quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Levantando o lençol da Realidade: entrevista com J. J. Veiga


J. J. Veiga, autor de vários livros de realismo fantástico como Os Cavalinhos de Platiplanto e A Hora dos Ruminantes, deu sua penúltima entrevista, em 1999, antes de falecer no ano seguinte, ao fanzine Megalon. Republicada no site original da Intempol e agora no IntemBlog, podemos rever o depoimento do mestre sobre a literatura fantástica no Brasil, suas influências e seu processo criativo.

***

Octavio Aragão: - Vou começar perguntando uma coisa básica para o Sr.: sobre os caminhos de composição. Qual a diferença de raciocínio para a composição do conto, da novela e do romance?

J.J Veiga: - Vou falar do ponto de vista pessoal mesmo: não tenho nenhuma teoria a não ser a que criei pra mim mesmo. Não conheço outra. Eu tive que desenvolver essa para mim. Eu tenho um assunto, me empolgo com ele. A primeira idéia é algo grande, fazer um romance. Então, eu fico com aquilo na cabeça, vou pensando, como quem puxa um fio, né? Vou puxando ali, aqui e vai entrando até dizer: “isso tá bom, isso dá”. Se o asssunto cresce, penso: “vai dar romance”. Outros, não crescem. Acho que vai do assunto ou de cada pessoa.

Cada assunto tem um tamanho, quer dizer: para a obra realizada, existe um tamanho. Não adianta você forçar, botar coisa demais só para fazer livros grandes, porque fica sobrando, não encaixa. Para mim, é o tema que determina a extensão da obra, ou pode ser também da minha situação, minha fase mental. O assunto é quem me diz se vai sair uma coisa maior, um romance, se vai sair um conto... é assim: “para fazer um romance daqui, eu teria que enfeitar demais, eu teria que criar coisas e ficariam sobrando”.

E isso todo mundo percebe, né? Mesmo sem saber bem o por quê, as pessoas não gostam.

Então é isso: passo uns dias com o assunto, vou desenvolvendo. Antes de sentar e começar a escrever, penso em tudo e faço um roteiro simples. Quando sento para escrever, já é com aquele roteiro, aquele mapa, diante de mim. O que não quer dizer que eu siga aquilo à risca. Lá adiante, em determinada passagem, me vem uma idéia que não tinha vindo antes que é boa , então eu a adoto e, às vezes, isso me obriga a me afastar do roteiro, tomando outros caminhos. Posso lá adiante cortar ou fazer modificações, mas é assim que eu trabalho. Não tenho um esquema para tudo, não . Como já disse, o tema é quem me guia, depois de pensar nele vários dias. Às vezes me pego sozinho e aí é que vejo o que a história pode me dar, depois vou programar aquele roteiro que falei e atacar.


Fábio Fernandes:- Dependendo do assunto, o Sr. costuma fazer muita pesquisa?

JJV: - Dependendo do assunto, sim. Por exemplo: para escrever A Casca da Serpente , que trata de Canudos - não sei se conhecem esse livro - eu tive que reler Os Sertões, de Euclides da Cunha, que havia lido na juventude, para me botar em dia, pois se basear só na memória não dá. Tem que fazer uma pesquisa.

OA: - Qual o encadeamento de eventos na hora de escrever? O Sr. obedece alguma regra ou intuição? Em que ponto o romance ou conto se torna algo dentro da linha do fantástico ou se mantém realista? É na hora da concepção inicial?

JJV: - Acho é desde o início. Na maneira de ver, encarar e de entender o mundo e as coisas. Acho também que, além do que nós estamos vendo aqui na superfície, por trás, por baixo, tem muita coisa que as pessoas comuns não vêem. Cabe ao escritor a obrigação de leventar o lençol da Realidade e olhar mais a fundo. Ir além. Então, esse 'querer ver além' é que é interpretado como fantástico. As pessoas pensam: 'Se não tô vendo, é fantástico'. Mas, se olhassem bem, veriam que não é nada fantástico, são pequenas coisas quase imperceptíveis que compõem a Realidade, fazem parte do real que está aí. Apenas não está gritante, não está berrante, é uma camada mais profunda.

OA: - No caso da A Hora dos Ruminantes, isso fica bem claro. Se o leitor parar e pensar bem, seguir todas as pistas, não há nada de tão sobrenatural, não é mesmo?

JJV: - Exato. É o que está acontendo todo dia. Coisas incríveis acontecem, ainda mais no nosso mundo Latino Americano e 3º mundo em geral, né? Coisas que em outros países já estão resolvidas a séculos, nós ainda lutamos para conquistar. Essas são 'as coisas fantásticas'.

OA: - A literatura fantástica é atribuída geralmente aos latinos, apesar de outras nacionalidades praticarem outro tipo de
fantástico. A que o Sr. atribuiria isso?

JJV: - É uma coisa muito antiga... do século passado na Europa, mas era mais fantasmagórica do que fantástico propriamente dito. É o nosso mundo que, para os olhos europeus, é fantástico. Nós é que devemos olhar para ele (o Nosso Mundo) e contar, escrever sobre as coisas que acontecem aqui. É isso: a diferença de visão. Por exemplo: ainda hoje você convive com leprosos, no entanto, na Europa é mais uma palavra que você dificilmente ouve, pois já está resolvidomdesde a séculos, tem em livros de histórias, coisas antigas e tal. Aqui há em nosso convívio. Não é fantástico?

FF: - Mostrar esse real (fantástico) é uma maneira de apontar as mazelas do país?

JJV: - É uma maneira de mostrar, sim. Mas acontece que a maioria das pessoas não está muito interessada em saber disso. Sempre há um grupo, uns poucos, que se interessam por esse trabalho que a gente faz. Vocês, por exemplo, que entenderam Ruminantes, são pessoas que querem ver mais. Mas, não são parte do pessoal que está ali na superfície.

E há diferenças entre os autores. O Murilo Rubião, por exemplo, é, para mim, mais surrealista. Escreve sobre coisas que só existem na imaginação dele e não sobre o que está aí para se ver. Não estou falando sobre qualidade. Ele é bom, mas tem outro estilo.

OA: - Tem uma dúvida que me assombra: o Brasil de hoje cai mais para o 'fantástico' ou mais para o 'aterrorizante' em comparação ao Brasil de ontem?

JJV: - Olha eu não sei se a minha opinão é válida, pois você tem que levar em conta o elemento idade, mas eu acho mais aterrorizante, sim.

Por exemplo, eu dos anos 70 aos 90, todo ano tirava férias - em 70 eu já tinha 60 anos! - ia para Góias dirigindo sozinho. Minha mulher sempre dizia que iria no próximo ano, mas nunca me acompanhou. Durante todos esses anos tirava férias em abril, pegava o carro, começava por Brasília, onde tenho irmãos, ficava lá um ou dois dias com eles e depois saia dirigindo por estradas de terra, visitando parentes e amigos no interior. Ficava por lá cerca de um mês. Meus irmãos ficavam apavoradas, pois eu dava carona às pessoas na estrada. Eles me diziam: “Não faça isso! Você nem devia vir de carro, muito menos dar carona!”. Eu dava ou não, conforme a cara e o jeito das pessoas. Nunca me aconteceu nada. Hoje em dia, eu não faria mais isso de jeito nenhum, nem que tivesse 20 anos! A situação não está para brincadeiras, não.(risos)

OA: - O que é uma coisa muito curiosa, não acha? Nós tivemos várias ditaduras, várias situações de extrema crise econômica, sempre houve miséria de uma forma ou de outra, desde o descobrimento do país. No entanto, eu sinto que agora as pessoas estão muito mais aterrorizadas.

JJV: - Eu sou do tempo que havia mais respeito ao cidadão do que há hoje. Meu primeiro emprego, no Rio de Janeiro, quando cheguei aqui aos 20 anos, foi de propagandista de laboratório de remédios. Eu precisava procurar médicos em ambulatórios e consultórios para vender os remédios. Eu achava médicos em lugares chamados Centros de Saúde, mantidos pela prefeitura.

Cada bairro tinha o seu e, dependendo do bairro, às vezes havia mais de um. Esses Centros funcionavam geralmente em sobrados. No andar de baixo atendiam às emergências e, em cima, tinha um salão com os médicos.

Você chegava, se sentava ali e ficava esperando até ser atendido. A mesma coisa acontece hoje, nos consultórios, mas você paga R$ 100,00 a R$ 200,00 por uma consulta particular e fica sentado lá esperando. Nunca te atendem na hora! Você marca para 2:00 hrs mas o médico atrasa e as pessoas ficam lá, sentadas, esperando a vez. Pensem nisso: hoje é impossível manter um lugar como esses Centros de Saúde sustentado pelo governo municipal. Acho que vocês foram os mais sacrificados.


OA: - O Sr. acha que o fantástico é muitas vezes usado como facilitação? Quer dizer, em determinado ponto da narrativa, o autor se vê num beco sem saída apelando para uma finalização simplista e, quando questionado, explica 'isso é uma história fantástica, sem compromissos com a Realidade'. Isso acontece muitas vezes?

JJV: - É, realmente facilita... para o camarada que quer trabalhar pelo lado facilitário. Será que isso prevalece, dura? Acho que não.

Sei lá... eu comecei a publicar livros depois dos 40 anos (o que não quer dizer que eu tivesse começado a escrever dentro disso. Escrevo desde adolescente! Eram exercícios que eu fiz e que me ajudaram muito. Só que eram como um tesouro secreto), mas sempre me preocupei muito com isso... se estou caindo na saída fácil. Me vigio, me policio muito. Penso: “isso aqui tá bonito, mas muito fácil. Vamos ver isso de novo, reexaminar, botar um microscópio para ver em profundidade.” Por isso eu demoro para publicar um livro.

Depois que me aposentei é que publiquei com mais frequência. Até então, demorava anos de um livro para outro. Eu me obrigo a fazer várias leituras, várias versões... até chegar ao ponto em que... (sorriso)... bom, não sei se chego ao ponto ideal, mesmo, ou se fico cansado de mexer e resolvo considerar pronto.


FF: - O que o Sr. está escrevendo agora?

JJV: - Agora não estou fazendo nada, só escrevendo um conto mensal para um jornal de Brasília: 'O Correio Brasiliense'. Isso porque vivi com boa saúde a vida inteira, até meados do ano passado. Fim do ano passado fiquei 2 meses internado no hospital tomando soro, depois alimentando artificialmente por sonda perdi 15 kg dos quais (já faz 3 meses que tive alta) só recuperei 3kg. Tão me devendo 12kg ainda (risos)! Estou muito fraco, nem tenho saído mais, não tenho muito equilíbrio, fico zonzo.

Assim, da maneira que estou, por enquanto, só faço esses contos. Parei durante a doença, depois telefonei para o jornal e, como eles ainda se interessavam em publicar, eu continuo. Asim, tenho algo para fazer no momento. Não sei se vou ter condições e tempo para fazer mais alguma coisa.

Assunto tem, né? Mas é preciso tempo e, mais do que isso, disposição. No momento, estou ainda convalescente.


FF: - O Sr., aproveitando esse tempo de convalescência, tem lido?

JJV: - Não, aí é que está! Estou numa apatia muito grande que tem me preocupado muito. Pego um livro para ver, leio umas páginas... não interessa, deixo para lá, pego outro, faço o mesmo. Nem ler eu tô conseguindo. Outras coisas, bobagens, coisas leves, que me mandam escritores novos, eu pego e leio para fazer a crítica para mim mesmo - continuo treinando, não é?

É isso. Estou doido para recuperar minha disposição e fazer alguma coisa.


OA: - Dos escritores novos, algum digno de nota?

JJV: -Tem aparecido gente nova muito boa. Um de São Paulo, não me lembro do nome dele agora, é muito bom. Me mandou um livro do qual gostei muito! Mandei até uma carta para animá-lo.

Também tô achando que agora não está difícil publicar como a uns dez atrás. Não sei explicar o fenomeno, se é porque tem mais editoras, ou qual é o motivo. Tem aparecido livros, é verdade, com edições bem menores.


FF: - Fazendo um parênteses aqui, eu li na biografia de Nelson Rodrigues, O Anjo Pornográfico, que nos anos 40 e 50 as tiragens eram coisas absurdas. Se faziam tiragens por exemplo de 10.000, 20.000.

JJV: - Era muito comum livros da José Olimpio com 30.000, 40.000 exemplares numa época em que a população era de 40 milhões - a quarta parte da de hoje! A porcentagem de analfabetismo era maior também e o camarada vendia junto com a editora, que tirava 40.000 exemplares de um livro. Mas também a quantidade de livrarias que tinha no Rio de Janeiro era impressionante! No Centro da Cidade, por exemplo, a Rua São José era só de livrarias de ponta a ponta e dos dois lados. Na Avenida Rio Branco havia várias, no edifício Central, onde os bondes faziam a volta, tinha uma porção de livrarias pequenas... Era impressionante, mesmo!

FF: - Agora, uma pergunta meio comum, mas necessária: quais suas influências?

JJV: - Ah... O Veríssimo. Quando eu li a prosa do Érico Veríssimo, aquele estilo de quem está conversando com a gente, eu falei pra mim mesmo: eu quero escrever como esse sujeito! Até então eu era exagerado, perdia muito tempo com floreios e excessos estilísticos... Foi com ele que aprendi a escrever como quem está batendo um papo com o leitor. Outro foi o Kafka, em termos de estrutura. Mesmo quando as histórias dele parecem inacabadas, são irretocáveis.

FF: - E o folhetim? Publicações em forma de seriado? O senhor costumava ler?

JJV: - Costumava ler, sim. Os folhetins da época eram sempre publicados em jornais e eu gostava muito daqueles finais em suspense, com o herói pendurado na beira do precipício...

FF: - ... como no inglês: 'cliffhanger'!

JJV: - (risos) Isso! Eu gostava muito, mas não creio que tenha guardado muito daquilo. A não ser, talvez, no sentido da literatura como diversão.

3 comentários:

Ludimila Hashi disse...

Que tranqüidade...!
GOstei disto: "isso aqui tá bonito, mas muito fácil. Vamos ver isso de novo, reexaminar, botar um microscópio para ver em profundidade.”

Octavio Aragão disse...

Esta entrevista como Veiga foi um momento especial para mim. Fomos recebidos na casa dele e descobri que Dona Érita, esposa dele, foi minha professora de desenho na Escola de Belas Artes.

Veiga estava debilitado, mas extremamente solícito. Bem-educado. Recebeu-nos com uma tremenda boa-vontade. Pena que se fo, era um gentleman e jamais esquecerei aquela tarde no apartamento na Glória.

Interaubis disse...

Gostei da parte em que ele fala que começou a publicar depois do 40. O 'mito de Rimbaud' pesa sobre os ombros de qualquer escritor iniciante. Dá um alívio ver um escritor com a potência e a tranquilidade do velhinho aí, burilando seus textos com calma até não ver outra saída senão publicar. (Me identifiquei!)

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