terça-feira, 26 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 6ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Pelos deuses

Graças a Ferreiro, os agentes da Intempol foram bem recebidos na aldeia. Tratados como hóspedes bemvindos, eram motivo de curiosidade para todos, principalmente para as crianças. Mas tratava-se de um acontecimento especial porque um dos mais importantes “Babalossains” do Candomblé estava frente a frente com um dos mais antigos Babalaôs da história.

– Você nem imagina o quanto me sinto honrado em estar diante do Babalaô – disse Ferreiro como se fosse um veterano da Empresa e não um marinheiro de primeira viajem. Mas o tradutor era uma complicação: teimava em verter ‘Babalaô’ para ‘pai dos segredos’.

O Babalaô não parecia surpreso, apesar de Ferreiro dizer que vieram do futuro. Agia com naturalidade
irritante. Talvez simplesmente não acreditasse ou não compreendeu o que Ferreiro lhe dizia.

– Meu nome é ainda lembrado no futuro? – Indagou o sacerdote, deixando escapar uma ponta de orgulho narcisista.

– Infelizmente não – respondeu Ferreiro, demonstrando um constrangimento que não passou despercebido.

– Então muito se perdeu, não?

– Sim, Babalaô. E temo que muito ainda se perderá. Em minha época já não se conhece o nome de muitos Orixás e talvez saibam menos sobre um número ainda menor.

– Orixás? – O Babalaô indagava como se quisesse uma confirmação.

– Como serão conhecidos os “Irún-imóles” quando a guerra acabar.

– Serão? Ainda tem tanta certeza sobre o incerto?

– Para ser sincero – Ferreiro estava triste e suas palavras eram pausadas e embargadas – estou com medo. Quero acreditar que Orunmilá e Olodumare não abandonarão os homens e deixarão o futuro existir. Quando penso que posso ter vindo de lugar nenhum, sinto-me como uma farsa diante da divindade.

– Acha que podemos fazer algo? – As palavras do Babalaô tinham o tom do desafio.

Ferreiro ergueu a cabeça e retomou o porte altivo que tinha ao chegar na aldeia. Olhou nos olhos do velho e disse como se aceitasse o desafio:

– Faremos o que sabemos fazer – depois apontou para Franco, ainda deitado na esteira – com ou sem ele.

– Será que poderemos salvar o futuro?

– Nós? Talvez. A palavra final será dos deuses, mas não creio que se interessarão em ajudar quem nada faz por si.

– Então vamos lutar? – O Babalaô falava com o entusiasmo dos jovens antes da primeira caçada.

– Com as armas que temos: nossos conhecimentos. Tenho o saber das plantas sagradas ensinado aos homens pelo Orixá Ossãin e vou usar o que sei para ajudar o “élégun”, quer gostem os “Igbá-imóles” ou não.

– Orunmilá me mostra o futuro, – disse o Babalaô – mas também desvenda o passado e o presente. Por Ifá se conhece os segredos e nenhum pode ser maior do que o que ainda não aconteceu.

– Mas vai acontecer! – Chico Ferreiro teimou, cada vez com menos convicção e parecia prestes a desistir, afinal, o homem que antes lhes parecia tão poderoso estava prostrado na esteira. – Se não desistirmos em entregar nosso destino aos deuses e escolhermos o nosso caminho, eles nos honrarão com seu respeito por nós e uma Era fantástica começará.

– Então vamos começar a fazer o que tem que ser feito, afinal Ifá não previu o fim do mundo, apenas disse que nada estava definido.

Havia muito o que conversar e num canto, em silêncio, Franco se recuperava e tentava entender o que vira. Temia que Babalaô, sem a supertecnologia da Intempol, pudesse ser o único com possibilidades de ganhar a barganha.


* * *

Julian Akim preferia contemplar a planície logo abaixo a supervisionar o trabalho. Seus homens e máquinas seguiam num ritmo frenético. Somente deixou de lado a visão panorâmica quando Linterbaun se aproximou:

– General, trouxemos todas as folhas, grãos e bebidas que o senhor mandou, mas teremos dificuldade e conseguir o tal cachorro.

– Não, não terão. – Akim sentenciou. – Há cães em outra aldeia.

Linterbaun sorriu e indagou: – Então temos carta branca para agir?

– Sim, desde que fiquem bem longe daquela aldeia onde fomos. É lá que está o que procuro.

Linterbaun prestou continência, selecionou três homens e partiu. Akim voltou a admirar a planície que se estendia abaixo.

* * *

Em uma aldeia próxima de uma pequena cachoeira, dois guerreiros poliam suas lanças de madeira e sorriam apontando para o grupo de caçadores que esfolava um leopardo. O animal, muito arisco, deu um trabalho danado àqueles jovens caçadores, mas no fim triunfaram e a pele do animal serviria de adorno ao líder da caçada.

De repente, quatro homens trajando estranhas vestes que se apropriavam da cor dos objetos próximos,
surgiram como se saídos do nada, portando estranhas armas e separados uns dos outros por cerca de dois metros. Os guerreiros logo os reconheceram: eram os tais homens que traziam presentes em troca da submissão da aldeia. Eles se lembraram que seus anciãos não aceitaram a submissão e os mandaram embora – agora, sem serem convidados, estavam ali com olhares ameaçadores.

Linterbaun fez um sinal com o braço esquerdo e o grupo se aproximou da aldeia. Logo, os guerreiros deram um grito de alarme e surgiram mais uns trinta homens portando lanças de madeira, aos quais se juntaram os jovens caçadores. Antes que pudessem dizer qualquer coisa, viram riscos luminosos saírem das armas dos homens estranhos e muitos caíram em dor e agonia, morrerendo em seguida.

O líder da caçada, bravo como se esperava que fosse, ergueu o braço e arremessou a lança em direção a Linterbaun. A lança teria perfurado o ventre se o invasor não estivesse bem protegido pela a roupa especial que aparou a lança. Linterbaun fitou o agressor e sorriu, principalmente quando o caçador, longe de se dar por vencido, abaixou-se a apanhou uma pedra. Quando levantou, um disparo arrancou-lhe o braço. Ele gritou de dor e espanto, mas abaixou-se novamente para, com o braço restante, apanhar outra pedra. Linterbaun mirou e despedaçou-lhe a cabeça.

Os homens de Akim foram abrindo caminho pisando sobre os corpos despedaçados de homens, mulheres e crianças. Apenas algumas sobreviventes se agarraram aos filhos que lhes sobraram e adentraram pela mata, fugindo da morte. Fora elas, mais ninguém escapou.

Num canto, presos por cordas, estavam dois cachorros que latiam desesperados diante da destruição que se abateu sobre seus falecidos donos. Um dos soldados sorriu e apontou para os animais, depois todos ajustaram as armas e dispararam bombas incendiárias sobre as cabanas. Em breve restavam apenas cinzas.


* * *

Os anciãos chegaram esbaforidos na cabana do Babalaô e relataram que uma aldeia próxima dali foi
destruída. Seus habitantes foram mortos pelos homens estranhos que lhes haviam dado presentes com exceção de algumas mulheres que fugiram pela mata agarradas aos seus filhos pequenos e que narraram a história. Segundo elas, apenas quatro homens exterminaram quase trezentas pessoas com armas que reproduziam o som do trovão, provocando fogo e morte. Pareciam interessados somente nos cães e levaram dois com eles.

– Serão esses os verdadeiros deuses? – Indagaram os anciãos que acorreram ao Babalaô – Orunmilá respondeu que não – disse o Babalaô.

– Então quem mais realizaria tais proezas? – teimou um velho.

– São só homens como nós, mas homens maus. Nossos convidados vieram até aqui para nos proteger deles – o Babalaô apontou para Franco e os anciãos não pareciam convencidos.

– Foi você quem nos disse que Orunmilá previu a fúria dos deuses que se sentem ameaçados e que eles têm um poder de destruição nunca visto, como aqueles homens que destruíram a aldeia.

O Babalaô consultou Ifá e repetiu:

– Não são deuses, são homens maus.

– E de onde vem aquele poder?

– Dos homens. Assim como um dia aprendemos a fazer fogo, construir nossas casas e conhecemos Ifá, eles só sabem o que lhes ensinaram outros homens que vieram antes.

Os anciãos não entenderam o que quis dizer o Babalaô. Nem poderiam, pois governavam uma aldeia de caçadores, que transmitiam sua experiência de vida aos mais moços. Não são eram sábios nem sacerdotes, tampouco devotaram suas vidas ao conhecimento ou a divagação. Esse tipo de governante ainda não surgiu naquelas paragens do mundo.

Eles se retiraram respeitosamente. Um Babalaô goza do mesmo prestígio entre os iorubás que gozaria um Bispo católico na Idade Média.

– Estão com medo – reparou Ferreiro.

– Quem não estaria?

– Orunmilá disse que só teremos chances de salvar o mundo se não tivermos medo e que a salvação não vem de fora – o Babalaô olhou para Franco – mas sim de nossas cabeças.

Adebisi notou que era para ele a quem o Babalaô dirigia aquelas palavras, mas em seguida sentiu-se
sonolento e fechou os olhos. Quando abriu, estava em algum lugar onde via o homem com o corpo todo coberto por palha da costa dançando. Por onde pisava caíam búzios que cobriam todo chão e faziam um trilha que Adebisi seguia, pois adorava ver todos aqueles búzios ao alcance das mãos. Ficou imaginando quantos adornos poderia fazer com eles.

Tentou pegá-los com as mãos, mas eram muitos e, a cada passada, caíam ainda mais búzios. Adebisi desistiu de pegar as contas caídas no chão e preferiu ir até o “imóle” – só podia ser um – e perguntar onde ele havia encontrado tantos. A divindade nada respondeu, apenas ergueu para Adebisi a mão cheia de búzios.

– Não quero os teus búzios, – disse Adebisi ao “imóle” – prefiro que me diga onde os conseguiu para que eu mesmo possa buscá-los.

Então o “imóle” largou algumas contas nas mãos de Adebisi e desapareceu. Voltando à trilha notou que os búzios que o “imóle” deixara cair não se viam mais no chão. Adebisi acordou na barraca e viu que o Babalaô, Ferreiro, Tadeu, Giácomo e Roberto olhavam para ele.

– Sonhei com aquele deus de novo, Babalaô – a voz dele era de euforia. – Sonhei que ele deixava cair búzios pelo chão, mas só consegui pegar os que ele me deu. O que isso quer dizer? Todos em silêncio. Adebisi insistiu:

– Pode perguntar isso a Orunmilá?

Ferreiro, ainda surpreso, disse quase num sussurro:

– Adebisi, olhe para suas mãos.

Só então ele reparou: nelas estavam os búzios que o “imóle” havia lhe dado no sonho.


* * *

Roberto e Giácomo checavam suas terminators sob o olhar aparvalhado de Tadeu, que ainda não havia se acostumado com a idéia de andar armado. As crianças da aldeia ficavam em volta deles, curiosos.

– Será que teremos algum tiroteio? – Tadeu perguntou.

– Pode ser – respondeu Roberto enquanto guardava a terminator de volta no coldre – Nós estamos aqui somente como seguranças, pois o que tiver que ser feito ficará por conta do Comissário Franco e do tal Ferreiro.

– Notou uma coisa, Roberto? – perguntou Giácomo – Eu nunca vi esse tal de Franco pelos corredores da Empresa. Nunca mesmo. Pela maneira de agir parece ser bem experiente e já era para ao menos termos ouvido falar dele.

– Deixe de ser presunçoso, Giácomo! – disse Roberto – A Empresa tem filiais em todo CET, exceto nos Anos Interditos, por isso ninguém jamais conhecerá todo mundo, até porquê nunca foi calculado o número exato de funcionários. Tadeu achava a conversa dos dois irritante e tentava se distrair com a idéia de que estava em outra época.

Mas nada de interessante via ali, nem mesmo um personagem histórico relevante para mais tarde contar na Empresa que viu fulano ou sicrano. Giácomo reparou nas mulheres de peitos caídos e cheias de cabelos nos sovacos, sem falar do mau hálito, dos dentes quebrados e do cheiro de urina que impregnava as cabanas. Apenas poucas adolescentes exibiam seios firmes e um bumbum não tão grande, mais parecidos com as mulheres de seu tempo. Ao menos dessa vez se comportaria.

Roberto sabia um pouco mais: não era difícil deduzir que estava diante de um grave Ponto de Divergência, do qual surgiriam diversas LTs, por isso a missão de deter Akim e manter o CET para, mais uma vez, salvar o futuro e evitar uma nova LT. De qualquer maneira, aquele esquisito do Franco deveria ter as respostas.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 5ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Do homem

Akim fez outras visitas de cortesia a outras aldeias. Em todas foi bem recebido por conta dos presentes que distribuía generosamente e pela aparência imponente diante dos olhos ingênuos dos aldeões. Em poucos dias era visto como um amigo por pelo menos quinze aldeias. Os búzios também falavam com ele, mas de modo estranho, afinal não era uma consulta aos Orixás porque eles ainda são Imóles nesta época, mas quem respondia às suas indagações eram os “eguns”, ou seja: os espí ritos dos mortos que ainda vagavam pela Terra. Esses “eguns”, ainda carregando consigo as imperfeições da vida humana, tomaram Akim como um amigo, alguém que devessem proteger por ser um elo entre vivos e mortos, e passaram a acompanhá-lo e enviar-lhe mensagens através dos búzios. E os “eguns” contaram a ele que outros homens estavam na aldeia que ele primeiro visitara, que o Babalaô mentiu e que o primeiro “élégun”, o primogênito dos iniciados, estava naquela aldeia, aguardando o sinal dos “Irun-im óles” para trazer aos homens o primeiro dos Orixás. Também contaram que os deuses da esquerda, os “Igba-imóles”, discordavam em nivelar os inferiores humanos àqueles que foram abençoados com dons divinos pelo Deus Supremo e que viam na destruição dos homens o único meio de evitar tamanha blasfêmia.
– Exatamente como contam as lendas – exultava-se Akim.
A consulta terminou quando Linterbaun trouxe alguns homens idosos a sua presença. Num gesto teatral, Akim apanhou um pequeno cubo e o fez projetar um imagem holográfica de si mesmo. Os pobres africanos ao verem tal coisa aparecer e desaparecer ao comando daquele homem fantástico, não hesitaram em se atirar ao chão, prostrados em adoração.
– Fiquem de pé! – O iorubá de Akim era perfeitamente compreensível para eles, que obedeceram.
– Farão o que eu mandar?
Um dos idosos se fez de porta-voz:
– Estamos diante de um instrumento dos deuses?
Akim sorriu malicioso, apesar de saber que por mais ‘poderes’que exibisse, não o tomariam como uma divindade.
– Sim. Eu vim a mando dos deuses que estão irados e ameaçam destruir a tudo e todos se um terrível mal
não for evitado – seus anos como ditador o ensinaram a mentir de forma convincente.
– Ai daquele que ousar ser t ão grande como um deus sem ser um deus!
Começou um murmúrio. Outro idoso perguntou:
– Que mal é esse que tanto aflige os deuses? Não somos nós os culpados, ou somos?
– Não se trata de culpa – Akim falava em tom paternal – mas sim de devoção. Se você agrada aos deuses.
mas permite que outro os desagradem, então de nada valeu a sua devoção. Numa aldeia há um homem que desafia a vontade dos deuses. – Isso é blasfêmia!
Eles se horrorizaram.
– Claro que é. Portanto, fiquem prontos para atacarem aquela aldeia ao meu sinal e, assim, evitarem a ira dos deuses.
Os idosos murmuram mais um pouco e concordaram, com relutância, em dar um voto de confiança a Akim. No final, o ditador lhes deu mais presentes e os dispensou. Após saírem todos, Linterbaun perguntou:
– General, o senhor pretende usar aqueles pobres coitados para atacarem a aldeia? Mas nós podemos ir até lá e destruir tudo em minutos.
– Esses ‘pobres coitados’ são nossos antepassados, Linterbaun – disse após um muxoxo. – E eu sei muito bem que podemos destruir aquela aldeia em minutos, mas prefiro que eles mesmos o façam, pois que sua destruição certamente agradará ao meu pai – tocou o chão com as pontas dos dedos da mão direita e levou-os a testa – Ogum!
“Ogum-yiê”!
Linterbaun franziu o cenho, pois se julgava racional demais para acreditar em mitos – ao menos para ele eram mitos.
– A função de vocês é proteger a mim e a missão. Aliás, mudando de assunto, terminaram as buscas? – disse Akim.
Linterbaun retesou o corpo antes de responder, pois os anos de convivência não tiraram dele o
constrangimento de ter seu assunto abruptamente cortado por Akim.
– Sim, General. Apenas aguardamos instruções.
– Excelente! – Akim sorriu. – Tudo transcorre exatamente conforme planejei.
Linterbaun prestou continência e saiu dali a passos largos, deixando para trás um líder que voltava a sonhar com tempos de glória.

* * *

Franco soube dos homens de Akim e se preparava para um confronto iminente. Tudo que ele precisava fazer era aguardar o momento exato para desferir um golpe enquanto o ditador agisse e evitasse o contato com o deus Ogum ainda “Igbá-imóle”.
– Sabemos sobre o “élégun” – disse Ferreiro ao Babalaô – e das maravilhas que os Orixás nos reservam.
– O que vocês querem então? – O Babalaô indagou.
– Queremos que tudo dê certo. Queremos que seja feita a vontade dos “Irun-imóles”.
– Por quê? O que realmente o traz aqui?
Diante da réplica do Babalaô, Chico Ferreiro deu de ombros e disse:
– O futuro. – e, apontando para os outros, acrescentou – Todos nós viemos do futuro. Somos os nãonascidos.
O Babalaô sentiu um frio na barriga. Lendas falavam de homens que morreram mas cujos corpos vagavam pelo mundo sem alma, outras lendas falavam de espíritos que vinham ao mundo para conhecer o local onde nasceriam. Mais lendas vinham à sua mente: homens que viam o futuro, homens que já nasciam conhecendo o futuro e até de homens que iam e vinham do futuro. – Nós sabemos como tudo isso termina – continuou Chico Ferreiro. – Sabemos qual será o fim do que acontecerá aqui.
– O fim? – O Babalaô arregalou os olhos. – Então há mesmo o final de tudo? O fim de todas as coisas?
Chico Ferreiro ergueu a mão como se pedisse calma. O Babalaô ficou esperando e ele explicou, tendo o cuidado para não expor novamente o homem de 1800 a.C. a conceitos de sua época:
– Eu falava sobre o desfecho da iniciação do primeiro “élégun”. Tudo dará certo e os “Igbá-imóles” serão derrotados e destruídos por “Olodumare”.
– O deus-supremo intervirá em favor dos homens? – a voz do Babalaô não era de um crédulo. – Ifá não diz isso, mas sim que a guerra ainda nem começou. Como pode haver uma certeza sobre o desfecho da Iniciação se nem Ifá sabe? Querem ser maiores do que um deus?
– Acho que posso explicar – Franco intrometeu-se na conversa. – Ifá diz que o desfecho ainda é incerto porque neste instante há um guerra em andamento, mas nós viemos do futuro, portanto sabemos que esta guerra já terminou e como terminou. No futuro haverá muitos outros “éléguns”.
– Eu quero acreditar nas tuas palavras, mas não posso crer que até quem veio do futuro possa saber mais do que o Senhor dos Segredos – o Babalaô falava com convicção. – Ifá diz que o desfecho da guerra é incerto, portanto vocês não podem saber, mesmo que tenham vindo do futuro.
– Nós sabemos, Babalaô.
– Então por quê vieram?
– Porque aquele homem, Akim, está interessado em contatar um dos “Igbá-imóles” e leva-lo consigo para o futuro, onde acredita poder mudar o seu destino. Nós estamos aqui para garantir que nada sairá errado e que ele não se aproximará desta aldeia.
– Então, vocês não sabem se aquele homem conseguirá impedir a Iniciação ou mudar o seu destino.
Franco pensou se aquela conversa estaria virando um jogo de palavras. Respirou fundo e afirmou:
– Akim não vencerá. Os “Igbá-imóles” serão derrotados, o imóle não irá para o futuro com ele e sua guerra
estará definitivamente perdida. Ifá não errou, apenas não viu mais adiante. Pense bem, Babala ô: se os “Igbáimóles” tivessem vencido ou Akim conseguisse levar o imóle consigo para o futuro, nós não poderíamos estar aqui.
E deu as costas ao Babalaô. Por sua vez, o sacerdote de Ifá mantinha-se firme em sua fé e disse a Chico Ferreiro:
– Se já fosse certo o resultado disso tudo, Ifá teria me contado.
– Mas foi o que aconteceu... acontecerá aqui – Ferreiro deu de ombros. – Eu vim do futuro e sei que os deuses vieram até nós e que a nossa religião prosperou, foi para terras distantes e lá plantou raízes.

O Babalaô não se convenceu, mas achou melhor encerrar a conversa antes que ouvisse novamente questionamentos a Ifá. Para ele não fazia sentido o oráculo não dar o resultado da guerra se já o é conhecido no futuro. Por sua vez, Ferreiro encontrou lógica no que o Babalaô disse. Se é certo de que os “Irún-imóles” vencerão e Akim será derrotado, o que faziam ali, se há pleno conhecimento do ocorrido?
– Quem te disse isso? – Franco abordou Ferreiro abruptamente.
– Mas eu não falei nada – disse Ferreiro, pensando se Franco conseguia ler seus pensamentos.
– Não, Ferreiro. Não li seus pensamentos. Apenas sei o que você irá dizer porque já foi dito. Saiba que nossa presença aqui é necessária porque fomos nós quem impedimos Akim.
– E fomos nós que derrotamos os “Igbá-imóles”?
– Não. Mas estávamos aqui quando isso aconteceu. Agora fique tranqüilo, pois a nossa presença é prova física de que o nosso futuro é uma certeza e não uma possibilidade.
Ciente de sua divindade tecnológica, fitou seu anel e resolveu conferir o futuro, desaparecendo diante dos olhos de Ferreiro e do Babalaô, que não ficaram menos surpresos do que Giácomo e Alves que não o viram manipular a Caixa.
– Ele foi muito rápido – observou Giácomo. – Nem vi quando passou o cartão.
– Estranho – corou Roberto Alves. – Eu também não vi.
Segundos depois, Franco reapareceu. Nenhum sinal de Caixa ou Cartão, conforme haviam observado os dois agentes, apenas o homem com passo vacilante e olhos sonolentos. Mal chegou e caiu sem sentidos, sendo socorrido por Roberto e Giá como que o puseram numa esteira. Não havia palavras, só o espanto.

No momento em que Tadeu entrou na cabana e viu a confusão instalada, Franco recuperou os sentidos, segurou Giácomo pelo braço e disse:
– Não tentem se deslocar para o futuro... é perigoso...
E desmaiou novamente. Ferreiro olhou para o Babalaô, que balançou a cabeça como se quisesse dizer: ‘Eu não falei?
* * *
Roberto Alves já viu muita coisa em seus anos na Empresa, mas nunca pensou estar diante de uma lenda, como bem lembrou Giácomo:
– Cadê a Caixa e o Cartão?
Revistaram-no. Nada.
– Há uma droga – disse Tadeu – que possui efeitos ainda desconhecidos, mas que age no cérebro e pode deslocar o corpo no tempo.
– Que droga? – Giácomo exaltou-se. – Como uma substância química poderia agir no CET? – E eu sei?
– Tadeu mal se continha. – Tem coisas na Empresa que eu mal consigo aceitar, quanto mais entender.
Alheio a discussão, Roberto segurou a mão esquerda de Franco e ficou observando o anel em forma de uma cobra mordendo o próprio rabo.
Não podia ser!
Assustado, ele soltou a mão que caiu sobre a barriga.
– Giácomo, Tadeu – Roberto chamou-os. – Já ouviram falar em deuses do Nível 6?
Ambos cruzaram olhares.
– Que deuses? – Giácomo franzia a testa.
– Tá maluco? – Tadeu estranhou. – Não há deuses coisa nenhuma!
– Olha, se tem uma coisa da qual eu não duvido é a existência de superburocratas em níveis acima do Cinco – disse Giácomo. – Eles usam uma tecnologia tão ímpar que outros os chamam de ‘deuses ’.
Tadeu olhou mais uma vez para Franco e indagou: – Tá querendo me dizer que este cara aqui é um Nível 6?
– Ainda duvida?
– Sei não. Fraga disse que esse mané é do Nível 5.
– Fraga mentiu.
Tadeu enumerou as mentiras que já ouviu na Empresa. Eram muitas e envolviam o próprio tecido da Realidade, num emaranhado de procedimentos que atrapalhavam mais do que agilizavam a entidade que deveria zelar pelo melhor dos tempos.

E isso era outra mentira.

* * *

Franco despertou, mas permaneceu deitado e de olhos fechados durante um bom tempo. Somente quando sentiu que estava sozinho que abriu-os e fitou o anel em seu anular: agora um mero ornamento inútil.
O problema dos ‘deuses’ tecnológicos é quando passam a acreditar que são mesmo portadores de algum dom divino por terem se arrogado senhores do Tempo.
Há muito tempo (Quanto? Nem ele era capaz de precisar qualquer coisa) ele era só mais um homem – e sabia disso.
Em sua Linha Temporal, a Palmares independente nem esperou pelo fim da Grande Guerra no início do século 20 para iniciar ela mesma sua pregação imperialista, justificando seu expansionismo numa suposta guerra de libertação da ‘raça negra’. Ele, um dos muitos jovens entorpecidos pelos discursos inflamados dos populistas palmarinos, pegou em armas e aguardou ansiosamente para desembarcar em praias africanas com o sonho quixotesco de varrer os impé rios coloniais da face da Terra.

Antes de embarcar, olhou para os parentes que foram até o porto para se despedirem do herói da família.
Diante de seus olhares – e das moças bonitas – ele ergueu o punho cerrado e bradou:
– “Ogum yiê”!
Em 1917, a imensa frota palmarina surgiu nas praias do Benin e foi ruidosamente saudada pelos
intelectuais africanos que viram naquilo um novo tempo (tempo, de novo).

Mas a verdade não estava nos discursos populistas. Os impérios coloniais, mesmo economicamente arruinados pelo esforço da Grande Guerra, dispunham de imensos contigentes militares bem armados e treinados que foram desviados para enfrentarem os palmarinos e seus voluntários africanos. Em 1919, Palmares estava em guerra com as nações mais poderosas da Terra.

Franco via com seus olhos ainda ingênuos, os ‘reis’ africanos, antigos negociantes de escravos com os brancos, que mudavam de lado pelo pavor que a incrível máquina de guerra dos impérios coloniais despertava em seus ‘tronos’ frágeis. Um a um, nobres guerreiros da Mãe África mudavam de lado e caçavam os remanescentes do orgulhoso exército palmarino, que contava com o apoio de uns poucos idealistas que ainda sonhavam com uma África livre e poderosa.
Foram despertados de seu sonho. Em um ano os palmarinos recuaram para poucas praças fortes ao longo da Costa da Guiné, constantemente assediadas, enquanto os líderes de Palmares assinavam tratados com os senhores coloniais e ensaiavam discursos para convencerem o povo de que aquela derrota foi em verdade uma vitória dos princípios da unidade negra.

Era tudo mentira. Palmares sonhou com um império no além-mar, nem que para isso sacrificasse uma geração inteira de jovens. Mentiram para os africanos ao posarem de libertadores quando o que queriam era somente aproveitar-se do caos na Europa para edificar seu próprio império. Mentiram para o seu próprio povo quando disseram que seus filhos marchavam para a vitória certa sobre um inimigo debilitado.

Enquanto os líderes palmarinos mentiam, ele estava em patrulha com mais dois soldados quando foram surpreendidos por uma patrulha dos coloniais. Após intenso tiroteio, ele estava caído no chão, baleado, cercado pelos cadá veres de seus companheiros e dos atacantes, mas ainda estava vivo. Por quanto tempo? (sempre, sempre, sempre tempo) Ele, tão jovem, deveria morrer naquela luta inglória, a tornar-se mais um índice na estatística dos populistas palmarinos? De repente, sentiu algo poderoso próximo de si. Virou o rosto para o lado, na esperança de ver alguém. Ninguém foi visto, mas sentia a presença poderosa que parecia ampará-lo.
– Pai?
Será que Ogum sente orgulho de ver seu filho chegando ao fim de modo tão honroso?
– Pai! – Num gesto de desespero e permitindo que rolassem as primeiras lágrimas, ele suplicou:
– Por favor, pai! Não me deixe morrer!
Findo o apelo, a presença foi-se afastando até desaparecer. Teria Ogum se decepcionado com ele? Será que o deus veio só para levar consigo seu filho guerreiro mas viu-se diante de apenas um homem temente da morte?
Nunca saberá.
Somente sabe que reuniu forças para erguer seu braço ensangüentado na direção da energia do deus e suplicou por sua vida mais uma vez. Vozes se fizeram ouvir:
– Tenente! Tenente! – mas que não vinham do além.

Então, surgiram dois soldados palmarinos. – Ainda bem que o senhor ergueu o braço, Tenente – um deles disse como se tivesse presenciado um milagre – caso contrário íamos passar direto.
O deus não era mais sentido lá. Fizesse o que tivesse feito, fez pela última vez e foi embora – para sempre.

Foi levado para um forte litorâneo e embarcado de volta para casa, com medalhas cinzas e frias pregadas no peito e, nos ombros, as divisas de Capitão. No caminho de volta, soube que Palmares assinou a paz com os impérios coloniais e abandonou à própria sorte os poucos que ainda a apoiavam a fim de manter vantajosos contratos comerciais com seus ex-inimigos. Apesar das honrarias e dos prêmios, ele voltou para casa sem nada: sem causa, sem ideologia, sem vitória, sem fé – sem seu pai Ogum.

Desde aquele dia ele se sentiu vazio, fútil e sozinho. Ficava perambulando pelas ruas da cidade por conta da pensão de ex-combatente em busca de prazeres carnais e diversões banais, sentindo-se no direito de ser um parasita enquanto novos discursos dos mesmos líderes pareciam preparar o mundo para uma nova tragédia.

Porém, num dia perdido no tempo, seres vindos de sabe-se lá quando e onde levaram-no para conhecer a Realidade por trás daquela ilusão que o assimilara – e nunca mais foi o mesmo.
Sem um deus, sentiu-se vazio o bastante para preencher seu ser com conhecimentos de tecnologia e ficar transitando entre todas as Eras, acima dos homens. A causa pela libertação da África ficou para trás e conheceu o Contínuo Espaço-Temporal, com todo emaranhado de possibilidades que poderiam se desdobrar. Viu mundos possíveis e desfechos prováveis de Linhas Temporais que variavam entre si num dado momento do tempo – e eram esses momentos que deveria proteger. Ele não teria mais causa, ideologia, lutas ou fé, mas ainda sobreviveria com o objetivo de preservar o que convencionou-se chamar de Intempol – e só.

O problema era que não havia nada. Como um paradoxo da tecnologia que chegou a acreditar ser infalível, ele retornou do futuro encontrou o vazio.

Continua

terça-feira, 19 de abril de 2011

Harlan Ellison: Como Enxergar a Dor - depoimento de Patati

Como literatura, a ficção científica me acompanha desde a infância. Vi 2001 pela primeira vez quando foi lançado, em 68. Ir atrás de Clarke e seus livros, um pouco mais tarde, foi óbvio.

Autores como Lovecraft, Stanislaw Lem, Phillip K.Dick, Olaf Stapledon, William Gibson, Norman Spinrad, Ray Bradbury, René Barjavel e Alan Moore estão comigo há muito tempo e creio que me ajudarão ainda a pensar e sentir o mundo durante muitos anos. Mas o autor que mais me impressionou quando primeiro o li, sem dúvida, foi Harlan Ellison.

Pouco importa que sua obra, como ele mesmo diz, não passe de lixo elegante. Seu espalhafato, sua intensidade, sua fúria, sua imaginação ousadíssima (a meu ver, suplantada apenas por Clive Barker), de um lado; aliados a seu poderoso poder de síntese e a seu conhecimento de estrutura, do outro, fizeram dele, para mim, um tremendo contista e um grande roteirista, tanto de TV como de quadrinhos.

Suas histórias são sangüíneas, mas não são meros jatos de fúria. Ellison sempre investiu tanto em estilo quanto na lógica interna das coisas, tanto nas imagens em si, quanto nos acontecimentos que as fazem surgir. Contos como Não Tenho Boca e Preciso Gritar (em que a humanidade se tornou um grupinho de animais de laboratório progressivamente reduzidos à mais completa falta de controle sibre suas vidas por uma raça alienígena) e Vendo (em que uma jovem telepata descobre que sempre enxerga a morte de cada pessoa ao conversar com ela) são leitura antediluviana e ainda estão comigo de memória.

São trabalhos em que vi pela primeira vez as preocupações sociais da década de setenta traduzidos para dentro dos limites de um entretenimento popular... A paranóia e a violência urbana, o psicodelismo dos anos sessenta, a militância pelos direitos civis na sociedade americana, a indignação do cidadão honesto contra o mau uso dos impostos pagos e contra a guerra do Vietnã, tudo isso encontrava metáforas visuais fortes na obra de Ellison, que às vezes (ponto fraco), sofre de um jeitão meio caricatural.

Pensando sobre essas correspondências entre visibilidade e significado, concluí que seus contos – sem dúvida a parte mais alta de sua obra –, aprenderam muito com seus roteiros. Depois percebi que o modo visual como trabalha, o fato de que escreve muitas histórias em torno das imagens que o impressionam e que outras vezes o faz de modo propositivo, era o que me atraía nele.

Tal como os naturalistas franceses, mas com seu molho pop, Ellison quer dar a ver a doença do mundo com olho que é gótico e científico, e fazer o diagnóstico. Enxergar imagem e relacionar sentidos entre elas.

Enxergar a dor.

Porisso Ellison está comigo até hoje, ainda que tenha medo de me decepcionar se reler seus contos.

Pelo menos, para mim, depois de Isaac Babel, certas coisas se tornam imagens da adolescência...

***

Carlos Eugênio Baptista, o Patati, é detentor de um prêmio HQ MIX por aquela que seria a primeira história da graphic novel Sangue Bom, editada em 2003, pela Opera Gráfica. Professor universitário e escritor profissional, Patati é um dos mais prolíficos autores de quadrinhos nacionais.

domingo, 17 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 4ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Os deuses do Nível 6 devem estar loucos

Adebisi nem quis ir para aldeia. Ficou vagando meio sem rumo na margem do rio entendendo cada vez menos à medida que aprendia mais. O Babalaô previa uma tragédia e ele estava no meio de tudo. Logo ele que nunca foi um grande caçador e era menor do que os guerreiros de sua tribo. Se pudesse, seria um guerreiro errante, a sair pelo mundo em busca de aventuras e riquezas. Também se pudesse, escolheria sua própria companheira em vez de conformar-se com a que lhe foi designada e viveria numa grande cabana, com muitas mulheres para servirlhe e protegido por muitos guerreiros que sairiam tomando terras em seu nome.

Mas nada era como sonhara um dia.

De repente, Adebisi sentiu-se tonto. Cambaleou até uma árvore na margem do rio e se apoiou no tronco. Em seguida, ouviu um barulho estranho vindo do rio e viu que lá no meio formou-se um redemoinho. Assustado, mas ainda tonto, apanhou sua lança e ficou esperando pelo que viria – ou veria. De dentro do redemoinho surgiu uma mulher nua, jovem, com seios firmes, que ficou totalmente em pé sobre a água. Adebisi pensou que havia enlouquecido. Pior, ficou excitado com a maravilhosa visão ou alucinação que parecia querer mostrar-se para ele.

A mulher sorriu e apontou para uma grande pedra na outra margem, sobre a qual Adebisi viu aquele homem com o corpo coberto de palha da cabeça aos pés – o mesmo que viu em seus sonhos. Fosse quem fosse, parecia olhar em sua direção e ergueu o braço, apontando-lhe o dedo indicador. Logo depois, ele e a mulher desapareceram.

Quando Adebisi ainda tentava entender o que vira, o chão tremeu. As aves revoaram e muitos animais pareciam enlouquecer. O rio ficou cada vez mais caudaloso enquanto sua mente era invadida por imagens de homens e mulheres negros como ele, mas totalmente diferentes, talvez mais altos ou mais fortes, que se dividiam entre as duas margens de um mesmo rio. A parte maior foi para a margem direita e a menor para esquerda, e estes começaram a destruir tudo enquanto os demais apenas olhavam. Adebisi reconheceu que entre os da margem direita estavam a mulher que vira no rio e o homem vestido de palha.

Havia outra coisa que, aterrorizado, Adebisi não pôde deixar de reparar: eram centenas de seres. Os do lado direito variavam quanto ao sexo, à idade, às roupas estranhas, às armas e os enfeites; enquanto aqueles à esquerda tinham em comum o fato de se cobrirem com folhas do dendezeiro desfiadas (“mariô”), fossem em forma de saias como também vestidos (para as mulheres), capas e saiões. Porém, eram os olhares que causavam arrepios.

Os da direita apenas o encaravam, uns com curiosidade, outros com simpatia e alguns com satisfação, mas os da esquerda eram francamente hostis. Alguns pareciam rosnar de tão aterradores. O que queriam estes? Não devia ter-se feito esta pergunta. Ao menos não na presença deles. Como numa resposta em forma de ameaça, apontaram para um céu enegrecido de onde caíam rochas incandescentes e relâmpagos, enquanto na terra dezenas de vulcões expeliam lava, línguas de fogo que queimavam a floresta e evaporavam a água de mares e rios.
Adebisi sentiu as pernas fraquejarem e desabou.

* * *

Um velho negro de cabelos brancos e olhar bondoso, que tocou-lhe de leve a face:
– Tava “drumindo”, mizinfio?

Adebisi não entendeu nada. Levantou-se assustado e reparou noutro homem negro e três brancos que vestiam estranhas roupas pretas. Cadê a maldita lança?

Ele já vira homens brancos antes. Eram mercadores vindos de terras distantes e que falavam de senhores numa terra mítica que reinavam como deuses e eram os donos das imensas riquezas do Grande Rio. Mas estes diante de si eram diferentes: cheiravam bem e eram altos. Seus dentes eram a coisa mais branca que já vira e se perguntou como eles fizeram para não os perderem. As roupas eram estranhas, mas viajantes usavam sempre roupas estranhas para seus olhos. O velho aproximou-se e perguntou em sua língua:

– Tua aldeia é muito longe?

– Não – respondeu Adebisi, como se pudesse confiar naqueles estranhos. Será que também traziam presentes?

– Leva a gente até lá? – insistiu o velho.

– Levo sim. – assentiu, sem saber se fazia a coisa certa.

* * *

Os aldeões acorreram novamente. Mais gente estranha havia chegado e talvez trouxessem presentes. Os líderes tribais se destacaram e foram ao encontro deles. Ferreiro destacou-se do grupo e saudou-os.

– Viemos em paz, – disse Ferreiro – queremos falar com o Babalaô.

Os velhos agiram como se estivessem confabulando e um deles fez o sinal para que Adebisi os levasse até a roça do Babalaô. Ao cruzar pela aldeia, cada um tirou suas impressões. Giácomo, salvo por algumas adolescentes, viu poucas mulheres de corpo, digamos, bonito e dentes ainda sadios, mas eram demasiado jovens para ele. No geral, predominavam as feias, desdentadas, banhudas e de peitos caídos.

Tadeu olhou ao redor e foi interpelado por Roberto, que comentou: – Mais primitivo do que pensei.

– Pode ser. – Tadeu fingiu concordar. – Você já reparou no que está faltando aqui?

Roberto olhou ao redor e opinou, irônico: – Televisores, computadores, máquinas de lavar e automóveis.

– Não foi o que eu quis dizer, mané. Se você olhar com calma, verá que não há nada de metal aqui, somente madeira e pedra. Ainda não desenvolveram a metalurgia. Roberto soltou um
muxoxo e pensou: ‘Viu só como são primitivos?’

Franco olhava ao redor pensativo. Como herdeiro da cultura africana devia sentir-se à vontade, mas não conseguia, pois o desenvolvimento de Palmares e o intercâmbio cultural fizeram dele um homem distante demais de seus ancestrais. Será que algum daqueles aldeões seria seu ascendente?

O deus se lembrou que fora batizado católico e só depois foi levado a um terreiro de Candomblé, embora não fosse esse o nome da religião em sua LT. Lá lhe foi dito que deveria ser confirmado Ogã e que era filho de Ogum, o poderoso e temperamental senhor do ferro e da guerra, que abre os caminhos e mata seus inimigos. Mas sua vida tomou outro rumo quando foi chamado para juntar-se à uma empresa que se expandia descontroladamente pelo CET e perigava destruir toda a Existência se não fosse logo disciplinada. Nunca se arrependeu de sua escolha, mas sabia o quanto isso pesava em sua alma e corroía sua mente. O poderoso Nível Seis agora estava numa aldeia há mil e oitocentos anos e contando com a ajuda de um homem que nunca viajara pelo tempo. Esse sujeito que ele mandara buscar para colocar a História do Homem em seu devido curso e impedir mais uma LT no já combalido CET. No momento, Ferreiro, que conversava com alguns anciãos, voltou e avisou: – Temos problemas: estão dizendo que outros homens tão estranhos quanto nós já estiveram aqui antes.

Franco soltou um muxoxo e disse:

– Akim e seus lacaios já chegaram.

Ferreiro olhou nos olhos do jovem Adebisi e sentiu algo totalmente estranho, mas nada ruim. Por sua vez, o jovem também sentia por Ferreiro uma estranha reverência, como um sinal de que poderia confiar nele.

Mas confiar o quê?

* * *

Akim voltou para o seu acampamento. Cobriu a cabeça com uma espécie de boné sem aba, o “iqueté”, de cor azul-marinho, e estava sentado diante de uma mesa sobre a qual havia uma cesta de palha trançada rodeada por uma vela acessa, um copo com água, um cristal e um incenso queimando. Ele fez uma rápida oração, segurou os búzios com as duas mãos, fez os pontos cardinais e jogou os búzios dentro da cesta. Era sua maneira de obter respostas sem o véu da dissimulação.

Estudou a posição em que caíram as peças e sorriu. Em seguida, tirou o fio de contas azul-marinho, enrolou-o na mão direita e beijou-o, dizendo a seguir:

– Quem diria, um sacerdote de Ifá mentindo. Que coisa mais feia, Babalaô!

E riu.

* * *

Os anciãos foram até a tenda. Estavam menos preocupados com a segurança da aldeia e desejosos de mais presentes, mas dessa vez não havia e ficaram decepcionados. O Babalaô apresentou Ferreiro como um sacerdote dos deuses e os outros como seus aprendizes.

– Os deuses estão vindo mesmo? – Um dos anciãos perguntou, causando grande constrangimento ao Babalaô, que já o havia predito.

– Ifá sabe – Ferreiro respondeu como se desagravasse o Babalaô – e viemos de muito longe para adora-los.

– E os “Igbá-imóles”? Eles pretendem nos destruir? – O ancião indagou como se visse na figura de Ferreiro um sacerdote. Ao menos ele se apresentou como um.

– Não é a mim que devem perguntar isso.

– Mas estamos perguntando. Orunmilá disse que os deuses da esquerda estão irados.

– Confiem sempre no Deus Supremo – “Olodumare” – e lembrem-se de que os deuses da direita, os “Irunimóles”, jamais nos deixarão à mercê de deuses irados.

Os anciãos se entreolharam:

– Precisamos saber se devemos mesmo adorar os deuses que não querem ser adorados. Se uma parte das divindades não nos quer tão próximos, então são os outros que devem fazer valer a sua vontade para se aproximarem e não esperarem que nós, que mal podemos nos defender uns dos outros, decidam qual será o próximo passo.

Ferreiro insistiu para que mantivessem a fé – em si mesmos e nos deuses – com argumentos tão bons que Franco sentia-se orgulhoso por estar acompanhado daquele homem tão sábio.

– Vocês são bem-vindos em nossa aldeia – disse outro dos anciãos – e saiba que queremos adorar os deuses para podermos viver melhor e aprendermos mais sobre os segredos do mundo.
Reiteraram as boas-vindas e respeitosamente se retiraram. Ferreiro sorriu satisfeito e naquele instante percebeu que subiu muitos pontos no conceito dos homens que o acompanhavam.

Continua.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 3ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

A missão dos homens

Adebisi estava com o Babalaô, que havia sacrificado uma ave para Orunmilá e voltou a consultar Ifá. O Babalaô estava mais apreensivo e tinha dificuldade em transmitir o que lhe vinha como resposta.
– Deuses enfurecidos. Guerra entre esquerda e direita.
– Não entendi, Babalaô.
– Nem eu, Adebisi. O Odu que se apresenta é Opon e diz que “ ...Quem se aproxima de um animal ferido mesmo para ajuda-lo poderá ser morto...” – ele fez uma pausa. – Os deuses estão divididos entre esquerda e direita – logo depois entregou duas pedras a Adebisi, uma clara e outra preta e mandou que sacudisse ambas com as mãos e novamente segurasse uma pedra em cada mão. O Babalaô consultou Ifá e mandou que Adebisi abrisse a mão esquerda, revelando a pedra preta.
– Os deuses da esquerda não querem se aproximar dos homens e ameaçam destruir tudo caso nós insistamos em irmos até eles.
O Babalaô apanhou as duas pedras, tocou-as nas favas, recitando algumas palavras sagradas e devolveu-as
a Adebisi, que repetiu o ritual de embaralha-las e segurar uma em cada mão. O Babalaô jogou o “opelé ”e mandouo abrir a mão direita. Apareceu a pedra clara.
– Está confirmado! Os deuses da direita disseram sim aos homens!
– Mas por quê os da esquerda se opõem?
– Porque eles nos julgam pequenos demais.
Adebisi abriu os braços e disse:
– Então nossos deuses serão os da direita!
O Babalaô mais uma vez consultou Ifá. Como tudo lhe parecesse confuso, restou-lhe especular:
– Para termos os nossos deuses, deveremos enfrentar a ira dos deuses da esquerda. Se sobrevivermos, teremos finalmente os Orixás.
– E como faremos para sobreviver?
O Babalaô temia esta pergunta mais porquê sabia do temor que provocaria a resposta:
– Não temos como nos opor aos deuses irados. Dependemos deles próprios para sobreviver e evitar o fim do mundo.
Adebisi mais uma vez irritou-se. Por quê os oráculos deveriam ser sempre ambíguos? Decidiu não fazer mais perguntas e suspeitou se a vida não seria mais simples se dependesse mais da caça e menos dos deuses.

Preferiu ir para casa.

* * *

Na aldeia, havia grande tumulto, com guerreiros empunhando lanças e bastante assustados. Sua prometida, Yawana, correu em sua direção e segurou-o pelo braço, como se cobrasse dele seu primeiro dever de companheiro: dar-lhe proteção.
– Homens estranhos chegaram, Adebisi! – disse, apontando para o outro lado da aldeia, fora da visão devido ao número de aldeões que lá se aglomeravam. Adebisi desvencilhou-se dela com dificuldade. Caminhou entre os seus, abrindo caminho até os tais estranhos. Seriam enviados dos deuses? Ao vê-los, não deve dúvidas. Deveriam ser bem próximos das divindades, pois nunca vira homens tão altos nem com vestes estranhas e belas a cobrir-lhe os corpos poderosos. O que parecia ser o líder adiantou-se e falou num idioma bem parecido com o dele, fácil de se fazer entender.
– Meu nome é Julian Akim. Vim de muito longe para falar com o Babalaô e trago presentes, muitos presentes.
O homem estalou os dedos e dois outros apanharam um caixote. Dentro havia estranhos cubos coloridos que chamaram a atenção de todos.
– É de vocês. Podem provar, é para comer. – disse Akim, abrindo os braços e tentando ser o mais simpático possível.
Um dos mais velhos aproximou-se do caixote, apanhou um dos tabletes e, depois de cheira-lo, pôs na boca e mastigou. Segundos depois, sorriu, apanhou mais um e comeu com prazer. Outro se aproximou e fez o mesmo.
Gostou.
Em menos de um minuto estavam todos em volta do caixote disputando os tabletes que o estranho oferecia.
Com muito custo, quando os tabletes estavam já no fim, Adebisi apanhou três – um verde, um vermelho e um amarelo. Tinham um cheiro agradável.
Adebisi abocanhou o primeiro e este, de tão macio, dissolveu. Era muito bom e deixou uma sensação agradável. Sentiu-se leve e sorriu numa estranha alegria. Rapidamente devorou os outros dois e gostou ainda mais.
Pena que acabou.
Logo todos na aldeia estavam satisfeitos com o estranho. Agora ele e os seis homens que o acompanhavam eram convidados, todos vestidos com roupas que mudavam de cor à toda hora (coisa dos deuses!) e portando estranhos objetos que só poderiam ser armas pelo jeito como seguravam. Eles também usavam coisas esquisitas na cabeça.
Um dos mais velhos da aldeia chamou por Adebisi e ordenou:
– Leve nossos amigos até o Babalaô.
Ele olhou aquele homem imenso e de odor agradável sem dizer uma só palavra, mas gostou quando sorriu.
Sorriu de volta e notou que não sentia medo.
– Vamos ver o Babalaô – disse Adebisi, como se estivesse no controle da situação.
E os homens o acompanharam.

* * *

Giácomo sentia que algo não estava bem. Nunca vira o tal Franco pelos corredores da Empresa e o camarada chamado Ferreiro parecia ser o único à vontade naquele passado. Beto, nem pensar, pois já havia reclamado dos mosquitos, e Tadeu era a imagem do mau humor.
De repente, pararam. Franco tirou seu aparelho do bolso e sondou ao redor. Havia encrenca por perto.
– Eles estão aqui – disse
Tadeu soltou um muxoxo e disse ao deus:
– Melhor tomarmos cuidado. Os homens do século 25 usam uma tecnologia militar avançadíssima, sem paralelo nos séculos anteriores.
Giácomo, que já havia deixado a pose de galã para trás, virou-se para Tadeu e indagou:
– Já que você é um expert no assunto, por que não nos conta mais sobre os homens do século 25?
Tadeu viu nisso um ótimo pretexto para interromper a caminhada e tomar fôlego.
– O século 25 foi o século da guerra – disse. – Foram gerações inteiras dedicadas à uma contenda generalizada contra os inimigos mais variados em diversos conflitos que foram se expandido e abarcando cada vez mais países, mais povos, mais blocos. O resultado foi uma confusão no panorama político. Havia países filiados a tantos blocos e divididos em tantas tendências que federações e confederações nasciam e implodiam a todo momento. O que restou disso tudo foi um mundo devastado, cidades riscadas do mapa e o extermínio de dois terços
da população mundial. Uma tragédia sem limites.
Giácomo e Roberto se entreolharam. Sabiam das guerras endêmicas no século 25 e de suas tragédias, mas permanecia um mistério o porquê deste século ser o divisor de águas entre a Intempol e os Anos Interditos.
– Eles são muito dependentes da tecnologia? – indagou Roberto, tendo em mente os obesos sedentários do século 21.
– Totalmente. – respondeu Tadeu – Os homens do século 25 mal conseguiriam viver sem seus brinquedos.
Giácomo e Roberto riram, como se eles fossem totalmente independentes dos avanços tecnológicos.
– Temos que ir. – disse Ferreiro, de cara fechada.
E prosseguiram.

* * *

Akim chegou à cabana do Babalaô que, surpreendentemente, não demonstrou espanto em ver aqueles homens tão diferentes.
Adebisi correu para o sacerdote de Ifá e disse:
– Babalaô, esses homens vieram até aqui e...
O Babalaô fez um gesto para que ele se calasse e dirigiu-se a Akim:
– Veio de tão longe para se consultar com Ifá?
Akim sorriu e respondeu num iorubá um pouco diferente do que falavam, mas perfeitamente
compreensível:
– Sim, Babalaô. – em seguida tocou o chão com as pontas dos dedos em saudação – “Iboru ibóie
ibocheché”.
O Babalaô olhou com curiosidade e respondeu:
– “Iboru-bóie”!
Akim estudou o rosto marcado do Babalaô, que parecia retribuir a análise. Tomou a iniciativa:
– Quero respostas. Sou um filho de Ogum – com a ponta dos dedos tocou o chão e em seguida a testa – “Ogum-iê”! E fui confirmado Ogã na Bahia.
O Babalaô franziu a testa e disse:
– Não sei do que você está falando!
– Eu sei que não sabe, – sorriu Akim – só queria ter certeza.
O Babalaô convidou-o a entrar, enquanto os homens que o acompanhavam montaram guarda ao redor da cabana. Quando Adebisi ia também entrar, o Babalaô repreendeu:
– Não! Volte agora para aldeia!
– Mas, Babalaô...
– Agora, Adebisi. Estou mandando!
Adebisi franziu a testa e mordeu os lábios. Queria ficar perto daqueles que pareciam ter as respostas sobre o que ele precisava saber, mas o Babalaô simplesmente o mandara embora. Melhor confiar e obedecer.
Dentro da cabana, O Babalaô e Akim sentaram-se frente à frente com um tabuleiro redondo entre eles.
– Quero saber sobre os deuses, – disse Akim – os Orixás.
Novamente o Babalaô franziu a testa:
– Nossos deuses são os Imóles.
Akim sorriu de satisfação e completou:
– Sei disso. Quero saber se eles estão vindo e se aqui é o local que procuro para falar com os Imóles.
O Babalaô abriu os braços.
– Eles nunca falam conosco.
Akim sacudiu de leve a cabeça e disse:
– Se eles vierem, poderei falar com eles.
O Babalaô indagou a seguir:
– O que você quer saber?
– Quero saber se é aqui se os Imóles virão aos homens.
O Babalaô recitou uma antiga oração e polvilhou um pó no tabuleiro, com o qual marcou estranhos desenhos com a ponta dos dedos, depois apanhou um conjunto de oito favas entrelaçadas por um fio – o “Opelé” –, jogando-as no tabuleiro. Depois, tocou as favas com as pedras (uma escura e outra mais clara), entregando-as a Akim que, para sua surpresa, sabia que devia sacudi-las com as duas mãos e segurar depois uma em cada. Jogou duas vezes o “Opelé” e mandou Akim abrir a mão esquerda. Ali estava a pedra clara.
– Veio ao lugar errado. Aqui diz que um homem foi na floresta caçar um animal que vive na floresta, mas naquela floresta não estava o animal que ele queria caçar. Então, ele ficou dias e noites pelo mato sem achar sua caça porque não estava ali o que ele queria caçar. Akim alisou a barba grisalha e perguntou:
– Ifá diz que devo procurar em outro lugar?
O Babalaô apontou para o “Opelé” e confirmou:
– Ifá diz que não é aqui o lugar que você procura.
Akim sorriu, saudou o Babalaô e se retirou. No lado de fora, tocou de leve o pequeno aparelho em sua orelha esquerda e perguntou:
– Linterbaun. Está me ouvindo?
Longe dali, o Capitão Linterbaun respondeu:
– Alto e claro, General.
– Como estamos com as buscas? – perguntou Akim.
Linterbaun olhou para três dos homens que pareciam prestes a partirem para batalha e disse:
– Não vamos demorar mais que um dia, General. Os rapazes intensificaram as buscas.
Akim virou-se para trás e viu que o Babalaô observava-o da porta de sua cabana. Ficou sério e disse:
– Muito bem, Linterbaun. Você está se saindo acima das expectativas, como sempre.
– Obrigado, senhor. Faço sempre o melhor que posso – respondeu.
Akim encerrou o contato e olhou ao redor antes de partir. Seu pensamento ao vislumbrar aquele lugar foi:
Que mundo frágil!

Continua

sexta-feira, 8 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 2ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Fugindo do fim
Ano 2472, África Austral.

Julian Akim esquecera-se da derrota iminente. Também esquecera-se do que deveria esquecer. Ele era todo sorriso para os homens e máquinas que levavam equipamentos para dentro da estrutura que mais parecia um vagão de trem, com cerca de trinta metros de comprimento.
– General! – Akim virou-se, era o doutor Foster. – Lembre-se de tudo que lhe falei. Retornará exatamente um mês antes do evento que quer testemunhar e terá um ano para se preparar.
– Eu sei, meu amigo. Não vou me esquecer.
O velho cientista deu-lhe um abraço, dizendo:
– Respeite a minha descrença tanto quanto eu respeito a tua crença, mas acho que é tudo perda de tempo.
O general sorriu e replicou:
– Seu velho e adorável ateu, confie em mim! Minha fé é a base do meu ser. – Em seguida pareceu fixar seu olhar em algum ponto acima e disse: – Ogum me dará as forças que tanto preciso neste momento.
Eles foram interrompidos por um oficial que ficou parado diante deles em posição de sentido.
– Fale, Linterbaun!
– General, todos os equipamentos requisitados estão a bordo e os homens estão aqui! – Ele disse. – Todos os que chamei?
– Sim, General! Os dezoito melhores homens do nosso exército. Na verdade, do que sobrara do seu exército.
– Chame-os! Quero vê-los!
Linterbaun bateu continência, deu meia-volta e gritou:
– Pelotão!
E entraram dezoito homens marchando em fila dupla, fazendo muito barulho com o viril pisar de suas botas. Ao passarem por Akim, pararam, giraram seus calcanhares e ficaram de frente para ele em posição de sentido. A uma ordem do Capitão, prestaram continência a Akim.
– Formidáveis! – disse Akim num entusiasmo juvenil.
O pelotão permaneceu em posição de sentido. Apesar dos reveses, o moral daqueles homens ainda era alto e estavam sentindo-se orgulhosos por estarem ali, diante de seu líder. Aguardaram num respeitoso silêncio por um discurso que certamente viria – e veio:
– Camaradas, embarcaremos numa missão da mais alta importância que, coroada de êxito, nos dará a vitória que tanto almejamos. Do nosso sucesso dependem nossa causa, nossa gente, nossa pátria e todo Exército; por isso os convoco a darem seu precioso sangue nesta missão, até mesmo com o sacrifício de nossas vidas se somente esta alternativa nos restar.
Akim reconheceu que não estava num de seus dias mais inspirados e deu o discurso por encerrado. Desceu do ‘palanque’ e cumprimentou um a um, com calorosos apertos de mão. Em seguida, ordenou que embarcassem no ‘vagão’, inclusive Linterbaun, no que foi prontamente obedecido. Quando ia também embarcar, o doutor Foster ainda disse:
– Há mais uma coisa, General.
Akim deu um sorriso cansado e pousou a mão no ombro do cientista ao indagar:
– O que foi dessa vez, meu amigo? Há o risco de cairmos no jurássico e sermos devorados por dinossauros?
O velho cientista sacudiu a cabeça e respondeu em voz baixa:
– Pode parecer mera especulação, mas trata-se de uma possibilidade mais concreta do que gostaria que fosse.
Akim tentou adivinhar, pois Foster tinha essa mania irritante de iniciar frases sem concluí-las, esperando pelo raciocínio alheio. Akim deu de ombros e pediu que ele concluísse.
– General, o deslocamento de matéria no Campo Quântico é feito com o manuseio das leis da física e suas equações são parte da matemática, portanto as viagens pelo tempo são verdades matemáticas, acessíveis a quem quer que desenvolva tais equações. Assim como eu, digo, nós descobrimos um meio de transportar matéria pelo Campo Quântico, certamente outros o fizeram – ou o farão, o que cria o risco real de que se esbarre em outros viajantes temporais. Talvez crononautas que estejam dispostos a impedi-lo.
Akim sorriu e disse:
– Claro que estou considerando isso também, meu amigo. Não é à toa que destaquei meus melhores homens para essa missão.
Trocaram um forte abraço e Akim afastou-se, indo para o ‘vagão’.
– Akim! – o velho gritou e o ditador virou-se. – Tome cuidado!
O General ergueu o punho direito e bradou:
– “Ogum-iê”!
E entrou, fechando a porta atrás dele. Foster fez um sinal e vários homens diante de painéis começaram a mexer com alavancas e botões. Uma estranha luz parecia envolver o ‘vagão’ até cobri-lo todo, num brilho ofuscante e desaparecer em seguida, para espanto dos que ficaram.
Foster aproximou-se do local onde deveria estar o ‘vagão’ e murmurou num sorriso cínico: – Não é que funciona?

***

O ‘vagão’ surgiu em meio ao platô de uma montanha, mais ou menos na metade da altura da mesma, com árvores e arbustos por toda parte. Antes de descer, Akim pediu ao Capitão Linterbaun que conferisse “quando” estavam e a resposta foi quase uma comemoração:
– Mil e oitocentos anos antes de Cristo, General.
Akim abriu um largo sorriso e respirou fundo. Contemplou a savana e por alguns instantes apagou da mente as dolorosas lembranças de uma guerra perdida, permitindo-se uma euforia provocada pela esperança.
– General – disse Linterbaun – o senhor está certo de que aqueles deuses virão?
Akim mostrou-se surpreso, pois em tantos anos de cega devoção, jamais Linterbaun ousou questionar seus propósitos, limitando-se a usar toda sua capacidade para cumprir suas determinações. – Não entendi, Linterbaun?!
O Oficial passou a língua nos lábios e escolheu cuidadosamente as palavras:
– General, nós poderíamos usar a máquina do doutor Foster para voltarmos alguns anos e mudarmos nossa sorte na guerra. A meu ver, uma atitude mais viável do que retroceder milhares de anos sem t ermos certeza do que encontraremos aqui.
Akim franziu a testa e esbravejou:
– O que deu em você, Linterbaun? Resolveu questionar meus atos logo agora? Eu sei o que estou fazendo! Voltar alguns anos é impossível, pois o tal do Salto Quântico só permite grandes hiatos no tempo e eu vim aqui buscar for ças muito mais poderosas do que nossa vã tecnologia pode opor. O reforço que levarei de volta ao nosso tempo será a arma definitiva.
Linterbaun optou por nada dizer. Se seguiu Akim até esses derradeiros momentos, por quê haveria de agir diferente logo agora, quando seu líder parecia estar com a certeza do sucesso? Por seu turno, Akim estava exultante e completou:
– Eu sei o que estou fazendo, Linterbaun. Quando voltarmos para o nosso tempo levaremos meu pai Ogum para lutar ao nosso lado.
E ele gargalhou, sob os olhares curiosos dos demais oficiais que descarregavam seus equipamentos do ‘vagão’.
– Ogum é grande! – concluiu. – A vitória será nossa!

***

Adebisi acordou todo suado no meio da noite. Levantou-se e passou entre os que também ali dormiam e foi até a porta da cabana, onde havia uma fogueira acessa e mais adiante um grupo de homens mais velhos do que ele montava guarda com suas lanças de madeira. Eles notaram sua presença mas fizeram pouco caso, pois ele ainda não era um guerreiro e nem mesmo havia se casado para reclamar qualquer coisa ou ter a importância necessária para que se importem com ele.
Era noite de lua cheia e o céu estava cheio de estrelas, mas algo de sinistro assombrava sua mente jovem e confusa com tudo aquilo que os deuses queriam que visse e soubesse.
Tudo era confuso e seu vocabulário por demais simples para definir o que está acontecendo. Ele foi-se afastando cada vez mais da aldeia até chegar num ponto onde tinha visão livre para as montanhas ao longe.
O que os deuses querem? O que há naquelas montanhas que o faz sentir tanto medo?
Ele sentia-se inseguro diante de toda aquela grandeza que lhe abria aos olhos. O escolhido dos deuses não se achava um privilegiado nem mesmo um homem especial, principalmente quando voltou seus pensamentos para os homens que montavam guarda na aldeia. Todos maiores e mais fortes do que ele.
Ao contemplar as montanhas mais uma vez, Adebisi sentiu um frio na barriga. Algo muito ruim estava por vir e os deuses não iriam ajuda-lo.
Ele fechou os olhos e lembrou do sonho em que um deus surgia entre os homens, todo coberto por palha da costa e portando um pequeno cajado de madeira, tão pequeno que era do tamanho do seu braço. O deus estava feliz e dançava diante de homens e mulheres que, em sinal de respeito, ajoelhavam-se para em seguida tocar o chão com suas cabeças.
Adebisi novamente abriu os olhos. Só via a montanha, sem deuses e sem salvação.

***

Giácomo e Roberto estavam ansiosos, até que surgiu Fraga em companhia de Tadeu e de um agente negro alto, de feições finas e aspecto jovem, vestindo o indefectível terno preto.

Por seu turno, Fraga mal se acostumava em ver o deus com trajes, digamos, ocidentais, sem aquelas argolas e outros apetrechos que lhe davam um ar demasiado africano.
– Senhores, esse é o Comissário Franco, que comandará a missão.
O deus-Franco adiantou-se e foi logo dizendo:
– Saibam que estamos indo ao ano mil e oitocentos antes de Cristo, numa missão que envolve seres extradimensionais cuja existência desafia nossas concepções e não tem paralelo entre humanos. Os detalhes estão no relató rio preparado pelo Resgate de Informações.
Tadeu ergueu o braço e indagou:
– Por que devo ir também? Missões desse porte nada têm a ver comigo. Meu negócio é o gabinete.
Fraga levou o dedo aos lábios. Inútil.
– Silêncio porra nenhuma! Eu sou historiador e não agente!
O deus-Franco virou-se para Fraga e indagou:
– Eu pedi um psicólogo!
– Eu sei – e apontou para Tadeu.
– Mas eu sou psico-historiador e não psicólogo! – protestou.
– Não é a mesma merda? – Fraga insistiu.
– Claro que não. Nada a ver!
Fraga olhou para o deus e disse:
– Culpa do Departamento de Recrutamento e Seleção que parou de contratar psicólogos e remanejou os psico-historiadores – e deu de ombros.
– Sei – disse o deus. – Contenção de despesas.
Giácomo e Alves se entreolharam. Esse tal de Franco parecia ter ascendência sobre Fraga que é um Comissário.
– Eu não serviria para nada lá – continuou Tadeu – a minha especialidade é o século 25. O deus ignorou, mas Fraga ficou surpreso. De quando seria Tadeu?
– Nasci em 1975, mas fui formado aqui mesmo, na Empresa, por isso pude especializar-me no século 25, o século neutro.
Vivendo e aprendendo. Fraga sabia dos relatórios e documentários sobre o século 25 e suas tragédias, mas não sabia que havia um psico-historiador especializado naqueles tempos tão misteriosos.
Na Intempol, nenhum acaso é por acaso.
– Teremos um aliado que nos acompanhará. O nome dele é Francisco Ferreiro, africano que chegou ao Brasil em fins do século 19 e lá se estabeleceu, fundando um terreiro de Candomblé , a Casa Branca do Engenho Velho, no Rio de Janeiro.
Franco parou de falar porque Fraga deu-lhe um tapa no ombro e disse:
– Por acaso foi para achar esse sujeito que enviamos o Sobrinho para o século 20?
– Sim – respondeu o deus.
– O que houve?
– Um pequeno engano – começou Fraga – o computador pirou de novo e trocou alguns dados essenciais da missão. Em vez de ser enviado para o começo do século 20, ele foi parar em 1986, num terreiro de Umbanda, onde destratou um pai-de-santo.
– E daí?
– E daí que o pai-de-santo não gostou do que ouviu e o resultado foi esse que vou te mostrar:
Ele fez um gesto e dois seguranças trouxeram Sobrinho, que vestia uma saia vermelha e trazia uma rosa presa ao lado da orelha:
– Ría-rá-rá-rá! Cadê o marafo? – Sua voz soava como a de uma mulher bêbada.
Os outros olhavam espantados. O tempo todo Sobrinho mantinha os olhos fechados e requebrava levemente os quadris. Nem parecia ele.
– O que significa isso? – O deus perguntou.
Sobrinho (?) virou-se para o deus e respondeu:
– Eu sou Pomba-gira Sete-rosas e quero marafo! – em seguida olhou de cima a baixo para Giácomo e disse: – Môcho bunito!
– Sai prá lá, assombração! – disse Giácomo, benzendo-se.
Roberto Alves não perdeu a piada: – É mole? E quem vai botar a Pomba-gira para subir?
Os seguranças levaram Sobrinho-Pomba embora e em seguida entrou um homem negro, trajando um terno de linho branco e aparentando cinqüenta anos. Ele exibia um olhar desconfiado e parecia pouco à vontade.
– Senhor Francisco Ferreiro? – Fraga perguntou.
– Sou eu – o sotaque soava como o de um Preto-velho.
– Sabe por que está aqui?
Ferreiro fitou Fraga nos olhos e respondeu:
– Vosmecê não precisa contar tudo de novo, porque seu amigo Valladão já me contou tudinho.
O deus adiantou-se e foi até Ferreiro, cumprimentando-o com um caloroso aperto de mãos. – Senhor Francisco Ferreiro, é um prazer imenso para nós estarmos na presença do Babalossain. Bem-vindo!
Ferreiro sorriu e devolveu um ‘muito obrigado’, enquanto seu olhar ainda transmitia uma certa incredulidade quanto ao que ia acontecer.
– Acho que estão todos aqui – disse Fraga, voltando-se para o deus.
– Estão todos aqui – disse o deus.
Fraga entregou a Ferreiro uma caixa e um cartão, perguntando a seguir:
– Já sabe usar?
– Acho que sei, sim – respondeu Ferreiro, olhando para ambos – o comissário Valladão ficou muito tempo me explicando.
Todos digitaram alguns números na caixa, menos Ferreiro, pois foi Fraga quem digitou-os para ele, afastando-se um pouco e dizendo:
– Quando Franco – apontou para o deus – ordenar, é só passar o cartão pela fenda. Sabe como é?
– Sei sim – respondeu Ferreiro.
O deus piscou para Fraga e disse:
– Senhores, é agora!
Todos passaram os cartões e sumiram diante dos acostumados olhos de Fraga, que murmurou um ‘boa sorte’ assim que se foram.

***

O deus, Tadeu, Giácomo, Roberto e Ferreiro surgiram próximos a uma árvore grande às margens de um rio. Ao longe uma montanha dominava a paisagem e o canto dos pássaros fazia-se ouvir.
– Chegamos! – disse o deus, olhando ao redor.
Ferreiro agachou-se na margem e apanhou um pouco de água com a mão em concha. Disse:
– Mãe África, tô de volta!
– Sabe disso pelo gosto da água do rio? – Indagou Tadeu, surpreso.
– Não, mizinfio. O Comissário Valladão me contou que eu viria para cá.
O deus apontou seu aparelho para montanha e viu o alarme disparar.
– Akim já chegou! Temos pouco tempo!
Giácomo sussurrou no ouvido de Roberto: – Será que as tribos dessa época têm aquela estranha tradição de oferecer as mulheres da aldeia para os viajantes?
– Sei lá! Acho que têm!
– Beleza! – comemorou Giácomo.

O grupo começou a caminhar, seguindo o deus e o curso do rio.
Caminhando com eles, Ferreiro olhou para o chão e murmurou:
– “Ogum mo pê”!
E o grupo prosseguiu.

Continua...

domingo, 3 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 1ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

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Ano 2472, em algum lugar na África Austral.


Quando se sabe que chegou o fim? Para um militar, é quando se descobre que a guerra está perdida.

O General Julian Akim estava na segurança do seu bunker onde aguardava a última esperança para sua causa ou para o seu ego ferido. Atrás da porta de metal, um gênio da física quântica, o último ganhador do Prêmio Nobel de Física da derradeira premiação de 2460, trabalhava num ritmo frenético para provar sua teoria na prática.

“Ele não apenas tem de estar certo,” pensava Akim, “mas precisa estar certo”.
– General! – Um oficial negro, bem alto, com as divisas douradas reluzindo nos ombros do uniforme verde-escuro, entrou sem se anunciar.
– O que foi, Linterbaun?
O Oficial ficou em posição de sentido e anunciou solenemente: – General Akim, o doutor Willian Foster conseguiu!
Akim mal podia acreditar no que ouvia. Enfim a esperança derradeira se concretizara. Ele ainda poderia vencer.
O Generalíssimo se levantou, derrubando as garrafas de whisky que esvaziara há pouco. Correu com a alegria de um colegial em fim de turno, seguido de perto por Linterbaun, até a porta de ferro atrás da qual havia um grande laboratório, repleto de homens de jalecos brancos. Todos ficaram em posição de sentido, exceto um velho negro com cabelos brancos e ar cansado. Foi a ele que Akim dirigiu a palavra.
– Doutor Foster!
O velho sorriu e assentiu, apontando para uma estrutura de aço na forma de um vagão de trem.
– Sim, meu amigo, eu consegui. Nós conseguimos! Agora é possível retornar no tempo.
Akim deu um forte abraço em Foster. Há duas décadas, quando ele ainda era um jovem oficial do exército da Confederação da África Austral em visita ao Brasil, conheceu este notável cientista norte-americano que abandonou seu país para lutar pela causa africana no longo conflito mundial. Os dois logo se tornaram amigos, a despeito da diferença de idade e de algumas desavenças políticas. Enquanto Foster prosseguia em silêncio com suas pesquisas, Akim conspirava para se tornar o ditador do que ele convencionou chamar de ‘Nação Africana’, um grande e grave equívoco.
Depois de muitas conspirações, traições, intrigas, espionagem, chantagem e suborno, Akim emergiu como o Líder Supremo da Confederação da África Austral, a despeito da guerra que devastava o mundo. Sem escrúpulos, envolveu ainda mais seu país naquele conflito genocida, contrariando a todos que viam nele uma esperança para a paz.
Agora tudo estava perdido: cidades, satélites, barragens, pontes, usinas, plantações e indústrias. Em alguns lugares a civilização simplesmente desapareceu e áreas antes superpovoadas eram cenários abandonados. O pouco que restou estava espalhado em bases subterrâneas em meio às florestas e nas montanhas, numa heróica e inútil resistência.
Akim acariciou a estrutura de aço, virou-se para os cientistas e militares que ali estavam e disse:
– Quero que contatem as tropas mais próximas! – e, depois de procurar por alguém em meio àquela pequena multidão, complementou: – Linterbaun! Forme uma força-tarefa para uma missão da mais alta importância!
O oficial bateu continência e saiu dali a passos largos. Akim novamente virou-se para a estrutura e murmurou: – Obrigado, Ogum! “Adupé” Ogum “bába mi”!

***

Costa da Guiné, 1800 a. C.


Adebisi tinha apenas quinze anos. Em outra época e em outro lugar, seria quase uma criança, mas aqui e agora já era um homem – e dele esperavam que agisse como tal.
O rapaz saiu da cabana da sua família em pleno alvorecer com sua lança de ponta de pedra e a faca de madeira presa à cintura. Caminhou em silêncio na direção dos primeiros raios de sol e diminuiu o passo somente quando deparou-se com Iawana, sua futura primeira esposa. Os outros da tribo apenas olhavam-no em silêncio.
Adentrou a mata sozinho, ciente dos perigos, em busca da novidade que somente um velho seria capaz de lhe contar: uma mensagem dos deuses. E por uma pequena trilha ele foi até uma cabana coberta de palha, em frente a restos de uma fogueira e com potes de barro na porta. Havia mais pessoas por perto, mas se afastaram ao vê-lo, abrindo caminho até a cabana, onde um homem tão negro quanto ele, mas de cabelos e barba brancos, foi logo dizendo: – Então você veio. Exatamente como previsto!

Foi convidado a entrar. Sentou-se diante do velho numa larga esteira de palha trançada e entre eles havia um pequeno tablado de madeira sobre o qual via-se pequenos pedaços de fava ligados por um fio.
– Os deuses disseram que eu viria? – o rapaz não continha mais a curiosidade, a despeito do velho ter iniciado uma prece.
– É Orunmilá quem avisa – disse o velho, jogando as peças de fava sobre o tablado. Prosseguiu: – Os deuses antes distantes vão ficar mais perto de nós. Eles escolheram você para ser o primeiro “élégun”.
– Então eu não serei confirmado como “awí-fakã”?’

O Babalaô sacudiu de leve a cabeça e respondeu num sorriso:
– Os deuses te reservam algo mais grandioso. Você será o primeiro de todos os “élégun”, síntese de deus e homem a partilhar a divindade e a mortalidade com todas as virtudes e vicissitudes que ambas nos presenteiam.
O rapaz nem se preocupou em perguntar o que era isso. Queria saber porque ele e não outro foi o escolhido.
– Com o que você sonhou hoje, Adebisi?
A pergunta do velho o surpreendeu. Por quê o Babalaô quer saber sobre seus sonhos? Ou será que eram os deuses que queriam saber?
O rapaz fechou os olhos e começou a narrar, tomando o cuidado para lembrar-se de todos os detalhes: – Um viajante coberto por palha da costa parou diante de minha casa e entregou-me um pequeno cajado. Depois era eu quem estava totalmente coberto pela palha, passando pela aldeia enquanto todos se ajoelhavam e abaixavam as cabeças.
O velho franziu a testa e em seguida indagou: – Todos? – Sim, Babalaô, todos – o rapaz abriu os olhos – inclusive você.
O Babalaô recolheu as peças sobre o tablado e novamente as jogou, demorando desta vez mais tempo para falar, como se estivesse diante de um enigma.
– Você sonhou com um deus. O primeiro que virá entre os homens sem ser um homem e que prenuncia uma multidão de homens que se farão deuses sem jamais serem deuses. Não era para você que todos se ajoelhavam, mas para o deus.
Adebisi estava confuso. Afinal, o que os deuses queriam dele? Mais oferendas?
– O que os deuses esperam que eu faça, Babalaô? Por que eles apontavam para mim e me chamavam de “abian” (ignorante)?
O velho meneou a cabeça, consultando mais uma vez as peças.
– Tudo. Pelas tuas mãos virá o primeiro deus, que não é o primeiro dos deuses, mas que virá antes dos demais. Depois disso, você deverá ensinar o que lhe for indicado ensinar, para que outros deuses possam vir. Até lá você é só um “abian”.
– Ensinar? Como ensinar o que não aprendi? Como fazer a vontade dos deuses se nem sei o quê fazer e para qual deus? – disse o rapaz em pânico – Vim em busca de uma resposta!
O velho sorriu e rebateu: – Saiba que você não viverá para saber a resposta. Se não fosse assim não o chamariam de “abian”.
Adebisi saiu dali sem esperar o Babalaô dispensá-lo, trêmulo e confuso com a responsabilidade que lhe caíra sobre os ombros.


Reabilitados

Fraga explicava aos hologramas dos Comissários do setor de Reabilitação as instruções que recebera diretamente do Nível 6 e não escondia a insatisfação em lidar com meias-verdades.
Curiosamente, os Comissários pareciam compreender que Fraga não estava convicto daquilo que defendia. Mantinham expressões serenas e assentiam por piedade.
– Senhores, essas são as determinações. Os nomes que lhes passei devem ser reabilitados para uma missão que ainda não foi designada porque o motivo ainda não aconteceu Os ‘holos’ esboçaram sorrisos.
– Liberação autorizada – responderam em uníssono. E os hologramas se desfizeram.
Fraga perguntou-se do motivo de usarem a palavra ‘autorizada’ uma vez que uma determinação dos ‘deuses’ era uma ordem incontestável.
Dois ex-agentes deveriam ser reabilitados para uma nova missão, sendo que um estava preso e o outro curtia sua aposentadoria precoce e compulsória numa ilha do Pacífico. Isso não era tudo, pois um africano a ser recrutado do início do século 20 também deveria seguir na missão. O Ponto de Divergência teve como foco o século 25, estendendo-se até cerca de mil e oitocentos anos antes de Cristo. Isso queria dizer que mais um louco inventou um modo de viajar pelo tempo para bagunçar com o CET e azucrinar a vida de Fraga.
De qualquer maneira acabou a moleza para os dois. Não era só ele quem iria tomar remédios contra o stress e ter crises de impotência.
Horas depois, já em sua sala, Fraga despachou o agente Sobrinho para localizar e trazer o tal brasileiro até a Intempol enquanto aguardava pelo relatório dos psicólogos – mera formalidade já que era tudo uma decisão direta do Nível 6.

***

Tadeu Torres não era psicólogo, mas sim psico-historiador e não estaria ali fazendo de conta que se interessava pelo estado psicológico daqueles dois panacas se não fossem os malditos cortes orçamentários na Empresa. Os idiotas que o designaram para o setor de Reabilitação apenas alegaram que psico-historiador e psicólogo têm ‘psico’, portanto deviam ser parecidos.
Tadeu virou-se para o primeiro – um sujeito simpático, de cabelos e barba pretos – que para a maioria das respostas repetia a frase “é tudo uma questão de ponto de vista”.
Não foi à toa que acabou preso, Afinal, foi a uma LTA para salvar um sujeito que talvez fosse seu avô alternativo. Isso teve que ser feito porque ele havia enlouquecido – diziam – ao vislumbrar que seus análogos das Linhas Temporais Alternativas tinham tido uma vida com a qual ele sempre sonhou, mas que, por razões óbvias, lhe foi negada. Aliás, o análogo que ele prendeu não era análogo dele, mas de seu hipotético avô.
Confuso, não? Tadeu sabia que isso era pinto perto do que já vira.
– Por mais motivos que tivesse, agente Roberto Alves, não se pode sair por aí criando LTAs à vontade.
Ele deu de ombros e disse: – é complicado lidar com o tempo e saber que nunca poderemos evitar qualquer mal sob o argumento de que tudo foi necessário para chegarmos aonde estamos.
– Mas isso faz parte do teu treinamento. Esse tipo de conduta é testada ao máximo antes do Aspirante ser revestido na função de Agente. Precisamos manter a História intacta.
– Agimos como se tudo fosse bom e as tragédias de ontem tivessem conduzido a humanidade para o paraí so do agora. Nos meus tempos de Aspirante eu sequer vislumbrava que houvesse falhas na Empresa ou que pudesse tentar corrigir as coisas. De repente veio-me uma luz e pensei: por quê não tentar?
Dialogar? Perda de tempo. Recebeu ordens para liberar o sujeito para uma missão num passado remoto (como se alguém pudesse atribuir alguma distância na escala do tempo para quem sempre usa o tempo como um lugar próximo e de fácil acesso). Tadeu carimbou um “OK” na ficha dele e passou para o próximo, um sujeito alto, moreno e bem-apessoado.
– Senhor Giácomo – Tadeu quase bocejou – bem-vindo de volta ao serviço ativo. O seu problema está relacionado com a possível conquista amorosa da atriz Marilyn Monroe...
– Alto lá! – Giácomo exaltou-se – Eu conquistei mesmo! Me ferrei, mas conquistei.
Tadeu revisou as anotações e replicou: – Se houve tal conquista, ela foi extirpada do Contínuo Espaço Temporal. De qualquer maneira, ainda pairam suspeitas sobre sua conduta, digamos, leviana.
Giácomo franziu a testa e indagou: – Como assim?
– Qual era seu próximo alvo de conquista amorosa intertemporal?
Giácomo sacudiu a cabeça e disse: – Não posso nem vou dizer.
Tadeu cruzou os braços e especulou: – Aposto como era a imperatriz romana Messalina.
– Não vou dizer.
– Já sei! Era Lucrécia Bórgia.
– Desista!
– Neste caso, sobrou a czarina Catarina II.
– Não vou dizer! – teimou Giácomo – Se depende da minha resposta para me reabilitar, então mande-me de volta para Pitcairn.
Tadeu soltou um muxoxo, carimbou outro “OK” e dispensou os dois. Lá fora, nos corredores da Empresa, eles comentaram:
– Será que fomos mesmo reabilitados, Giácomo?
– Isso eu não sei – e abriu um sorriso – mas ganhei três dicas!

***

Foi com um muxoxo que Fraga acompanhou a entrevista dos dois pelo vídeo. Giácomo decididamente não tem jeito e o outro é pouco confiável, o que significava um abacaxi maior do que o esperado.
Desligou o vídeo, vestiu seu paletó e foi até o andar dos ‘deuses’, onde poucos tinham acesso. Lá chegando, para sua surpresa, havia apenas um jovem negro esguio e alto, sentado numa mesa oval com lugares vazios que deveriam estar ocupados pelos outros ‘deuses’. Fraga tentou agir com naturalidade, esperando que o jovem o convidasse a sentar.
– Aqui estamos novamente, Comissário Fraga – disse o rapaz.
Qual seria o nome daquele deus? Falavam como se fossem velhos camaradas mas na verdade eram distantes demais para qualquer informalidade.
– Meu nome? É tão importante assim? – o rapaz parecia troçar.
Fraga preferiu o silêncio. Estava diante de um homem que nem se dava ao trabalho de esperar pelas perguntas.
– Você não vai, Fraga, e isso já está decidido.
O Comissário respirou aliviado, pois julgava-se velho para novas aventuras desse tipo.
– Este é o nosso alvo – disse o deus, apertando um botão e fazendo surgir sobre a mesa um holograma de um homem negro, aparentando meia-idade.
– O nome dele é Julian Akim. É do século 25, a Zona Neutra, e pode afetar toda Realidade.
Fraga prendeu o riso. Afinal, toda nova missão deveria parecer a mais importante ou a mais perigosa. Uma ponta de insegurança percorreu-lhe por vislumbrar uma missão na Zona Neutra Temporal.
– Assim esperamos, Fraga – o deus continuou com sua irritante mania de responder a perguntas ainda não formuladas. – Preferimos ir ao século 25, conversar amigavelmente com nossos oponentes e resolvermos a questão antes que ela se estenda a nossa jurisdição.
“A jurisdição da Intempol: do início dos tempos até o século 25!”
– Nessa negociação você irá comigo.
Fraga quase saltou da cadeira. Um deus atuando pessoalmente? Talvez o alarme fosse mesmo real e a emergência, a maior de todas.
– O problema dessa emergência, Comissário Fraga, é que, se fracassarmos, correremos o risco de confrontar seres que estão além da nossa compreensão e fora do alcance da nossa tecnologia incipiente.
O rapaz ficou de pé, abriu um sorriso e indagou: – Preparado?
Mas já? Sem um plano, nem mesmo uma tática? E a Caixa?
Fraga não teve tempo para pensar em mais nada. Sentiu uma vertigem estranha, diferente daquelas que sentiu nas primeiras vezes em que viajou pelo tempo. Ao abrir os olhos, ele e o deus estavam lado a lado sobre os escombros de uma cidade em ruínas.
Que cidade devia ter sido aquela? No centro daquela devastação havia uma cratera com cerca de um quilômetro de diâmetro, rodeada por escombros e prédios que retrocederam aos esqueletos, determinando bem o alcance do impacto da destruição.
Tudo que se ouvia era o vento. Nem pássaros, nem vozes, nada. A palavra que Fraga escolheu foi desolação, enquanto ignorava os ecos dos mortos, maldizendo-se pelos sapatos que usava. Devia estar calçando botas especiais. Já o deus temporal caminhava com desenvoltura sobre os escombros. Para onde estariam indo?
– A nenhum lugar especificamente – disse o deus. – Viemos tentar um acordo com os Anos Interditos.
– O tal Julian Akim está por perto? – quis saber Fraga.
– Não. Só começaremos a procurar por Akim se a negociação for bem sucedida. Caso contrário, teremos que voltar.
O deus parou de andar bem na borda da cratera.
– Eles já estão aqui.
Fraga sacou sua Terminator, mas bastou um olhar do deus para guardá-la novamente no coldre sob o paletó.
A espera não levou mais do que alguns segundos. Logo dois homens vestidos de preto e usando óculos escuros surgiram diante deles: um negro e um branco idoso. Este voltou-se para o deus e foi logo dizendo:
– Isto é uma violação do Tratado. Devem voltar agora!
O deus cruzou os braços e rebateu:
– Viemos em paz para tratarmos de um assunto da máxima urgência que requer sua cooperação.
Os dois homens se entreolharam e o idoso foi taxativo:
– Requerem a nossa cooperação?
– Sim – o deus falou com humildade.
– Optamos pelo status quo. Não devem agir nesta Zona Temporal sob pena de iniciar uma guerra – disse o idoso.
– Se não detivermos Julian Akim antes que ele volte no tempo, teremos um problema muito maior do que uma guerra.
– Eu duvido! – interveio o negro. – Se ele voltar no tempo, vocês estarão com um problema, pois o passado deste século é sua jurisdição e não nossa.
– Temos que deter Akim antes que ele traga para este tempo forças que nenhum de nós poderá ousar confrontar – insistiu o deus.
– Então aguarde que ele volte no tempo e façam o que acharem melhor, mas aqui é a Zona Neutra e vamos mantê-la assim.
Fraga irritava-se com a prepotência deles. Tinha vontade de dizer ao deus “manda esses caras para a puta que o pariu e vamos caçar o tal Akim antes que seja tarde demais”. Mas ‘antes’e ‘tarde’ eram conceitos totalmente vazios naquela situação.
– E se eu requerer a mediação do Nível Sete? – Essa proposta do deus surpreendeu Fraga. Então há mesmo um Nível Sete?
Os homens dos Anos Interditos sorriram e o idoso disse: – O que convencionamos chamar de ‘Nível Sete’ serve apenas para disciplinar as relações e mediar conflitos entre as Linhas Temporais, mas em todas existe a proibição pós-século 25 e isso está muito acima deles. A Zona Neutra é uma cláusula pétrea no Tratado e não aceitaremos emendas, alterações ou exceções. O deus pareceu desistir. Ficou ali, parado, olhando-os como quem decide se haverá briga ou não. Por fim, disse:
– Cumpra-se o Tratado.
O idoso e o negro desapareceram. Em seguida, Fraga viu-se de volta àquela sala com o deus. – Fracassei! – Esbravejou o deus, socando a mesa.
Fraga nada tinha para dizer, mas lembrou-se de que o deus já havia se escalado para missão, portanto sabia que a negociação fracassaria.
– Não sabemos de tudo, Fraga. Eu tinha esperanças de agir em cooperação com os Anos Interditos, mas eles são inflexíveis e nos temem tanto que a qualquer movimento nosso eles ameaçam com uma guerra.
O deus sentou-se na cadeira, desolado. Fraga indagou:
– Eles se arriscariam numa guerra?
O deus soltou um muxoxo e respondeu:
– Com certeza! E nas simulações que fizemos o resultado de uma guerra seria um desastre de proporções apocalípticas, o fim.
– E eles também sabem disso, não sabem?
– Sim, Fraga. Eles sabem. Todavia, os Anos Interditos são povoados por homens diferentes, com outros valores.
– Como assim?
– Eles acreditam religiosamente que se nos fizerem qualquer concessão estarão se condenando ao desaparecimento.
O deus estava transtornado, mas para Fraga seria interessante ver um Nível 6 em ação.
Mas que ameaça seria essa? O que de tão grave pode acontecer (ou não acontecer) no passado que invoque a presença de um Nível 6?
– Na costa da Guiné – começou – meus ancestrais iniciaram uma religião que existe até nossos dias. Mas antes, quando o conhecimento era o único elo entre homens e deuses, as divindades que eles veneravam decidiram se aproximar. E num dia, cerca de mil e oitocentos anos antes de Cristo, o primeiro Orixá veio a Terra, na forma do primeiro “élégun”, iniciando uma nova Era.
Fraga acendeu um cigarro e sorriu. O deus não gostou e fitou-o sério.
– A ignorância e o preconceito andam juntos, Fraga. Não estou falando de nós a quem muitos consideram deuses, mas aos que são de fato divindades, seres acima de nós e abaixo do Deus Supremo e que levam uma existê ncia distante da nossa compreensão. Essas divindades são chamadas de Orixás.
Será que a missão teria lugar num terreiro, com muito charuto, atabaques e imagens de santos católicos?
– Nada disso! Apague essa impressão equivocada. Falo de mil e oitocentos anos antes de Cristo, quando os Orixás ainda eram Imóles, ou seja, divindades que não eram formalmente adoradas pelo homem. Nessa época, o culto que havia naquela região era o de Ifá, com seus sacerdotes, os Babalaôs, no centro da vida religiosa daquele povo. Ainda não existiam Babalorixás, Ialorixás, Babalossains, Ogãs e muitos outros.
E o que diabos tem isso a ver com a missão? – Tudo, Fraga! Mil e oitocentos anos antes de Cristo o primeiro “élégun” estava para ser confirmado e por causa dessa iniciação houve uma cisão entre as divindades: Quatrocentos Imóles queriam se aproximar do Homem e transmitir seus conhecimentos e os duzentos restantes abominavam tal idéia. Como os primeiros fossem maioria, os segundos se rebelaram e quiseram destruir o mundo para que não restasse um só humano vivo para receber os conhecimentos dos Imóles. Segundo as lendas, os Imóles rebeldes foram destruídos por Olodumare, a exceção de um: o futuro Orixá Ogum.
Quatrocentos de um lado e duzentos do outro? Dois terços contra um terço? Da mesma forma – e pelos mesmos motivos – que a rebelião bíblica dos anjos?
– Semelhanças existem, Fraga. Deveria ter te dado algum livro de Pierre Verger antes, mas agora é tarde. Independente da quantidade envolvida, aquilo foi mesmo uma guerra.
– E essa guerra teve um final feliz?
– Os Imóles vitoriosos se tornaram os Orixás e Ogum tornou-se um deles. Não me pergunte o que realmente aconteceu naqueles dias tão decisivos, pois fazem parte da nossa Zona de Segurança, que são aquelas épocas da História que devemos evitar o máximo de intromissão a fim de afastarmos qualquer risco de uma LT caótica, onde a existência da raça humana seja menos do que uma hipótese.
– E o que mais? O que a Intempol tem a ver com isso?
– É lá que Julian Akim está. Ele é um iniciado no Candomblé, um ogã de Ogum. Akim é um homem desesperado e pretende encontrar Ogum quando este ainda não era um Orixá e estava entre os que pretendiam destruir o mundo. Não sabemos o que ele pedirá ao Ogum-Imóle, mas certamente ele travará um contato com seu ‘pai’ e as conseqüências serão imprevisíveis. Devemos impedir isso a todo custo.
O deus fez um rápido movimento e suas roupas mudaram. Do abadá para o formal terno-e-gravata dos agentes e também estava sem as jóias, argolas e outros adornos.
– Bem, Fraga. Pode me chamar de Agente Joaquim Franco, ao menos enquanto durar a missão.
Fraga disse um debochado ‘muito prazer’ e apagou o cigarro.
– Mãos à obra.

Continua...

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