmilá quem avisa – disse o velho, jogando as peças de fava sobre o tablado. Prosseguiu: – Os deuses antes distantes vão ficar mais perto de nós. Eles escolheram você para ser o primeiro “élégun”.
– Então eu não serei confirmado como “awí-fakã”?’

O Babalaô sacudiu de leve a cabeça e respondeu num sorriso:
– Os deuses te reservam algo mais grandioso. Você será o primeiro de todos os “élégun”, síntese de deus e homem a partilhar a divindade e a mortalidade com todas as virtudes e vicissitudes que ambas nos presenteiam.
O rapaz nem se preocupou em perguntar o que era isso. Queria saber porque ele e não outro foi o escolhido.
– Com o que você sonhou hoje, Adebisi?
A pergunta do velho o surpreendeu. Por quê o Babalaô quer saber sobre seus sonhos? Ou será que eram os deuses que queriam saber?
O rapaz fechou os olhos e começou a narrar, tomando o cuidado para lembrar-se de todos os detalhes: – Um viajante coberto por palha da costa parou diante de minha casa e entregou-me um pequeno cajado. Depois era eu quem estava totalmente coberto pela palha, passando pela aldeia enquanto todos se ajoelhavam e abaixavam as cabeças.
O velho franziu a testa e em seguida indagou: – Todos? – Sim, Babalaô, todos – o rapaz abriu os olhos – inclusive você.
O Babalaô recolheu as peças sobre o tablado e novamente as jogou, demorando desta vez mais tempo para falar, como se estivesse diante de um enigma.
– Você sonhou com um deus. O primeiro que virá entre os homens sem ser um homem e que prenuncia uma multidão de homens que se farão deuses sem jamais serem deuses. Não era para você que todos se ajoelhavam, mas para o deus.
Adebisi estava confuso. Afinal, o que os deuses queriam dele? Mais oferendas?
– O que os deuses esperam que eu faça, Babalaô? Por que eles apontavam para mim e me chamavam de “abian” (ignorante)?
O velho meneou a cabeça, consultando mais uma vez as peças.
– Tudo. Pelas tuas mãos virá o primeiro deus, que não é o primeiro dos deuses, mas que virá antes dos demais. Depois disso, você deverá ensinar o que lhe for indicado ensinar, para que outros deuses possam vir. Até lá você é só um “abian”.
– Ensinar? Como ensinar o que não aprendi? Como fazer a vontade dos deuses se nem sei o quê fazer e para qual deus? – disse o rapaz em pânico – Vim em busca de uma resposta!
O velho sorriu e rebateu: – Saiba que você não viverá para saber a resposta. Se não fosse assim não o chamariam de “abian”.
Adebisi saiu dali sem esperar o Babalaô dispensá-lo, trêmulo e confuso com a responsabilidade que lhe caíra sobre os ombros.


Reabilitados

Fraga explicava aos hologramas dos Comissários do setor de Reabilitação as instruções que recebera diretamente do Nível 6 e não escondia a insatisfação em lidar com meias-verdades.
Curiosamente, os Comissários pareciam compreender que Fraga não estava convicto daquilo que defendia. Mantinham expressões serenas e assentiam por piedade.
– Senhores, essas são as determinações. Os nomes que lhes passei devem ser reabilitados para uma missão que ainda não foi designada porque o motivo ainda não aconteceu Os ‘holos’ esboçaram sorrisos.
– Liberação autorizada – responderam em uníssono. E os hologramas se desfizeram.
Fraga perguntou-se do motivo de usarem a palavra ‘autorizada’ uma vez que uma determinação dos ‘deuses’ era uma ordem incontestável.
Dois ex-agentes deveriam ser reabilitados para uma nova missão, sendo que um estava preso e o outro curtia sua aposentadoria precoce e compulsória numa ilha do Pacífico. Isso não era tudo, pois um africano a ser recrutado do início do século 20 também deveria seguir na missão. O Ponto de Divergência teve como foco o século 25, estendendo-se até cerca de mil e oitocentos anos antes de Cristo. Isso queria dizer que mais um louco inventou um modo de viajar pelo tempo para bagunçar com o CET e azucrinar a vida de Fraga.
De qualquer maneira acabou a moleza para os dois. Não era só ele quem iria tomar remédios contra o stress e ter crises de impotência.
Horas depois, já em sua sala, Fraga despachou o agente Sobrinho para localizar e trazer o tal brasileiro até a Intempol enquanto aguardava pelo relatório dos psicólogos – mera formalidade já que era tudo uma decisão direta do Nível 6.

***

Tadeu Torres não era psicólogo, mas sim psico-historiador e não estaria ali fazendo de conta que se interessava pelo estado psicológico daqueles dois panacas se não fossem os malditos cortes orçamentários na Empresa. Os idiotas que o designaram para o setor de Reabilitação apenas alegaram que psico-historiador e psicólogo têm ‘psico’, portanto deviam ser parecidos.
Tadeu virou-se para o primeiro – um sujeito simpático, de cabelos e barba pretos – que para a maioria das respostas repetia a frase “é tudo uma questão de ponto de vista”.
Não foi à toa que acabou preso, Afinal, foi a uma LTA para salvar um sujeito que talvez fosse seu avô alternativo. Isso teve que ser feito porque ele havia enlouquecido – diziam – ao vislumbrar que seus análogos das Linhas Temporais Alternativas tinham tido uma vida com a qual ele sempre sonhou, mas que, por razões óbvias, lhe foi negada. Aliás, o análogo que ele prendeu não era análogo dele, mas de seu hipotético avô.
Confuso, não? Tadeu sabia que isso era pinto perto do que já vira.
– Por mais motivos que tivesse, agente Roberto Alves, não se pode sair por aí criando LTAs à vontade.
Ele deu de ombros e disse: – é complicado lidar com o tempo e saber que nunca poderemos evitar qualquer mal sob o argumento de que tudo foi necessário para chegarmos aonde estamos.
– Mas isso faz parte do teu treinamento. Esse tipo de conduta é testada ao máximo antes do Aspirante ser revestido na função de Agente. Precisamos manter a História intacta.
– Agimos como se tudo fosse bom e as tragédias de ontem tivessem conduzido a humanidade para o paraí so do agora. Nos meus tempos de Aspirante eu sequer vislumbrava que houvesse falhas na Empresa ou que pudesse tentar corrigir as coisas. De repente veio-me uma luz e pensei: por quê não tentar?
Dialogar? Perda de tempo. Recebeu ordens para liberar o sujeito para uma missão num passado remoto (como se alguém pudesse atribuir alguma distância na escala do tempo para quem sempre usa o tempo como um lugar próximo e de fácil acesso). Tadeu carimbou um “OK” na ficha dele e passou para o próximo, um sujeito alto, moreno e bem-apessoado.
– Senhor Giácomo – Tadeu quase bocejou – bem-vindo de volta ao serviço ativo. O seu problema está relacionado com a possível conquista amorosa da atriz Marilyn Monroe...
– Alto lá! – Giácomo exaltou-se – Eu conquistei mesmo! Me ferrei, mas conquistei.
Tadeu revisou as anotações e replicou: – Se houve tal conquista, ela foi extirpada do Contínuo Espaço Temporal. De qualquer maneira, ainda pairam suspeitas sobre sua conduta, digamos, leviana.
Giácomo franziu a testa e indagou: – Como assim?
– Qual era seu próximo alvo de conquista amorosa intertemporal?
Giácomo sacudiu a cabeça e disse: – Não posso nem vou dizer.
Tadeu cruzou os braços e especulou: – Aposto como era a imperatriz romana Messalina.
– Não vou dizer.
– Já sei! Era Lucrécia Bórgia.
– Desista!
– Neste caso, sobrou a czarina Catarina II.
– Não vou dizer! – teimou Giácomo – Se depende da minha resposta para me reabilitar, então mande-me de volta para Pitcairn.
Tadeu soltou um muxoxo, carimbou outro “OK” e dispensou os dois. Lá fora, nos corredores da Empresa, eles comentaram:
– Será que fomos mesmo reabilitados, Giácomo?
– Isso eu não sei – e abriu um sorriso – mas ganhei três dicas!

***

Foi com um muxoxo que Fraga acompanhou a entrevista dos dois pelo vídeo. Giácomo decididamente não tem jeito e o outro é pouco confiável, o que significava um abacaxi maior do que o esperado.
Desligou o vídeo, vestiu seu paletó e foi até o andar dos ‘deuses’, onde poucos tinham acesso. Lá chegando, para sua surpresa, havia apenas um jovem negro esguio e alto, sentado numa mesa oval com lugares vazios que deveriam estar ocupados pelos outros ‘deuses’. Fraga tentou agir com naturalidade, esperando que o jovem o convidasse a sentar.
– Aqui estamos novamente, Comissário Fraga – disse o rapaz.
Qual seria o nome daquele deus? Falavam como se fossem velhos camaradas mas na verdade eram distantes demais para qualquer informalidade.
– Meu nome? É tão importante assim? – o rapaz parecia troçar.
Fraga preferiu o silêncio. Estava diante de um homem que nem se dava ao trabalho de esperar pelas perguntas.
– Você não vai, Fraga, e isso já está decidido.
O Comissário respirou aliviado, pois julgava-se velho para novas aventuras desse tipo.
– Este é o nosso alvo – disse o deus, apertando um botão e fazendo surgir sobre a mesa um holograma de um homem negro, aparentando meia-idade.
– O nome dele é Julian Akim. É do século 25, a Zona Neutra, e pode afetar toda Realidade.
Fraga prendeu o riso. Afinal, toda nova missão deveria parecer a mais importante ou a mais perigosa. Uma ponta de insegurança percorreu-lhe por vislumbrar uma missão na Zona Neutra Temporal.
– Assim esperamos, Fraga – o deus continuou com sua irritante mania de responder a perguntas ainda não formuladas. – Preferimos ir ao século 25, conversar amigavelmente com nossos oponentes e resolvermos a questão antes que ela se estenda a nossa jurisdição.
“A jurisdição da Intempol: do início dos tempos até o século 25!”
– Nessa negociação você irá comigo.
Fraga quase saltou da cadeira. Um deus atuando pessoalmente? Talvez o alarme fosse mesmo real e a emergência, a maior de todas.
– O problema dessa emergência, Comissário Fraga, é que, se fracassarmos, correremos o risco de confrontar seres que estão além da nossa compreensão e fora do alcance da nossa tecnologia incipiente.
O rapaz ficou de pé, abriu um sorriso e indagou: – Preparado?
Mas já? Sem um plano, nem mesmo uma tática? E a Caixa?
Fraga não teve tempo para pensar em mais nada. Sentiu uma vertigem estranha, diferente daquelas que sentiu nas primeiras vezes em que viajou pelo tempo. Ao abrir os olhos, ele e o deus estavam lado a lado sobre os escombros de uma cidade em ruínas.
Que cidade devia ter sido aquela? No centro daquela devastação havia uma cratera com cerca de um quilômetro de diâmetro, rodeada por escombros e prédios que retrocederam aos esqueletos, determinando bem o alcance do impacto da destruição.
Tudo que se ouvia era o vento. Nem pássaros, nem vozes, nada. A palavra que Fraga escolheu foi desolação, enquanto ignorava os ecos dos mortos, maldizendo-se pelos sapatos que usava. Devia estar calçando botas especiais. Já o deus temporal caminhava com desenvoltura sobre os escombros. Para onde estariam indo?
– A nenhum lugar especificamente – disse o deus. – Viemos tentar um acordo com os Anos Interditos.
– O tal Julian Akim está por perto? – quis saber Fraga.
– Não. Só começaremos a procurar por Akim se a negociação for bem sucedida. Caso contrário, teremos que voltar.
O deus parou de andar bem na borda da cratera.
– Eles já estão aqui.
Fraga sacou sua Terminator, mas bastou um olhar do deus para guardá-la novamente no coldre sob o paletó.
A espera não levou mais do que alguns segundos. Logo dois homens vestidos de preto e usando óculos escuros surgiram diante deles: um negro e um branco idoso. Este voltou-se para o deus e foi logo dizendo:
– Isto é uma violação do Tratado. Devem voltar agora!
O deus cruzou os braços e rebateu:
– Viemos em paz para tratarmos de um assunto da máxima urgência que requer sua cooperação.
Os dois homens se entreolharam e o idoso foi taxativo:
– Requerem a nossa cooperação?
– Sim – o deus falou com humildade.
– Optamos pelo status quo. Não devem agir nesta Zona Temporal sob pena de iniciar uma guerra – disse o idoso.
– Se não detivermos Julian Akim antes que ele volte no tempo, teremos um problema muito maior do que uma guerra.
– Eu duvido! – interveio o negro. – Se ele voltar no tempo, vocês estarão com um problema, pois o passado deste século é sua jurisdição e não nossa.
– Temos que deter Akim antes que ele traga para este tempo forças que nenhum de nós poderá ousar confrontar – insistiu o deus.
– Então aguarde que ele volte no tempo e façam o que acharem melhor, mas aqui é a Zona Neutra e vamos mantê-la assim.
Fraga irritava-se com a prepotência deles. Tinha vontade de dizer ao deus “manda esses caras para a puta que o pariu e vamos caçar o tal Akim antes que seja tarde demais”. Mas ‘antes’e ‘tarde’ eram conceitos totalmente vazios naquela situação.
– E se eu requerer a mediação do Nível Sete? – Essa proposta do deus surpreendeu Fraga. Então há mesmo um Nível Sete?
Os homens dos Anos Interditos sorriram e o idoso disse: – O que convencionamos chamar de ‘Nível Sete’ serve apenas para disciplinar as relações e mediar conflitos entre as Linhas Temporais, mas em todas existe a proibição pós-século 25 e isso está muito acima deles. A Zona Neutra é uma cláusula pétrea no Tratado e não aceitaremos emendas, alterações ou exceções. O deus pareceu desistir. Ficou ali, parado, olhando-os como quem decide se haverá briga ou não. Por fim, disse:
– Cumpra-se o Tratado.
O idoso e o negro desapareceram. Em seguida, Fraga viu-se de volta àquela sala com o deus. – Fracassei! – Esbravejou o deus, socando a mesa.
Fraga nada tinha para dizer, mas lembrou-se de que o deus já havia se escalado para missão, portanto sabia que a negociação fracassaria.
– Não sabemos de tudo, Fraga. Eu tinha esperanças de agir em cooperação com os Anos Interditos, mas eles são inflexíveis e nos temem tanto que a qualquer movimento nosso eles ameaçam com uma guerra.
O deus sentou-se na cadeira, desolado. Fraga indagou:
– Eles se arriscariam numa guerra?
O deus soltou um muxoxo e respondeu:
– Com certeza! E nas simulações que fizemos o resultado de uma guerra seria um desastre de proporções apocalípticas, o fim.
– E eles também sabem disso, não sabem?
– Sim, Fraga. Eles sabem. Todavia, os Anos Interditos são povoados por homens diferentes, com outros valores.
– Como assim?
– Eles acreditam religiosamente que se nos fizerem qualquer concessão estarão se condenando ao desaparecimento.
O deus estava transtornado, mas para Fraga seria interessante ver um Nível 6 em ação.
Mas que ameaça seria essa? O que de tão grave pode acontecer (ou não acontecer) no passado que invoque a presença de um Nível 6?
– Na costa da Guiné – começou – meus ancestrais iniciaram uma religião que existe até nossos dias. Mas antes, quando o conhecimento era o único elo entre homens e deuses, as divindades que eles veneravam decidiram se aproximar. E num dia, cerca de mil e oitocentos anos antes de Cristo, o primeiro Orixá veio a Terra, na forma do primeiro “élégun”, iniciando uma nova Era.
Fraga acendeu um cigarro e sorriu. O deus não gostou e fitou-o sério.
– A ignorância e o preconceito andam juntos, Fraga. Não estou falando de nós a quem muitos consideram deuses, mas aos que são de fato divindades, seres acima de nós e abaixo do Deus Supremo e que levam uma existê ncia distante da nossa compreensão. Essas divindades são chamadas de Orixás.
Será que a missão teria lugar num terreiro, com muito charuto, atabaques e imagens de santos católicos?
– Nada disso! Apague essa impressão equivocada. Falo de mil e oitocentos anos antes de Cristo, quando os Orixás ainda eram Imóles, ou seja, divindades que não eram formalmente adoradas pelo homem. Nessa época, o culto que havia naquela região era o de Ifá, com seus sacerdotes, os Babalaôs, no centro da vida religiosa daquele povo. Ainda não existiam Babalorixás, Ialorixás, Babalossains, Ogãs e muitos outros.
E o que diabos tem isso a ver com a missão? – Tudo, Fraga! Mil e oitocentos anos antes de Cristo o primeiro “élégun” estava para ser confirmado e por causa dessa iniciação houve uma cisão entre as divindades: Quatrocentos Imóles queriam se aproximar do Homem e transmitir seus conhecimentos e os duzentos restantes abominavam tal idéia. Como os primeiros fossem maioria, os segundos se rebelaram e quiseram destruir o mundo para que não restasse um só humano vivo para receber os conhecimentos dos Imóles. Segundo as lendas, os Imóles rebeldes foram destruídos por Olodumare, a exceção de um: o futuro Orixá Ogum.
Quatrocentos de um lado e duzentos do outro? Dois terços contra um terço? Da mesma forma – e pelos mesmos motivos – que a rebelião bíblica dos anjos?
– Semelhanças existem, Fraga. Deveria ter te dado algum livro de Pierre Verger antes, mas agora é tarde. Independente da quantidade envolvida, aquilo foi mesmo uma guerra.
– E essa guerra teve um final feliz?
– Os Imóles vitoriosos se tornaram os Orixás e Ogum tornou-se um deles. Não me pergunte o que realmente aconteceu naqueles dias tão decisivos, pois fazem parte da nossa Zona de Segurança, que são aquelas épocas da História que devemos evitar o máximo de intromissão a fim de afastarmos qualquer risco de uma LT caótica, onde a existência da raça humana seja menos do que uma hipótese.
– E o que mais? O que a Intempol tem a ver com isso?
– É lá que Julian Akim está. Ele é um iniciado no Candomblé, um ogã de Ogum. Akim é um homem desesperado e pretende encontrar Ogum quando este ainda não era um Orixá e estava entre os que pretendiam destruir o mundo. Não sabemos o que ele pedirá ao Ogum-Imóle, mas certamente ele travará um contato com seu ‘pai’ e as conseqüências serão imprevisíveis. Devemos impedir isso a todo custo.
O deus fez um rápido movimento e suas roupas mudaram. Do abadá para o formal terno-e-gravata dos agentes e também estava sem as jóias, argolas e outros adornos.
– Bem, Fraga. Pode me chamar de Agente Joaquim Franco, ao menos enquanto durar a missão.
Fraga disse um debochado ‘muito prazer’ e apagou o cigarro.
– Mãos à obra.

Continua...

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