quinta-feira, 30 de junho de 2011

A Guerra dos Imoles, 9ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Deuses de terracota

Ferreiro estava com as mãos calejadas de tanto macerar ervas e folhas. Parou por alguns minutos. Olhou ao redor e viu, num canto, as imagens em terracota de Elegüá – Exu – tanto de cabeças enfeitadas por alguns búzios que marcavam os olhos, boca, nariz e orelhas, ou na forma de falos eretos, símbolos da virtude e da virilidade.

Enquanto admirava aqueles ídolos tão antigos quanto a sua própria cultura, ficou imaginando que tipo de mensagem chegaria ao Babalaô.

Como uma resposta divina, um negro, com um gorro metade preto e metade vermelho, vestindo uma tanga que parecia se r um tecido grosseiro tingido de preto e vermelho, mas sem qualquer simetria, apareceu bem na sua frente. Parecia exibir um sorriso irônico.

– “Larôi-yiê”, Exu! – Ferreiro disse em saudação ao sarcástico.

De repente, num instante divino, o deus falou. Era uma mensagem dos outros deuses:

– A guerra é dos homens e dos deuses. Não só dos deuses e não só dos homens.

Ainda recuperando-se da surpresa em ouvir a voz do deus mensageiro, Ferreiro balbuciou: – Mas os
homens têm poucas chances contra os deuses.

– Pouca, mas não nenhuma. Lutem pelo que acreditam e escolherão seu futuro – o deus replicou e
desapareceu. Ferreiro mordeu os lábios e olhou para as imagens em terracota. A escolha já estava feita, mas teriam que lutar para sobreviver.


* * *

Franco foi na direção de Afisi em companhia de Roberto, Giácomo e Tadeu. O africano estranhava a pele branca dos agentes, mas tentava aparentar indiferença.

– Afisi, nós viemos te agradecer pela ajuda.

– Ajudei porque não quero estranhos nos ditando regras. Sejam estranhos amigos ou inimigos.

Franco entendeu o recado. Nem amigos nem inimigos. Seria Afisi o primeiro nacionalista africano?

– Nós só queremos ajudar. – disse Franco – Foram os homens de Akim que instigaram o ataque e
destruíram a outra aldeia. Nós não os trouxemos aqui, apenas viemos no seu encalço para detê-lo antes de causar estragos irreversíveis para vocês.

– Pode trazer de volta as vidas que se foram desde que vocês chegaram?

– Não Afisi – Franco sacudiu a cabeça com pesar.

– Isso não podemos fazer.

– Então os estragos irreversíveis já aconteceram e vocês não conseguiram evitar.

Franco não gostou da objeção. Quando o africano deu-lhe as costas, ele o puxou pelo ombro, virando-o de frente novamente e dizendo com os dentes cerrados:

– Acha que somos os responsáveis? – apontou para uma cabana que virara cinzas – Viemos aqui para evitar que Akim os corrompa e os desvie de seu caminho. Vocês têm um futuro grandioso à sua espera e mui ta coisa dependerá do que for feito aqui.

Afisi franziu o cenho e devolveu:

– Se quer tanto assim nos ajudar, então pare de afrontar os deuses. Eles não querem que exista um “élégun” e você vem nos dizer que enfrentá-los é a escolha certa? Que futuro podem os homens esperar se confrontam seus próprios deuses? Eu já disse: nenhum estranho vai nos dizer o que devemos fazer. Nenhum.

E dessa vez saiu sem ser impedido.

– Que crioulo safado! – Roberto esbravejou, já com a mão na Terminator – Vem aqui, mata uns manés,
tira maior onda de fodão e sai esnobando nossa ajuda!

– Guarde sua arma, Roberto.

– Vai se foder, Franco! Ao que me consta, a Empresa não existe mais e sem ela foi-se a hierarquia.

Num piscar de olhos, a Terminator de Roberto estava na mão de Franco, que devolveu-a com uma
advertência:

– Não tente quebrar a hierarquia, agente Roberto Alves. Isso pode ser muito perigoso.

Com ódio no olhar, Roberto guardou de volta a Terminator e saiu a passos largos, deixando os três para trás. Franco deu de ombros e prometeu a si próprio demitir todos os Psicólogos da Empresa quando retornasse. Em seguida, olhando para Tadeu, lembrou-se que os Psicólogos haviam sido demitidos e substituídos pelos psico-historiadores excedentes.

Franco resolveu voltar para a cabana do Babalaô com Giácomo e Tadeu para preparar o revide a Akim, antes que este se sentisse poderoso o bastante para arriscar um ataque mais direto à aldeia. Deveria planejar com cuidado, pois o futuro voltou a ser território desconhecido e até errar tornou-se possível.

No caminho, ele olhou para o céu azul e para uma árvore que era mais alta do que as demais. Olhou para aquela vastidão azul que parecia maculada somente pelo verde das folhas que se projetavam ao alto, esperando que um pássaro saísse de seus galhos.

Segundos depois, um pássaro saiu em meio a folhagem e alçou vôo até sumir da vista de Franco.

– Esperem! – o deus (ou ex-deus, se prevalecer a visão de Roberto), abriu os braços e parou Giácomo e
Tadeu, que tentavam entender o que se passava desta vez.

Franco sacou sua Terminator, sendo imitado pelos outros dois que, apavorados, olhavam em todas as
direções.

– O que foi, Franco? – Tadeu perguntou, segurando desajeitado a arma.

– “Déjà vu”! – Franco respondeu.

– Viu o quê? – Giácomo indagou. Ninguém mais do que ele detestava meias-respostas.

– Eu disse “déjà vu”. É quando um momento do tempo se repete sem nos darmos conta.

– Então como você sabe? – perguntou Tadeu

– Porque sei – respondeu, cansado de ter de dar satisfações a subordinados – Isso já aconteceu e vem se repetindo.

“Falo do instante em que Roberto se afastou de nós até o pássaro levantar vôo – apontou para a copa da árvore de onde o pássaro voou. – Deve ter acontecido quatro ou cinco vezes, nem eu sei precisar.”

Em seguida uma gargalhada de escárnio. Franco reconheceu o deus mensageiro e indagou aos outros dois:

– Estão vendo? – os outros, ainda segurando suas armas, sacudiram a cabeça e acharam que Franco estava maluco.

Franco não disse mais nada. Era óbvio que eles não viam Exu, o futuro Orixá que, segundo o “Oriki” (verso sagrado): ‘é aquele que acerta o pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje’. Isso, para Franco, queria dizer que este deus está diretamente relacionado ao controle do tempo.

Nenhum som. Franco sabia que não estava surdo e sentiu o ar mais pesado, parado, como num dia sem
brisa. Devagar, olhou para trás e viu Giácomo e Tadeu imóveis como estátuas. Descobriu que estava noutra escala do tempo. Detestava isso.

– Pare de rir, Mensageiro dos Deuses, e diga-me o que fazer.

Exu parou de gargalhar, levando o indicador aos lábios.

Desapareceu. Franco nem reparou que estava em tempo normal e que Tadeu e Giácomo bombardeavam lhe com perguntas de todo tipo. Sem prestar atenção, seguiu com passos decididos rumo a cabana do Babalaô.

* * *

– Preciso consultar Ifá – Franco pediu ao Babalaô.

– Se quiser saber mais sobre o futuro, saiba que nada mudou desde a última vez que consultei. O conflito é iminente e o desfecho é incerto.

– Quero saber sobre um homem.

– E por acaso esse homem é você?

Franco engoliu seco e devolveu:

– O homem é Julian Akim, nosso inimigo.

O Babalaô ficou em silêncio, olhando dentro dos olhos de Franco e tentando achar as palavras:

– Sim, nosso inimigo. Vai confronta-lo?

– Melhor do que esperar o próximo ataque.

O Babalaô adentrou na cabana com Franco e apanhou as favas, o pó do Axé, a tábua e iniciou o ritual que antecede a consulta. Saudaram Orunmilá e prepararam-se para as perguntas. – Devemos atacar Akim?

O Babalaô jogou as favas três vezes e mandou Franco abrir a mão esquerda. Lá estava um pedra preta.

– Não. Orunmilá diz que mais importante nesta guerra é o “élégun”. Foi essa a resposta de Orunmilá.

– Isso não é uma resposta clara!

– Então interprete-a e tire suas próprias conclusões! Está claro que esse ataque não importará para o desfecho da guerra.

Franco estava frustrado. Na Empresa, o ataque e suas conseqüências eram bastante conhecidos, mas com o fim do futuro, tudo era incógnita. Na dúvida, decidiu manter o plano original.

– Obrigado, Babalaô. Já sei o que fazer.

Disse e saiu, após saudar Ifá. Enquanto o Babalaô recolhia seus apetrechos, Chico Ferreiro entrou e foi logo indagando:

– Ele ficou frustrado com alguma coisa, não foi?

– Sim. Com sua incapacidade de ver além.

– Isso é muito ruim?

– Não, muito não. Apenas ruim.

* * *


Tadeu e Giácomo conversavam com Roberto quando Franco surgiu afoito e arrogante:

– Preparem-se para atacar!

– Quem? Aldeões ou Akim? – Giácomo indagou.

– Akim – respondeu com firmeza.

– Se ficarmos contando com ajuda do tempo, corremos o risco de perder o futuro de vez.

– E quanto a matar? – a indagação de Roberto Alves tinha endereço certo.

– Quantos puder, Roberto.

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