sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O ovo e a galinha: conto de Jorge Nunes

Por detrás das grossas lentes dos óculos gatinho, a supervisora Mariete fuzilou com olhar de raio laser os dois agentes sentados do outro lado da mesa. Macedo mascava ruidosamente um chiclete e inspecionava com olhar vazio o teto da sala. Sobrinho brincava de girar o chapéu com um só dedo enfiado na copa e assobiava entre dentes uma melodia infame. A supervisora Mariete suspirou fundo. Estava cercada de imbecis, e se sentia muito cansada e solitária.

Não que ela fosse um exemplo de competência. Também saía às vezes da linha, como no dia em que aceitou um convite para jantar com... Mas isso já é uma outra história, e ela abanava a cabeça como para apagar da memória a lembrança. E só quem sabia dos detalhes do caso eram aqueles dois idiotas do outro lado da mesa. Reuniu toda a indignação suficiente para poder passar uma descompostura eficaz nos dois subordinados e mandar-lhes para a próxima missão. Ergueu a régua no ar e golpeou-a com força sobre a mesa:

- Parem com isso!

O estalo da régua sobre a madeira despertou os dois agentes, que num sobressalto recompuseram-se e se aprumaram nas cadeiras. A supervisora Mariete disse:

- Jogue esta porcaria fora, Macedo. Isso me dá nos nervos.

Macedo levou dois dedos à boca, tirou o chiclete e ameaçou aplicá-lo sob a mesa. Sobrinho olhou para o companheiro e abanou discretamente a cabeça em negativo. Por alguns instantes Macedo ficou indeciso, com o chiclete na mão, até que a supervisora apontou para a lixeira.

- Ali, Macedo - ela disse, levando uma das mãos à testa, enquanto apontava a lixeira com a outra. Ele depositou o chiclete no lixo e voltou à cadeira. A supervisora se levantou e começou a falar:

- Eu devia esfolar vocês. Prendê-los não adiantaria, já que ainda assim não me livraria dos dois. Continuariam no mesmo lugar onde trabalham e que, infelizmente, é onde eu também trabalho. Por isso, só posso mandá-los para o inferno e é exatamente o que eu vou fazer. Vocês são, provavelmente, os piores agentes que já passaram por aqui, e estão por um fio. Mas vou lhes dar mais uma chance para não ganharem um bilhete azul. Ou então para desaparecerem por completo, o que não seria nada mau.

Macedo e Sobrinho se entreolharam enquanto a supervisora se aproximava por trás das cadeiras onde estavam sentados. Ela pôs a régua debaixo de um dos braços e colocou as mãos sobre o ombro de cada um dos agentes. Continuou:

- Mas dessa vez não vou admitir falhas, não vou tolerar nehum descuido! Aliás, se falharem, não sou eu quem vai puni-los. A supervisora deu um sorrisinho sádico. Macedo limpou um perdigoto da calva, lançado pela veemência da supervisora ao articular puni-los. Ela ajeitou o coque atrás da cabeça e apontou com a régua dois envelopes pardos sobre a mesa.

- Aí estão as instruções. Leiam com cuidado, não se precipitem. O caso até que não é complicado, mas em se tratando de dois idiotas como vocês tudo é possível. Agora sumam daqui.

Os dois agentes nível 2 da Intempol recolheram da mesa os seus respectivos envelopes, levantaram-se e saíram da sala. A supervisora Mariete sentou-se em sua cadeira e olhou com desalento para a folhinha: ainda faltavam quatro meses para as suas férias. Que ironia! Ela era supervisora da Intempol, a respeitável instituição responsável pela ordem no tempo.

Teoricamente dispunha de todo o tempo do mundo, mas era escrava da enervante e arrastada seqüência normal de quatro longos meses, até o doce descanso no lugar e tempo que quisesse. Escolher o local onde passar as férias e o período histórico que desejasse era um dos poucos privilégios de trabalhar para a Intempol que a supervisora considerava. Às vezes pensava como seria bom trabalhar, por exemplo, como bibliotecária numa obscura cidadezinha do interior, ou algo assim. Alguma coisa bem prosaica a simples, sem a pressão dos ponteiros dos relógios, sem o labirinto dos dias, meses, anos e séculos nas folhinhas sufocando na cabeça. E, principalmente, sem ter de aturar as chantagens de certos agentes... Levantou os óculos para a testa e apertou os olhos com os dedos. Estava cansada, muito cansada.

No corredor, Sobrinho comentou com Macedo:

- A velha está cada vez pior. Vive nos chamando de imbecis, mas esquece das besteiras que faz. Um dia, ainda perco a cabeça e dou com a língua nos dentes...

- Deixa de coisa, Sobrinho. Ela faz bobagem também, mas resolve. E ainda tem que resolver as nossas. Vamos até o banheiro. Quero te mostrar uma coisa.

- Tá me estranhando, parceiro?

- Cala a boca e entra aí. Macedo abriu a porta do banheiro e empurrou o parceiro para dentro. Tirou do bolso um pacotinho de plástico transparente contendo um pó branco.

- Sabe o que é isso? - perguntou Macedo, sacudindo com dois dedos o pacotinho. Ele mesmo respondeu:

- Cocaína. Lembra daquele cara que a gente prendeu semana passada, contrabandeando tudo quanto é porcaria pelo tempo? Ele tentou me subornar com ela. Disse que valeria uma grana alta.

- Sim, eu sei, mas só em determinadas épocas, quando era proibida. Aqui não vale nada.

- Foi o que eu disse pro cara, antes de botá-lo em cana. Mas acontece que eu nunca experimentei, dizem que dá uma sensação incrível para quem cheira. Você se sente mais seguro, mais confiante, fica com a atitude ideal para um policial. O cara me ensinou como se faz. E aí? Vai nessa?

- Por que não? Não pode fazer mais mal do que a comida daqui. E olha que o que ela faz é justamente o contrário: dá desânimo e enjôo, quando não diarréia - e Sobrinho olhou pensativo para as latrinas. Macedo pegou da pasta um pratinho que apanhara na cantina, acendeu o Zippo e com ele aqueceu a sua superfície. Espalhou com cuidado um pouco do pó sobre o prato.

- O calor tira a umidade, e faz o pó ficar mais solto - explicou - Me empresta o teu cartão cronal.

Sobrinho tirou do bolso o cartão e passou-o ao colega, meio desconfiado. Reclamou:

- Olha lá, rapaz, o que voce vai fazer com o meu cartão? Sabe como é a burocracia para a segunda via...

- Calma, Sobrinho. Ele começou a separar o montinho de pó com o cartão, em duas carreiras estreitas e paralelas, de mais ou menos sete centímetros de comprimento. O cartão de plástico, usado da mesma forma que uma faca picando salsa, fazia um ruído de código morse enquanto delineava na superfície do prato as duas tiras de pó. A operação foi meticulosa, e Macedo cuidava para que as carreiras fossem as mais finas e regulares possível. Depois de se dar por satisfeito com a forma das paralelas brancas de pó sobre o prato, devolveu o cartão a Sobrinho, tirou da carteira uma nota de dez e enrolou-a em canudo, como lhe havia dito para fazer o homem que tentara suborná-lo. Sobrinho acompanhava a operação enquanto acendia um cigarro. Ele perguntou:

- E agora?

- Agora a gente cheira essas carreiras, aspirando bem fundo - respondeu Macedo. Curvou-se sobre a pia onde estava apoiado o prato, enfiou uma das extremidades da nota em canudo em uma das narinas, ao mesmo tempo que fechava a outra com um indicador, e aspirou toda a carreira da esquerda para os pulmões. Sentiu uma ligeira ardência por dentro enquanto o pó passava pela narina, atravessava a traquéia e se infiltrava nos brônquios, até que se alojasse nos pulmões, de onde se espalharia pela corrente sangüínea e alcançaria o cérebro, transformando Macedo no super-policial que ele imaginava o pó ser capaz de criar. Fungou algumas vezes e estendeu a nota enrolada para o companheiro:

- Sua vez agora, parceiro. Sobrinho repetiu a operação. Macedo passou um dedo pelo prato recolhendo os resquícios do pó e passou-o nas gengivas. O outro perguntou:

- Pra quê isso, cara?

- Sei lá. Mas o cara disse que é assim que se faz. Vamos nessa. Percorrendo o branco corredor de paredes nuas do terceiro andar da Intempol até o elevador, entre solenes meneios de cabeça em cumprimento a esse ou aquele agente, Macedo e Sobrinho sentiam crescer a sensação de euforia e excitação que a droga lhes trazia. Sobrinho comentou:

- Não estou sentindo nada, cara. Acho que aquele babaca te enganou. Quer dizer, babaca é você, que caiu nessa. Você é um otário, mesmo, e eu não sei onde eu tenho a cabeça que vou sempre na sua.... Ei, lembra daquela gata do almoxarifado? Ela me deu maior mole, ontem. Acho que vou dar um papo nela. Cara, estou com uma sede. Por que a gente não vai ao bar? Pô, essa cocaína não faz efeito nenhum...

- Cala essa boca, Sobrinho. Parece um papagaio. Sobrinho intercalava cada frase curta com uma fungada e um sacolejar de ombros. O elevador chegou, e os dois agentes desceram ao segundo andar, para o grande salão onde cada agente tinha a sua escrivaninha própria. Cada um buscou a sua e abriram os envelopes contendo a próxima

Enquanto Macedo lia o conteúdo, seu queixo ia desabando. O memorando dizia:

"De: Supervisora Mariete Para: Agente Macedo Assunto: Missão 325/LCG

De acordo com dados apurados em nosso Nível 5, a atuação de alguns agentes da Instituição, ao invés de atender o objetivo de manter a ordem no CET, tem provocado significativas e perigosas alterações na estrutura temporal, causando por vezes um desequilíbrio maior do que o encontrado na situação anterior. Este problema tem sido recorrente, e alguns agentes foram identificados como responsáveis pelo maior número de problemas encontrados. O Agente Cronal Nível 2 Sobrinho é um deles.

A presente missão tem por objetivo a garantia da eliminação do referido Agente, que deve ser realizada a qualquer custo. Dada a impossibilidade de nossos próprios Agentes serem recolhidos à Prisão, foi elaborada uma alternativa. Nossos computadores identificaram uma LT onde o Agente Sobrinho será assassinado no ano de 1998, na cidade do Rio de Janeiro.

Sua missão será acompanhá-lo até a data e local específicos e garantir que o destino do agente Sobrinho se cumpra. Lembramos o sigilo absoluto quanto ao objetivo da missão. O memorando enviado ao Agente Sobrinho contém instruções para que a missão seja apenas a de voltar até 1998 para investigar possíveis anomalias temporais de rotina. E só. Boa sorte,
Supervisora Mariete"


Macedo pôs o memorando de lado e olhou com olhar vidrado para o parceiro. Coincidentemente, Sobrinho tinha acado de ler o seu memorando também, e devolvia o mesmo olhar. Os dois permaneceram se encarando por algum tempo, imersos cada um em seus pensamentos. Sobrinho desviou primeiro o olhar. Fingiu arrumar alguns papéis, mas apenas conseguiu aumentar a bagunça sobre a mesa. O efeito da cocaína tornava ainda mais patética a tentativa. Macedo limpou a garganta e dirigiu-se ao parceiro com voz insegura, sem olhar para ele:

- Brincadeira, hein, parceiro? A velha está de sacanagem com a nossa cara. Voltar no tempo pra nada? Desde quando a gente faz ronda? - Macedo rezava para parecer natural.

- É verdade... - respondeu Sobrinho, evasivo.

Os dois agentes se calaram e conferiram o restante do conteúdo dos envelopes: carteiras de identidade, de motorista e dinheiro da época. Tudo certo. Um homem passou por eles e os cumprimentou com um gesto discreto da mão. Macedo disse:

- Lá vai O'Malley. Ele é que um cara de sorte. Trabalha sozinho e na surdina.

- Qual é, Macedo? Não gosta da minha companhia, é?

- Meu amigo, pode ser que eu me livre dela mais cedo do que você pensa...

- Engraçado: eu poderia dizer a mesma coisa, mas deixa pra lá.

Foram à sala de transporte, digitaram as datas, passaram os seus cartões nas respectivas caixas, e se foram em direção ao Rio de Janeiro de 1998.

Macedo e Sobrinho caminhavam à noite pela Avenida Atlântica. Era verão, o calçadão se apinhava de gringos, de vendedores de todas as bugingangas possíveis, prostitutas e travestis. Nenhum dos dois era muito dado à filosofia, mas não deixavam de se impressionar com o contraste entre a beleza do cenário e os estranhos personagens daquele teatro. A curva do litoral era acompanhada pelo colar das luzes emitidas do alto dos postes, sugerindo uma sensualidade feminina que aguçava a libido dos dois agentes entediados.

Quando não estava analisando a qualidade do material feminino disponível que passava por ali, Macedo pensava na missão. Não tinha a menor idéia do que aconteceria, de como Sobrinho seria assassinado. Não sabia quando, por quem ou por que motivo. Mas olhava atento para um ou outro cidadão suspeito, na esperança de que fosse um assaltante que acabasse de vez com aquela agonia. Dez meses de parceria aproximaram os dois agentes, mas Macedo suspeitava que se a missão não fosse completada ele também estaria em maus lençóis. Era uma questão de sobrevivência e ele não tinha escolha. Tinha de garantir a morte do companheiro, e apelava para sua frieza de policial adquirida em anos de experiência para não se envolver emocionalmente com o problema. Mas transparecia uma ansiedade nervosa, e se assustava à aproximação de qualquer um, aguardando para qualquer momento o acontecimento que mandaria o companheiro para os infernos. Sobrinho mantinha-se calado e de cabeça baixa.

Entraram por uma rua perpendicular, perto do Leme, e ao passarem em frente a uma boate, o sorridente porteiro abriu a porta e os convidou com uma mesura:

- Vai começar o show, cavalheiros. Podem entrar sem compromisso.

Os dois agentes se entreolharam. Sobrinho disse:

- Por que não? Vamos dar uma olhada, Macedo?

- Parceiro, foi a melhor coisa que voce já disse em dez meses. Tá esperando o quê? Entra aí, cara.

A boate era um cubículo apertado, enfumaçada como a praxe recomendava. Uma música 'disco' altíssima fornecia a trilha sonora para três moças de seios nus dançarem sobre seus pedestais, em três cantos da casa. Mesas acanhadas eram iluminadas por pequenas lâmpadas vermelhas. Completavam a iluminação três spots de luz sobre as dançarinas, deixando em penumbra os fregueses, sevidos por garçons usando lanterninhas de mão. Macedo e Sobrinho sentaram-se e pediram cada um uma bebida. Sobrinho escolheu um Campari e Macedo um conhaque. No fundo, um palco minúsculo rodeado de espelhos aguardava o show.

A música parou e foi substituída por outra, mais lenta e sensual. Vinda dos bastidores com passo de pantera, uma jovem de cabelos curtos, espetados e descoloridos, subiu languidamente ao palco. Vestia uma diminuta saia vermelha e um top negro, deixando à mostra uma serpente tatuada na barriga, cuja cauda terminava sob o piercing no umbigo. A jovem começou o seu strip-tease, tirando lentamente cada peça do vestuário até a nudez total, e mostrou-se afinal em toda a sua glória, para deleite dos dois agentes da Intempol.

O show terminou e soaram alguns aplausos esparsos. A moça recolheu do chão as peças de roupa, rodopiou a título de gran finale e retirou-se. A música 'disco' voltou, e imediatamente as três moças de seios nus retomaram o seu rebolar frenético sobre os pedestais. Sobrinho disse:

- Pelo menos a gente se diverte. Melhor do que ficar correndo atrás de malandro pelo tempo. Estou começando a gostar dessa missão...

Macedo levantou um dedo antes de responder, quando uma morena de longos cabelos negros se aproximou da mesa:

- Sozinhos? Posso me sentar um pouco?

Macedo ergueu o olhar e encontrou os olhos da morena:

- Claro, fique à vontade - respondeu, levantando-se.

Ela sentou-se entre os dois e pediu um whisky ao garçon. Escocês. Os agentes não se importaram. Dinheiro não era problema e, mesmo que fosse, a morena merecia todo o whisky que quisesse.

Ela perguntou:

- Procurando diversão, gatos? Talvez eu possa ajudar vocês. Meu nome é Jéssica.

Sobrinho apontou um polegar para o próprio peito e depois na direção do parceiro:

- Eu sou Sobrinho e ele Macedo. Você trabalha aqui, Jéssica?

- Mais ou menos. Digamos que eu preste serviços para a casa. E vocês, o que fazem?

- Nada de mais. Procuramos companhia de belas jovens, como você - respondeu Macedo. Jéssica ajeitou os cabelos negros com um movimento brusco da cabeça e sorriu, exibindo os dentes brancos e perfeitos:

- Parece que encontraram, então. Mas acho que vai faltar companhia para um de vocês. Posso arrumar, se vocês quiserem. Vai custar um pouco mais, mas eu garanto que vai valer a pena.

- Se ela for igual a você não vai haver problemas - disse Sobrinho, acariciando a perna da morena. Jéssica disse:

- É claro que se vocês tiverem alguma coisinha a mais para ajudar seria ótimo. Eu fico bem mais descontraída quando estou ligada, sabe...?

Macedo lembrou-se da cocaína no seu bolso. Talvez fosse aquela coisinha a mais que a morena buscava. Tinha quase certeza de que naquela época a cocaína era apreciada e valiosa. E também proibida. Ele disse:

- Escute, Jéssica: tenho aqui comigo essa coisinha. Você conhece algum lugar onde a gente pudesse conversar mais à vontade?

- Vamos até ao apartamento da minha amiga. Fica a duas quadras daqui.

Os agentes pagaram a conta e saíram acompanhados pela morena. Caminharam até uma esquina e, enquanto aguardavam o sinal para atravessar a avenida, um carro da polícia que estava estacionado em frente à boate se aproximou lentamente e parou em frente aos dois agentes da Intempol. Dois policiais militares saltaram da patrulha ajeitando as calças.

- Boa noite, cidadãos. Documentos, por favor - disse um dos guardas.

Macedo e Sobrinho ficaram um instante sem saber o que fazer. Entreolharam-se indecisos sobre o que responder, e então Macedo começou:

- Escute aqui...

- Cala a boca, babaca! - disse Jéssica - Coloquem as duas mãos no carro e vamos abrindo essas perninhas.

Sobrinho tentou falar:

- Mas... - Você não ouviu a moça, cara? Cala essa boca e fica quieto - disse um dos guardas. Ele voltou-se para Jéssica:

- Quem são os babacas, Sônia? Estão com algum flagrante?

Então Sobrinho entendeu tudo: a tal da Jéssica na verdade era Sônia, uma policial disfarçada de prostituta, e eles caíram direitinho na armadilha.

Puta que o pariu!, pensou. Como é que nós demos um mole desses? Dois policiais tarimbados, acostumados a lidar com malandros de todos os tempos! Mas era melhor não reagir e esperar para resolver a coisa usando o cartão cronal, quando surgisse uma oportunidade. Sônia respondeu ao guarda, indicando Macedo com a cabeça:

- O carequinha aí disse que tinha um presentinho pra mim. Vamos ver o que é. Macedo foi revistado e os policiais encontraram o sacolé de cocaína no bolso do paletó. Um dos policiais falou:

- É, meu camarada. Parece que você dançou. Aqui tem brizola suficiente pra te botar em cana por uns trinta anos... O outro guarda revistou Sobrinho e achou o cartão cronal e a caixa registradora. Mostrou os objetos para Sobrinho e perguntou:

- Que porra é essa, cara? Sobrinho empalideceu. Se acontecesse alguma coisa ao cartão ou à caixa, eles ficariam para sempre presos naquela época. Poderia tentar arrancá-los da mão do guarda, mas talvez não tivesse tempo de se transportar, e eles com certeza atirariam. Macedo arregalou os olhos em direção ao parceiro. Esperou que ele tentasse reagir e que fosse baleado. Mas Sobrinho respondeu:

- São objetos de trabalho, seu guarda. Minha identificação profissional e um aparelho especial. O guarda olhou o cartão e leu:

- "Intempol"? Nunca ouvi falar nessa porra. Que empresa é essa?

Macedo e Sobrinho não poderiam dizer que eram policiais também. Ainda mais "policiais do tempo". Os guardas jamais acreditariam, e talvez só piorasse a situação, se é que isso fosse possível. Era melhor deixar as explicações para algum superior na delegacia. Macedo disse:

- É difícil de explicar. Nós queremos falar com o seu superior. Macedo ganhou uma porrada na cabeça.

- Filho da puta! Tá pensando o quê? O superior aqui sou eu, babaca! Vocês estão fodidos! Vamos em cana! - gritou um dos guardas.

Macedo e Sobrinho foram algemados e entraram na patrulha. Os dois guardas se despediram de Sônia, que foi embora para continuar o seu trabalho. No caminho para a delegacia, os dois agentes não se falaram. Cada um pensava num modo de se livrar da situação. Sobrinho achava que talvez tivessem uma chance de usar o cartão cronal na delegacia. Poderiam pedir ao delegado para mostrar como funcionava o aparelho e sumiriam no tempo, nas barbas de todo mundo. Seria até divertido. Macedo pensava que tudo aquilo favoreceria a missão. O resultado daquela confusão talvez fosse o fim de Sobrinho, como previsto pela Intempol. Acalmou-se e resolveu aguardar o desenrolar dos acontecimentos.

A 12ª Delegacia ficava numa casa velha e mal-cuidada. O delegado titular de plantão, o doutor Raggio, olhava para os objetos pessoais dos agentes da Intempol espalhados sobre a mesa. Ele disse:

- Muito bem. Qual dos palhaços estava com o flagrante?

Um dos guardas respondeu, empurrando Macedo:

- Esse careca aqui. O outro estava limpo.

O delegado voltou-se para Sobrinho:

- Voce está liberado. O outro vai puxar uma etapa por aqui. Antes, eu quero que vocês me expliquem que porra é essa - o delegado apontou para os cartões cronais e para as caixas.

Era agora ou nunca. Macedo foi mais rápido. Já que Sobrinho estava limpo e não seria preso, ele tinha de escapar de qualquer maneira. Conteve o parceiro com o braço e se adiantou até a mesa.

- Pode deixar que eu mostro, doutor. É apenas um aparelho novo que estamos testando. Serve para fazer compras debitando o dinheiro direto da conta do usuário, usando esse cartão. Macedo pegou o seu cartão e a caixa. Continuou:

- A gente digita aqui o valor, o código do produto, passa o cartão nessa fenda e... Sobrinho gritou:

- Espere aí, Macedo!

Macedo fechou os olhos e preparou-se para apertar o botão que o faria sumir dali. Armou uma pose teatral para uma saída em grande estilo e apertou o botão.

Abriu os olhos e teve um choque. Lá estava o doutor Raggio, de braços cruzados, olhando fixamente para ele. Desesperado, Macedo apertou outra e mais uma vez o botão, com o mesmo resultado. Enquanto Macedo martelava o botão alucinado, com o rosto transfigurado, o delegado disse:

- E então? Só isso? Muito bem. Podem recolher o elemento!

Macedo quase desmaiou. O que teria acontecido? Seu cartão não funcionava! Alguma coisa estava acontecendo e ele não sabia o que era. Talvez fosse parte da missão, e ele se agarrava a essa esperança. Sentiu-se desamparado. Em todas as missões, o cartão era sempre uma segurança, era sempre uma forma de escapar de qualquer perigo, e agora ele estava à mercê da linha normal de tempo, como todo mundo.

Sobrinho olhava tudo assustado, mas calado. Esperava que recuperasse o seu cartão quando fosse liberado e então testaria o seu funcionamento. Mas desconfiava que aquela não seria mesmo uma missão como todas as outras. Ainda assim, achava que tudo poderia estar correndo bem, que o caso não influenciaria o desfecho da missão descrita no seu memorando. Não fazia idéia do que tinha acontecido com o cartão de Macedo, mas se aquilo servisse para que a missão fosse cumprida, não via nenhum problema imediato.

Os dois agentes prestaram depoimento. Macedo foi fichado e arrastado à cela. Devolveram a Sobrinho os seus pertences e o liberaram. Sobrinho procurou um local discreto e parou para testar o seu cartão. Com as mãos trêmulas, digitou alguma data a êsmo e passou o cartão. Fechou os olhos com força, prendeu a respiração e apertou o botão.

Nada. Não se movera nem um segundo no tempo. Ele sentou-se na calçada e tentou pensar.

Em sua cela, Macedo também tentava pensar. Imaginava que não haveria problemas com o cartão de Sobrinho, e para escapar dali era preciso usar aquele cartão.

É claro! Tudo armado pela Intempol para garantir que Sobrinho fosse eliminado, sem o que Macedo ficaria preso para sempre no século vinte. Macedo tinha de eliminar Sobrinho pessoalmente para escapar, e achava que seu cartão não funcionaria enquanto Sobrinho estivesse vivo. A Intempol deve ter usado esse artifício para garantir o sucesso da missão. Mas havia dois problemas: o primeiro, como fugir da cadeia; e o segundo, bem pior: se não houvesse problemas com o cartão de Sobrinho, provavelmente ele já estaria longe dali. Mas poderia ser que ele voltasse para libertá-lo, o que seria a atitude mais correta para um agente responsável. E Sobrinho nada sabia sobre aquela história de ser assassinado naquela época.

Macedo encolheu-se num canto da cela e baixou a cabeça, desesperado. A única saída era acusar Sobrinho como cúmplice, e fazer com que ele fosse preso também. Então, acabaria pessoalmente com ele.

Sentado no meio-fio, Sobrinho tirou do bolso do paletó o memorando da supervisora Mariete com a sua missão e conferiu mais uma vez o conteúdo. Sim, lá estava escrito que Macedo seria assassinado e que ele deveria garantir que o destino se cumprisse. O memorando era exatamente igual ao de Macedo, somente as vítimas eram diferentes, mas nenhum dos dois jamais saberia disso. Macedo estava preso, e talvez fosse morto na prisão. Mas como Sobrinho voltaria? Tinha de eliminar pessoalmente Macedo para que o cartão funcionasse. Era a única esperança. Resolveu voltar à delegacia para tentar matar Macedo de algum modo e cumprir a missão.

Sobrinho foi autuado imediatamente. Macedo dissera ao delegado que a cocaína pertencia ao parceiro, e que ele era um traficante procurado e perigoso.

Os dois agentes pegaram trinta anos de cadeia, e no terceiro mês encarcerados mataram-se numa luta de estoques, encorajados pelos companheiros de cela.

Em seu gabinete, a supervisora Mariete conferia no monitor as condições daquela LT. Perfeito. Tudo funcionara às mil maravilhas. Macedo e Sobrinho nunca voltariam a ser agentes da Intempol, tinham se matado em 1998, numa briga feroz na penitenciária. Seus cartões e registros nos computadores da Intempol estavam inutilizados e jamais funcionariam outra vez.

Ela riscou mais um dia na folhinha e se preparou para ir para casa. Aquele dia tinha sido produtivo, ela estava cansada, mas satisfeita. Surpreendeu-se consigo mesma, rindo daqueles seus dois agentes que, mal ou bem, tinham completado a missão com sucesso.

Ajeitou o coque e os óculos, retocou a maquiagem e trancou a porta de seu gabinete. Enquanto descia pelo elevador, lembrou-se nostálgica de alguns livrinhos policiais que lera na juventude e que tinham despertado a sua vocação. Vaidosa, pensou que tivesse enfim cometido o crime perfeito...

2 comentários:

Hadrian Marius disse...

Plot interessante que merecia ser melhor trabalhado.

Octavio Aragão disse...

Ah, Adrian, o Gitto mandou muito bem nesse pequeno conto humorístico. Se fosse maior, perderia o “tom” descompromissado, não acha?

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