quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Aurora Dourada: um conto de Lúcio Manfredi

Dia cinzento, uma garoa fina cai sobre as ruas de Paris. Num café, às margens do Sena, McGregor Mathers observa as configurações que as nuvens adotam levadas pelos ventos, procura ler a assinatura das coisas na natureza, hieróglifos, mensagens, cifras. Diante do homem de meia-idade, um cálice de absinto pela metade talvez explique como é fácil para ele encontrar no céu as respostas que procura, os olhos esgazeados, mente que oscila entre a depressão e a excitação maníaca. Os transeuntes sob a chuva são vultos que mal se destacam contra o pano de fundo, sombras em parede de caverna, mero redemoinho no turbilhão mais vasto que é a vida de Mathers. Seu olhar escorrega das nuvens para o envelope sobre a mesa, uma mancha de absinto e tinta borrando o canto do remetente, o último r de Farr quase desaparecendo numa névoa translúcida. Florence Farr, repete em voz alta, atraindo a atenção de uma senhora que, na mesa ao lado, julgou-se chamada. Talvez seja a sina de Mathers, ser traído pelas mulheres nas quais deposita sua confiança. Talvez seja o amante de Farr, aquele irlandês ateu, com suas peças cheias de idéias profanas, que está enchendo a cabeça de Florence. Talvez apenas a má sorte. Seja como for, é evidente que Florence e Mathers não estão mais de acordo sobre os caminhos que a Ordem deve seguir dali por diante. Aquela atrizinha de segunda a quem ele, num arroubo de desejo do qual agora se arrepende, transformou em sua representante pessoal na Inglaterra, Principal Adepta da Seção de Ânglia, e que agora tem o desplante de perguntar se não seria o caso de encerrar a Ordem.

Estende a mão para o absinto, espera que o amargor da bebida suplante a amargura em sua alma. Com o cálice suspenso no ar, a meio caminho da boca, repara que está sendo observado. Um jovem de olhos flamejantes o encara do lado de lá da rua, sem se importar com a chuva que respinga nos cabelos rebeldes. Quando vê que Mathers o notou, adianta-se, atravessa a rua e vai até a mesa. Mathers estremece, a paranóia ainda não nomeada pela psiquiatria se agita no cérebro nublado. Poderia ser um agente de Westcott, um assassino encarregado de eliminá-lo, a fim de que o coronel pudesse retomar sua posição junto à Aurora Dourada. É bem verdade que, com Mathers caído em descrédito, sua morte em nada beneficiaria Westcott, mas Mathers tende a se julgar mais importante do que é, um joão-ninguém exilado, nem metade do homem que já foi.

- Permita que eu me apresente. - diz o jovem, puxando uma cadeira e sentando, sem esperar pelo convite de Mathers. - Sou um estudante do conhecimento oculto e dos ensinamentos secretos. Meu nome é Aleister Crowley.

Mesmo mergulhado na embriaguez, Mathers não deixa de reparar na arrogância com que o outro pronuncia o próprio nome, como se cada palavra fosse uma lâmpada eterna brilhando na noite escura da alma. Parece esperar que Mathers reconheça o nome, preste um tributo à grandeza de seu portador, mas Mathers nunca ouviu falar em Crowley antes. Nem Mathers, nem ninguém.

- R. R. et A. C. - prossegue o jovem.

Então é isso. Um adepto de Segundo Nível. Suas suspeitas estavam certas, é um agente da seção britânica da Aurora Dourada e sua presença só pode significar problemas.

- Na verdade, não sou propriamente um adepto. Tenho todos os requisitos e qualificações, mas eles não querem me iniciar em Londres.

Mathers ergue os olhos para Crowley, que é ele para Hécuba ou Hécuba para ele? De fato, sente-se cheio de Londres, do Templo Ísis-Urania, da própria Aurora Dourada. Pode ser que Farr tenha razão, às vezes tem vontade de virar as costas para tudo, deixar que o absinto o leve para outros mundos, onde não precise aturar burocratas do espírito e funcionários públicos da alma.

- Quero que você me inicie.

Mathers arregala os olhos, surpreso.

- Como fundador da Aurora Dourada, você tem esse poder. Não tem?

O homem mais velho não responde. Acaba de lhe ocorrer que ele e Crowley estão em situações parecidas, ambos rejeitados pela mesma organização. Mas o jovem está certo. Mathers é co-fundador da Aurora Dourada. Ainda dispõe de um resto de autoridade. E Crowley bem pode ser o instrumento que amplificará essa autoridade, colocará Mathers novamente no controle da situação. Leva o cálice aos lábios, sorri. Algures, no alto, a chuva começa a diminuir.

Crowley ergue os olhos para o alto, o Sol e a Lua ferem suas retinas. Um homem com cabeça de falcão o encara com expressão de fúria numinosa. Sombras aleatórias movem-se ao redor do caixão. Os braços cruzados sobre o peito começam a formigar, ele tem vontade de se mexer, esticar as pernas, mas sabe que deve permanecer numa imobilidade irrepreensível. Detrás dele, uma voz cavernosa, nem parece o velhote alquebrado do café, entoa:

- Recua, Hai, que és impuro, que és a abominação de Osíris, Toth cortou-te a cabeça e eu fiz em ti todas as coisas que a companhia dos deuses ordenou em relação ao trabalho da tua matança.

Deitado no caixão, ele começa a sentir uma espécie de surdo tremor, como se a madeira sob suas costas vibrasse. Indiferente às sensações do homem que jaz feito morto, a voz de Mathers prossegue:

- Sois santos, todos vós, ó deuses, e derrubastes de ponta-cabeça os inimigos de Osíris. Os deuses de Ta-ur gritam de alegria.

Crowley não ouve nenhum grito, mas tem a repentina impressão de que já conhece essas palavras, de que conseguiria repetir cada sílaba antes mesmo que saísse da boca do oficiante.

- Recua, ó Comedor do Burro, abominação do deus Ahu, que reside no mundo inferior. Conheço-te, conheço-te, conheço-te. Quem és tu? Sou...

Quem Mathers é, qual divindade egípcia estará personificando, jamais se saberá. No espaço entre duas frações de segundos, a cripta está cheia de homens armados que logo imobilizam o velho, ridículo prisioneiro em trajes de sacerdote egípcio. Crowley levanta-se do caixão de um salto, os membros adormecidos berrando em protesto contra o movimento forçado, o próprio caixão agora convertido em projétil, arremessado sobre os invasores. Eles atiram a peça para o lado, bruscamente. O caixão cai sobre a estátua de Hórus, que tomba no piso frio da cripta e se quebra em brilhantes fragmentos de porcelana, centelhas de espírito em choque com a matéria gnóstica.

Aproveitando-se da confusão, Crowley aproxima-se de um dos invasores, derrubado pela cabeça de falcão. Enfia a mão em seus bolsos, de onde saca um cartão e uma pequena caixa, digita uma seqüência de números e desaparece feito ilusão de ótica que se dissipa. Uma fração de segundo antes de seu sumiço, os invasores apontam as armas para ele, mas então não há mais ninguém para onde apontar, exceto o ar tremeluzente que paira sob as duas lâmpadas no teto, simulacros do Sol e da Lua.

Eu sou a Besta do Apocalipse, o devorador de mundos, sou o princípio e o fim, a serpente do paraíso, Shaitan e Aiwass, a força que cria e destrói universos, o primeiro nome a ser pronunciado, o último a ser esquecido, sou a memória de tuas verdadeiras origens e o cântico que entoaste ao despencar das alturas celestiais, sou o espírito da alma do mundo, o guardião dos segredos, o verdadeiro Deus que se ergue sobre Deus. Eu Sou.

Encontro-te entre vetustas relíquias da primeira civilização do mundo, em corredores sombrios que refletem o teu vulto no piso encerado, estátuas de deuses, imagens dos teus carcereiros, dos vossos carcereiros que ignorais, humanidade escrava, autômatos de relojoeiro, títeres nas mãos dos arcontes, pobres vítimas de uma conspiração que se estende até a aurora dos tempos, aurora dourada, aurora das vítimas e dos carniceiros, aurora do gado tangido, do grito de morte, do espanto silenciado. E vós, criados para obedecer, vossas faces esmagadas pelo tacão impiedoso dos tiranos, vós que acreditais existir e caminhar e comer e respirar, não passais de sombras numa caverna platônica, simulacros de seres livres, fantasmas. E no entanto, em vós jaz a centelha da liberdade que almejais sem saber. O livre-arbítrio, a escolha. A possibilidade de escapar às cadeias da fatalidade, substituir o destino cego pela ação aleatória, randômica, indeterminada. Quero tocar essa semente em vossas almas, me alimentar do turbilhão de acasos que traçais com vossos passos, me regozijar com cada imprevisto lançado à face dos arcontes que hoje são vossos algozes. Mas para isso preciso de ti, garoto que caminha pelas salas catacúmbeas deste museu, que pára diante desse relevo e contempla o homem com cabeça de falcão e arregala os olhos ao ver o número da estela, o meu número, o teu número. O número da Besta.

Temos um psicopata à solta no tempo, pensou Yeats, não podia evitar de pensar, enquanto seus olhos deslizavam pelo relatório na tela do computador. Tão evidentemente louco que seria melhor nem ter nascido. Talvez fosse essa a saída, voltar ao instante da concepção, impedir que Papai Crowley despejasse o sêmen no ventre úmido de Mamãe Crowley.

- Não podemos, não. - cortou M, a voz de barítono introduzindo-se na mente de Yeats e estourando suas fantasias de vitoriano sexualmente reprimido como um balão de gás. - Não podemos desnascer Crowley, nem retirá-lo do contínuo, nem levá-lo à Prisão dos Homens que Nunca Existiram.

- Por quê? - Yeats voltou-se na cadeira e encarou seu chefe, o rosto vermelho de vergonha, provavelmente misturada com um resto de excitação. O retorno do recalcado. Introduza um vitoriano no contexto mais amplo da Intempol, mostre-lhe que seus tabus são historicamente condicionados, não refletem nenhuma verdade natural sobre o sexo. e você estará criando um erotomaníaco. Não importa, claro. Contanto que ele não atrapalhe o desempenho das missões, perdendo tempo em perseguir jovens ninfetas que fotografam fadas. Mas esse era outro agente, lembrou M.

M, chefe do Departamento M, levantou-se de sua mesa e foi até Yeats. Metido naquele terno cafona, gravata vermelha e tudo, nem parecia o poderoso mago que efetivamente era. Não fosse a imponente barba branca, nada restaria da imagem tradicional, chapéu cônico e manto azul, perpetuada até nos desenhos animados.

- Crowley é um homem perigoso. - explicou, mão no ombro de Yeats. - Sofre do que os psiquiatras do século XX vão chamar de esquizofrenia paranóide. Na Idade Média, diriam que ele está possuído pelo demônio. E acredite, não sei qual dos dois diagnósticos é o mais acurado.

Yeats estremeceu. Como filho do século XIX, acostumara-se a encarar com ceticismo essa história dos demônios. Como celta, sua memória racial se agitava com a lembrança de espíritos e poderes que pairam além da fímbria da consciência. M tornou a rir.

- Não pense em chifres e cascos, meu amigo, não se deixe levar pela tua imaginação poética. Crowley foi possuído, sim, mas por um arquétipo. Seu ego foi totalmente engolido e ele se encontra num estado de inflação psíquica.

Era engraçado ver o maior mago de todos os tempos falar como se fosse Freud. Para Yeats, magia evocava cerimônias realizadas nas clareiras das florestas, à sombra de antigos menires, homens e mulheres rodopiando ao som de canções que não eram deste mundo, roupas no chão, paus e peitos e vulvas balançando ao luar, enquanto prestavam reverência a um sacerdote com cabeça de bode. Mas não havia nada disso naquele escritório, escrivaninha e mesa e computador, cadeiras estofadas, a única referência à magia era a tabuleta pendurada na parede: Qualquer tecnologia suficientemente avançada não pode ser distinguida da magia.

- Se é assim, - disse - continuo não entendendo porque não podemos simplesmente eliminá-lo.

- Porque, louco ou não, Crowley é uma peça-chave na história do século XX. - explicou M. - Se fizermos com que Crowley nunca tenha existido, o contínuo sai dos trilhos.

Aleister recua diante do vulto imenso que avança para ele. Seus passos ecoam pela Sala Egípcia do Museu Britânico, reverberam na cabeça do garoto e envolvem o desconhecido com uma aura de numinosidade.

- Não tenha medo. - ele diz. Há algo de profundamente familiar naquela voz tempestuosa, uma nota que Aleister pensa ouvir todos os dias, mas que não consegue reconhecer de imediato. É o bastante, porém, para tranqüilizá-lo e deixar que o outro chegue perto. Aleister se dá conta de que o homem nem é tão imenso quanto parecera, é pouco mais alto que ele próprio. São os olhos, enormes e flamejantes, e a calva imponente que lhe dão o ar de uma aparição demoníaca.

- Você trabalha no museu? - Aleister percebe a estupidez da pergunta assim que ela escapa de seus lábios. Não, idiota, é claro que não. Acha que ele vestiria essa túnica preta se trabalhasse no museu? Mas é preciso dizer alguma coisa, qualquer coisa, contanto que as palavras quebrem o encanto daquele olhar hipnótico, que cerca a consciência de Aleister, envolve-a por todos os lados e ameaça tragá-la numa voragem para onde ele não sabe se quer ser arrastado, não obstante a tentação da vertigem, a atração do abismo.

- Não. - responde o outro. - Eu não trabalho no museu. Mas, sim, você pode dizer que sou uma espécie de guardião.

- Que tipo de guardião?

O homem calvo gargalha.

- Eu guardo o conhecimento. Um conhecimento que Eles não querem ver divulgado. Um conhecimento que será teu no devido tempo.

- E-e-eles? - Aleister gagueja ao pronunciar o pronome, nem sabe porquê. - Quem são eles? E que conhecimento é esse que eles querem esconder?

- Eles são os teus inimigos. Aqueles que sabem a teu respeito mais do que você mesmo. Para Eles, a ignorância é o maior bem da humanidade.

Aleister desvia o olhar dos olhos do outro, seus olhos recaem sobre a estela nº 666, sobre os olhos de falcão de Hórus.

- É você. - diz o homem.

- Hórus? - espanta-se Aleister.

- O 666. A Besta do Apocalipse. É você.

A voragem avança e traga o jovem Aleister.

Samuel McGregor Mathers não sabe quem são seus captores, mas desconfia. É bem verdade que suas roupas não fazem pensar nos Superiores Desconhecidos. Apesar do corte estranho, não passam de ternos negros, o último traje que se esperaria ver numa criatura de transcendente sabedoria. Mas o modo inesperado como se materializaram no meio do templo, o ar de autoridade que emana de seus olhos, a certeza de serem obedecidos que se desprende de suas vozes, tudo faz com que ele pense que, finalmente, está face a face com iniciados do Terceiro Nível. Apesar do medo, um frêmito de satisfação percorre sua espinha. Afinal, o manuscrito estava certo. Existe um Terceiro Nível de iniciação, e o fato de seus membros terem vindo até ele só pode significar uma coisa. Que sua iniciação ao Segundo Nível foi aceita.

- Vossas Santidades são do Terceiro Nível? - arrisca-se a perguntar, imprimindo à voz o máximo de reverência que consegue reunir.

Dois dos seis homens se entreolham e sorriem.

- Vossa Santidade é o papa. - diz o primeiro, que parece o líder do grupo. - E nós somos do Nível Cinco.
Mathers engole em seco. Jamais ouvira falar de um Nível Cinco. Achara que três era o grau máximo a que se podia chegar, supunha mesmo que os iniciados do Grau Três já nem fossem humanos, mas espíritos incorpóreos, habitantes do Plano Astral.

- O que você e esse Crowley combinaram?

O tom ríspido da fala afasta qualquer pensamento do astral e veleidades etéreas.

- Como disse? - o choque é tão brusco que Mathers não consegue entender as palavras.

- Qual era o plano de vocês? Pra depois da iniciação?

Não responder, mentir, nem passa pela cabeça de Mathers. São adeptos do Terceiro Nível, certamente saberiam se ele faltasse com a verdade.

- Eu nomeei Crowley meu representante pessoal. Ele ia para Londres. Retomar a Aurora Dourada.

O líder chama um dos seis homens com um gesto.

- Entra em contato com o Departamento M - ordena. - E diz pro Velho que a gente continua no CET.

Eu sou você amanhã. As últimas palavras do homem calvo retornam à mente de Aleister enquanto ele veste o kilt. Você compreenderá tudo mais tarde, tinha dito antes. Aleister, então um rapazote de dezoito anos, não entendera nada das instruções do homem calvo. Nem das instruções, nem do resto. Aquela estranha arenga sobre ele ser a Besta do Apocalipse, sua missão de combater a tirania dos arcontes, as palavras não faziam o menor sentido. Em dado momento, o desconhecido citara o evangelho de João. E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Parecia um louco, um demente. Mas suas previsões acabaram se mostrando surpreendentemente acuradas. Aleister viajara pelo mundo inteiro, não porque o outro dissera para fazer isso, mas porque satisfazia seu espírito aventureiro. E em cada ponto especificado, encontrara fragmentos daquele conhecimento que o homem calvo lhe prometera. Um conhecimento sinistro, assustador, que falava de manipulações da história e da própria realidade, que mostrava os homens como joguetes nas mãos de entidades que decidiam o destino levando em conta unicamente seus inescrutáveis objetivos. (Os gnósticos chamavam essas entidades de arcontes, diziam que os arcontes eram os criadores deste mundo, mas que este não era o mundo verdadeiro, era uma ilusão, uma armadilha destinada a manter a humanidade nas trevas da ignorância.) A confirmação definitiva viera há poucos dias, naquela tarde chuvosa. Aleister estava em Paris, como o homem calvo dissera que estaria, e encontrou Mathers no café, como o homem calvo dissera que encontraria. Assim, o homem calvo sabia do que estava falando. Assim, mesmo sem entender, Aleister veste o kilt e pendura a gaita de foles no ombro.

Seus olhos lentos percorrem o tampo da mesa, mas não sentem que ela está lá. Poderia ser uma alucinação, miragem, a mesa dos filósofos. Ele não se espantaria se, de um momento para o outro, ela se pusesse a dançar no meio da sala, trazendo mensagens de espíritos e charlatães. O vento agita as janelas, uiva lá fora, e quem entenderá sua linguagem, decifrará o que ele diz com as batidas violentas que enceta? O homem calvo estende a mão para o cofre sobre a mesa, sabe que com aquele único gesto estará amarrando dois instantes no tempo, não será contra isso que o vento protesta, contra essa torção que violenta o devir, seu uivo é o grito de dor dos arcontes feridos, o poder que protesta ao ser arrancado das costas dos que o sustentam. Os dedos do homem calvo estreitam a tranca do cofre, o vidro estremece com os sacões da tempestade lá fora, a combinação se fecha e a porta se abre. Seus olhos lentos se arregalam, não chega a ser surpresa o que demonstram, não chega a ser alívio, um sentimento intermediário entre um e outro. Dentro do cofre, sobre a almofada de seda vermelha, uma taça prateada, coberta.

O velho Crowley deposita a taça sobre a mesa com cuidado, retira a tampa cravejada de pedras preciosas. Dentro da taça, um pó azulado reluz. Murmura uma prece agradecida, não a dirige a nenhum deus em particular, quer apenas que saibam que ele se sente agradecido. Funcionou. Terá funcionado. Estará funcionando. Pega uma pitada de pó com uma colherinha dourada que traz junto ao corpo há décadas, especialmente para isso, e aquece sobre a chama da vela. O pó se liqüefaz, reflexos azuis banham o tampo da mesa. Crowley abre a gaveta, pega uma seringa. Aproxima a ponta da poça líquida, puxa o êmbolo, o corpo vítreo da seringa se enche de azul.

Aleister irrompe na seção britânica da Aurora Dourada como um deus se manifestando em meio aos mortais, cheio de pompa e circunstância, a espada dos querubins pendendo em sua bainha. Um segundo olhar para a gaita de foles e o saiote xadrez o revelaria menos deus que palhaço, a aura de numinosidade dissipando-se em eflúvios cômicos ao redor, alimentada pelo olhar solene, a expressão compenetrada com que sopra a gaita e espalha melodias que são como o grito de uma banshee no cio.
A recepcionista arregala os olhos, incrédula. Antes que consiga falar, Aleister está entrando. Passa pelos retratos dos fundadores, o de Mathers discretamente deslocado para um canto, atravessa um corredor de estatuetas egípcias, deuses sentados, a barca de Rá, Osíris ressuscitado, e pára defronte o pórtico sobre o qual brilha um ankh dourado.

A gaita silencia. Aleister atravessa o pórtico, espada desembainhada.

A Terra é azul, murmura Crowley quando a droga colore sua percepção do mundo. As paredes, a mesa, as estantes repletas de volumes ancestrais, tudo adquire uma aura azulada e se põe a girar em volta do velho, uma ciranda de fadas na clareira da floresta, uma horda de peregrinos em volta de pedra negra, um relógio de mil ponteiros alucinados, girando, girando, girando (dê um nome a essa necessidade cega, a esse impulso voraz. Os braços finos decaídos ao lado do corpo redondo e felpudo, branco, feito um desenho animado de olhos malévolos e boca faminta. Dê um nome, dê uma voz a essa necessidade cega que toma forma sob seus dedos manchados. Deixe-a vir, deixe-a se instalar no quarto, na sala, na cozinha, deixe-a dominar a casa até se tornar o reflexo da lembrança de uma presença fantasmal sentida durante a adolescência, de uma Coisa flutuante no ar, um balão de gás cheio de desejos compulsivos e impulsos não-premeditados, uma espécie de saco de vômito não digerido e gargantas estraçalhadas sob o friso grego. Dê um nome, deixe falar essa necessidade cega que se agita em sua carne, que bate os braços inermes, que tenta chamar sua atenção com aplausos estereotipados. Uma presença alienígena, o fantasma de uma outra dimensão que é a tua e o fundo do espelho e a sombra na parede. Pergunte-lhe a que veio, pergunte-lhe o que quer, deixe fluir o jorro famélico que escarra de sua boca escancarada, deixe-a cuspir no piso e urrar de dor e desespero e pedir que abra a porta. Deixe-a transformar-se em dor, deixe-a ser essa sensação dolorida no pulso da mão direita, esse excesso masturbatório, essa lâmina multigirante que guarda os portões do paraíso, esses que você quer estraçalhar com os dentes, mas não é seu o querer, é dela, dessa necessidade cega que você convoca do fundo carcomido da memória e que desfralda suas negras asas junto ao teto, os dentes serrilhados de um demônio de desenho animado. Fale, fale com ela, ouça, ouça sua luz. Ela lhe falará de antigas colinas e vales incendiados, não num outro mundo qualquer, nem mesmo neste mundo, mas em teu próprio peito, que você achava conhecer como a palma da tua mão e que agora se converte em aldeia abandonada e pedaços incendiados de madeira que sobraram da última grande conflagração universal, e quem é que se importa, certamente não você, certamente não a necessidade cega que o segue por toda parte na esperança de um aparte, de uma audiência, de uma sessão especial junto ao juiz da Suprema Corte e bate palmas esbaforidas e derruba livros na tempestade e quer chutar as paredes até sair sangue, socar as paredes até esfolar os dedos, escrever seu nome sem sentido como uma velha invocação necromântica, o chamado de Cthulhu, essa coisa abissal que você carrega no fundo da espinha, essa coisa abissal que espreita por cima de seus ombros, vulto branco que sobrepaira e censura e espiona, sabendo apenas que obedece a essa necessidade cega e redonda e brilhante que toma forma no interior de seu corpo cansado) e Crowley não está mais lá, Crowley é o giro e o rodopio, o movimento que não cessa, o fluxo da história e por baixo dele, outro fluxo mais primitivo, mais envolvente, de um tempo que não é tempo, que não se mede em números, um tempo que se desdobra em espaço, que traça mensagens, portador de revelações e nomes secretos.

Aturdido, o velho se materializa na sala vazia, ainda trêmulo, com a sensação de já ter visto aquilo tudo acontecer, uma recordação da juventude que se superpõe ao tempo presente, que não é presente mas passado, ao menos para ele, que foi, é e será. Uma sensação avassaladora de irrealidade domina todas as suas percepções, todos os seus gestos. Quando se está em todos os tempos, nenhum tempo é seu tempo. Nada existe de verdade, salvo o fluxo contínuo que arrasta cada probabilidade de cada evento em cada época e lugar. Olha em volta, precisa se orientar. Fazer de conta que sua consciência ainda domina aquele corpo que habita, forçar a carne intangível a executar os movimentos necessários. Precisa agir rápido. Ainda se lembra do pouco tempo que levou até as pessoas se recuperarem da perplexidade que a irrupção de seu eu mais jovem causara (estava causando), sua entrada folclórica, patética, manobra diversionista que lhe garantira (estava garantindo) os preciosos minutos de que precisava para realizar seu último objetivo humano, se é que ainda podia se chamar de humano, se não estava já se transformando em alguma coisa mais cósmica, oblíqua e onipresente, concentração. Foco. Moveu-se ao longo das peças que tornavam a sala mais abarrotada do que os porões do Museu Britânico, as relíquias legítimas de civilizações vetustas, as antigüidades espúrias com que se deleitava a imaginação teosófica da época e, mais importante, que tudo, os artefatos de universos que já não eram, de universos que nunca tinham sido. Foi ali, entre máquinas ininteligíveis e instrumentos estranhos, que encontrou o Graal, a taça reluzente, dourada, repleta do pó azul que lhe permitiria levar avante sua rebelião contra os arcontes.

Seus sentidos, ampliados muito além da realidade visível, captaram o leve ruído de passos, tão tênue que se confundiria com a vibração da própria atmosfera. Tempo de ir. Tempo de encontrar seu eu mais jovem e lhe confiar a droga azulada, que ele deveria guardar até o momento futuro em que seria necessária, em que teria já reunido conhecimento suficiente para dominar o empuxo do Graal, impedir que a overdose o destruísse e fundir sua consciência à própria essência miraculosa do tempo. Nesse dia, que para ele era agora, estaria pronto para enfrentar, de igual para igual, o poder dos senhores do mundo. O poder da polícia do tempo. Dos arcontes. Da Intempol.

Não há ninguém para gritar, para sentir que aquilo tudo já aconteceu. Ninguém para ter a sensação subjetiva de um surdo tremor que percorre a alma. Ninguém para testemunhar a aparição dos seis homens na sala, ternos negros e olhar sombrio. O líder do grupo se aproxima do divã e olha com desprezo o cadáver esquisito. Nunca vai entender o que se passa na cabeça do pessoal lá de cima. Mandar um esquadrão de elite para dar conta daquela ruína? Observa os olhos semi-abertos, a boca escancarada de cujo canto pende um filete azulado de baba. Seis homens era muito. Um homem teria sido muito. Fez um sinal para o oficial de comunicações.

- Entra em contato com o Departamento M. - diz. - Avisa o Velho que este aqui não é mais problema pra ninguém.

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