sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Mau Yee: conto de Osmarco Valladão
CAPÍTULO 1
As pessoas ainda falavam da aventura de Charles Lindbergh, mas era Babe Ruth que estava em todas as primeiras páginas. A bordo da última indecência mecânica de Zang Chai Lao, um Cadillac Sport-Phaeton de quatro lugares do tamanho de um encouraçado e com os faróis de uma locomotiva, Jimmy Tan olhava as portas fechadas dos restaurantes e bazares da Comercial Sing Fat, através da neblina, pensando nas pessoas que dormiam quentinhas e felizes sob os telhados de pontas arrebitadas. Apesar dos comerciantes vestidos de seda e das mulheres de calças compridas serem cada vez mais difíceis de se ver, uma boa parte dessas pessoas nunca tinham ouvido falar do Espírito de Saint Louis e nem do Primeiro e Único Sultão da Pancada. Em qualquer outro lugar da América teriam sido linchadas por isso, pensava Jimmy Tan. Uma neblina marinha, carregada do cheiro de algas podres, tomava as ruas de Chinatown, São Francisco.
O interior do carro era revestido de carvalho envernizado e daria para um baile de debutantes, dimimuindo um pouco a orquestra. Os assentos de couro claro, feitos à mão, eram ocupados por Zhang Chai Lao e Jimmy Tan. "Grande Muralha" Wu ia ao lado do motorista. Transportar Wu era uma das razões para os carros monstruosos de Zhang Chai Lao. Qualquer coisa que tivesse que carregá-lo não podia ser muito menor que um baleeiro. Distraído, Jimmy Tan assoviou uma notas de Ain't She Sweet?
- Pare com isso - a voz do velho era suave, mas não admitia contestação. "Grande Muralha" dirigiu um olhar homicida ao homem mais jovem no banco de trás do Cadillac. Em outra situação, Jimmy teria sugerido ao gigante que não tirasse os olhos das esquinas, ou não conseguiria ver sua mãe, de joelhos, entretendo uns marinheiros. Mas era melhor não aborrecer o velho com discussões. Ele já parecia bastante irritado, o bastante para apanhar Jimmy Tan no beco Ross, pessoalmente, interrompendo a negociação de uma grande remessa de uísque canadense. Quando o automóvel parou na rua Whashington, o velho voltou-se para Jimmy e pediu um cigarro. Pediu, nesse caso, é só uma maneira de falar.
- Você conhece o restaurante na esquina da Waverly Place. - não era uma pergunta.
- Claro, o Bill's. - Jimmy acendeu o cigarro do velho e um para ele. - Bill está à sua espera.
- O que é que está havendo?
- Você vai saber.
- Estamos esperando mais alguém?
- Sim.
- Isso é tudo?
- Sim. Jimmy Tan saiu do carro ajeitando o chapéu Wilton, com a aba flexível abaixada na frente. De pé na calçada, tirou do paletó um Colt 45 com empunhadura de nogueira, verificou a munição e guardou-o de novo, mas no bolso do sobretudo. Deixou a mão lá, disfarçando o volume. Acendeu um Camel e, considerando-se pronto, tomou a direção da Waverly Place.
A um sinal do velho, o Cadillac também partiu, mas parou depois de uns cinquenta metros e apagou os faróis, praticamente desaparecendo na neblina. Não esperou muito. Pelos retrovisores, Zhang Chai Lao e o motorista viram um Reo Wolverine preto parar quase no mesmo lugar onde o Cadillac estava antes. Um homem alto, um gigante para os padrões chineses, desceu e também foi para o lado da Warvely. Depois de recomendar ao motorista que o deixasse em casa e retornasse para esperar por Jimmy, o presidente dos Huo Yibai, a maior das seis Sociedades, recostou-se e pensou no homem alto que desceu
Mau Yee 2 do Wolverine preto.
- Mau Yee - Murmurou o velho, bem baixinho.
CAPÍTULO 2
Na esquina da Waverly, uma escadaria estreita levava ao porão passando por um espelho decorado com motivos de cowboys e índios. Portas duplas de madeira separavam o resto do mundo do Búfalo Bill Wong's, um salão de teto baixo e mesinhas redondas.
Durante o dia, o lugar era barulhento e cheio de vapor cheirando a gordura quente e temperos, igual a todos os outros restaurantes dos arredores. Ou quase, porque se você parasse para dar uma olhada em volta, enquanto esperava seu prato, notaria algumas coisas no mínimo curiosas de se encontrar num restaurante chinês, como os cartazes do Show do Oeste Selvagem de Búfalo Bill, rifles e machadinhas nas paredes e um incoerente chapéu Stetson sobre a cabeça do velho com uma barbicha de bode e olhar no infinito, sentado numa cadeira nos fundos, perto da porta para a cozinha. Por volta das onze da noite, porém, o lugar era de uma desolação assustadora e Jimmy Tan era, por profissão, um homem preocupado com inimigos e emboscadas. Desceu os degraus de madeira com a mão na coronha do revólver.
- Ora, ora, ora... se não é o gangster mais bonito de toda Chinatown. Como vai, Jimmy? Pat Noonan, do Esquadrão Chinatown da Polícia de São Francisco, sentado no meio do salão do Bufalo Bill Wong's era a última coisa que ele esperava daquele encontro. Não entendia o que Zhang Chai Lao poderia querer daquele idiota. Noonan era um exemplo acabado do que um ser humano pode se tornar quando cresce numa daquelas pequenas e adoráveis cidades do interior, cercada de plantações de milho, onde todo mundo vai à igreja aos domingos, tem casinhas com varandas e um capuz da Klu-Klux-Klan no armário.
- E o velho, como tem passado?
- Vá direto ao assunto, Noonan. Não tenho a noite toda. A cínica simpatia de Noonan desapareceu no mesmo instante.
- Olhe aqui, chinês, se você quer da maneira mais difícil...
- Você conhece outra? O policial sacou um revólver preto e apontou-o para Jimmy Tan. Da infância de Noonan, cercado de caipiras que dormiam com as filhas e pensavam ser Wild Bill Hicock, ficou pelo menos isso de bom. Ele era rápido.
- Onde está a garota, Jimmy? Jimmy apanhou um Camel e acendeu-o sem pressa. Procurava uma brecha, mas sem pressa, sem precipitações. Se conseguisse saber do que aquele imbecil estava falando antes de matá-lo, melhor. Ele continuava sem precisar de ajuda.
- A garota, Jimmy, a garota que sumiu. Doze anos. Para que puteiro você e seus amigos a levaram, hein? Então era isto. Uma garota chinesa sumida. A polícia, como sempre, pensa que ela está em algum porão, entupida de ópio, servindo sexualmente a algum chefe de quadrilha. Às vezes acontecia. Mas quase todas as garotas desaparecidas em Chinatown haviam saído de suas casas por causa de um inocente anúncio, publicado num jornal respeitável, procurando uma babá ou uma arrumadeira. Drogadas, iam parar em bordéis de Chicago ou Nova York, levadas por algum Joe ou Tony. Embora o tráfico de meninas fosse um costume entre os chineses, os Huo Yibai o reprimiam em São Francisco. Fazia parte do acordo com Mau Yee. Por enquanto bastava. Ainda haviam muitas perguntas, mas elas eram principalmente para Zhang Chai Lao.
- Eu estou falando com você, chinês! - rosnou o policial. Jimmy aproveitou que Noonan moveu o braço para golpeá-lo no rosto e a arma, por um instante, não estaria apontada para ele. Sem tirar o revólver do bolso, atirou no joelho do policial. Ignorando o berro de Noonan, Jimy Tan sacou o revólver, girou-o na mão até segurá-la pelo cano e bateu da esquerda para direita, com toda força. O sangue espirrou na parede oposta e o policial levou com ele mesas e cadeiras enquanto caía. Encolheu-se gemendo quando foi chutado nas costelas e, sentindo um pé prendendo no chão a sua mão direita, a que segurava a arma, viu a coronha do Colt descendo rapidamente sobre seu rosto.
Uma vez. Duas vezes. Na terceira, Noonan parou de gritar. O ruído de uma cortina de contas. Tan abaixou-se, pegou a arma de Noonan e girou nos calcanhares. Uma menininha de uns sete anos, parada na porta que ia dar na cozinha, olhava a cena com os maiores olhos que Jimmy Tan já vira numa chinesa.
- Min Bok!
O grito agudo quase fez Jimmy, por puro reflexo, descarregar as armas nela. Levantou-se e passou a manga do sobretudo na testa suada. Ele conhecia a garotinha, a neta da senhora T'sien, a viúva que tomava conta do restaurante e da casa de Bufalo Bill. Uma menina normalmente quieta e adorável, a menos que tivesse acabado de ver um rosto ser transformado em polpa a coronhadas. Jimmy abriu um lindo sorriso respingado de sangue.
- Calma, pequena Flor, sou eu, o tio Tan...
- MIN BOK!
Desistiu de acalmar a menina. Precisava de uma bebida. Voltaria no outro dia, com desculpas e dinheiro pelos móveis quebrados. Ela que chamasse pelo seu Min Bok (velho tio, em chinês) até o inferno congelar. Só que menina não chamava Bufalo Bill de Min Bok. Ninguém chamava Bufalo Bill de Min Bok. Todos, não importava a idade, chamavam Bufalo Bill de Bufalo Bill. Min Bok era como a garota, assim como muitas outras crianças, chamavam o homem que Jimmy Tan, os jogadores de fantã, os pistoleiros, os traficantes de ópio e as cafetinas conheciam como Mau Yee. Jimmy Tan, dos Huo Yibai, pôs as duas armas sobre uma mesa, afastou-se alguns passos e só então começou a virar-se.
- Saudações, Mau Yee. O homem alto sorriu de volta.
CAPÍTULO 3
Em 1922, quando o sargento Jack Manion, da polícia de São Francisco, assumiu o Esquadrão de Chinatown, as disputas territoriais entre os Lei Feng e os Huo Yibai, apoiados por quadrilhas menores, estavam no auge. As noites acabavam em tiroteios, e as manhãs encontravam cadáveres pelas ruas.
Sob a alegação de que ali se vendia bebida alcoólica e ópio, o sargento Jack Manion invadiu e depredou a casa noturna de Willy Chop-Chop. Seus homens fizeram dezessete prisões e o lugar foi minuciosamente destruído, enquanto Chop-Chop, gaguejando mais do que de costume, telefonava para os Lei Feng, seus patrões e proprietários do clube. Horas depois os detidos estavam de volta às ruas, descontados os hospitalizados e os mortos.
Nos dias que se seguiram, a cabeça de Manion foi exigida em coro pelos advogados Lei Feng, com apoio de algumas vozes vindas da prefeitura e da promotoria. A imprensa chamou Jack de herói, ameaçou investigar os verdadeiros motivos dos que o criticavam e publicou opiniões, favoráveis às ações do sargento, de importantes cidadãos de Chinatown.
Antes que a história toda se tornasse mais um escândalo, dos muitos que fizeram a história política de São Francisco, vozes poderosas demais para serem compradas ou ameaçadas pelos Lei Feng fizeram com que tudo fosse abafado. O sargento Jack Manion pegou uma suspensão por indisciplina.
Para se ter uma idéia de como a situação era vista em Chinatown, as casas de jogo abriram apostas sobre os dias de vida que Jack Manion ainda teria. Cinco dias estava pagando dois para um. Oito dias, dez para um. Se você tentasse apostar em um mês, o bookmaker iria rir na sua cara.
Sem se incomodar com o fato de que as mulheres recolhiam as crianças quando ele virava a esquina., Jack continuava a trabalhar em Chinatown. Com exceção de Bufalo Bill, todos os conhecidos mudavam de calçada quando o viam. Um dia, começou. Jack olhava uns jornais em cantonês, pendurados do lado de fora de um armazém. Devia achar os caracteres bonitos, porque nunca soube ler um deles sequer.
Os homens desceram de um carro parado do outro lado da rua. Jack manteve as mãos nos bolsos dos sobretudos e em cada uma delas um 45 sem coldre e sem trava de segurança. Assim ele podia atirar do bolso mesmo, sem precisar sacar. Durante essa época, Jack comprou um sobretudo novo quase toda semana. A seguinte foi no restaurante de Bill. Dentre os seis pistoleiros mortos, dois tinham buracos grandes demais, mesmo para as 45 de Jack, que insistiu que havia enfrentado todos sozinho. A polícia preferiu ignorar este detalhe, assim como a falta de um rifle Henry que enfeitava a parede do salão e o estranho entusiasmo de Buffalo Bill Wong, normalmente um ancião comedido e reservado.
Zhang Chai Lao poderia tomar isto como uma declaração de guerra, mas se limitou a pedir que os Lei Feng respeitassem os lugares sob a proteção dos Huo Yibai. Jimmy Tan enviou a mensagem, escrita em polido cantonês, enfiada entre os dentes da cabeça decepada de um pistoleiro Lei Feng.
As casas de apostas enlouqueceram. O homem que não podia ser morto, diziam as crianças lutando para ver quem seria Jack nas brincadeiras de polícia e bandido. O homem para quem a morte abriu suas coxas pálidas, quase luminosas, e a quem deu muitas vidas, tantas quanto as de um gato. Pelos muitos anos que ainda comandou os Huo Yibai, Zhang Chai Lao se arrependeu muitas vezes de não ter percebido que a sua estupidez e o sangue de seus homens transformaram Jack Manion em Mau Yee.
CAPÍTULO 4
Manion jogou o chapéu sobre uma mesa e sentou-se na beirada.
Mesmo respingado de sangue e um tanto amarfanhado pela briga com Noonan, o sorriso de Jimmy Tan ainda podia deixar histérico todo um colégio de moças. Jimmy tinha a pele mais para a cor de creme dos legítimos Manchus, um descendente dos magníficos anfitriões de Marco Polo na aparência e nas maneiras.
- Ora se não é o pai dos detetives. A que devemos a honra de tão honorável visita à nossa humilde morada? - Tan ajeitava o cabelo com os dedos.
- Guarde esta conversa de chinês de revista para bajular Zhang Chai Lao, Jimmy. Comece pelo tratamento de beleza que você estava fazendo em Noonan quando eu cheguei. Jimmy levantou uma cadeira caída e sentou-se também.
- Desculpe, não deixei um pedaço para você.
O homem alto suspirou.
- Jimmy, depois de você, Pat Noonan é o maior filho da puta que eu conheço, mas ainda é o maior filho da puta da Polícia de São Francisco. E este filho da puta, que por um acaso é policial, acabou de ter a cara modificada a coronhadas por um membro dos Huo Yibai, a maior e mais poderosa tong de Chinatown. Quer que vá mais devagar?
- Assim está ótimo.
- Muito bem. Sempre admirei a sua inteligência, Jimmy. Acontece que, para completar, esta cena foi testemunhada por um outro membro da Polícia de São Francisco, talvez um pouco menos filho da puta que o outro, e que por acaso sou eu. Entendeu o meu problema?
- Perfeitamente.- o sorriso de Jimmy sumira. Olhando bem, ele parecia agora alguém que nunca dera um sorriso na vida, nem para a própria mãe, quando ainda era um bebê de colo.
- E então?
- Não é assim que vai acabar, Jack, nós dois sabemos.
Mau Yee curvou-se para frente, aproximando-se do rosto de Tan, como um guarda tentando saber se o suspeito havia bebido. Jimmy continuou.
- Um beco, Jack, com você numa ponta e eu na outra. Nós dois sacamos. Um é mais rápido. O outro morre. É assim que vai terminar, e até esse dia nenhum de nós vai fazer nada contra o outro.
- Você leu isso onde? Num biscoito da sorte?
- Li nos seus olhos, Mau Yee.
O som do tiro fez o 45 saltar de volta para mão de Jimmy, e o Positive Police de Manion sair do coldre. Os dois giraram na direção do barulho e apontaram as armas para mim.
Fingindo ignorar os dois e tentando parecer tão durão quanto possível, aproximei-me de Pat Noonan. Encostado na parede, meio sentado, o policial tinha na mão a pequena pistola que eu tinha visto, do corredor, ele tirar do tornozelo. A perna da calça ainda estava um pouco levantada, deixando ver o coldre . Faltava uma boa parte do lado direito da cabeça, mas ninguém estava reclamando.
- Muito bem, filho, solte o brinquedo... Lentamente, como um homem que tem todo o tempo do mundo e não dois revólveres apontados para ele, ergui os olhos para Manion. Minha mão, a que segurava a arma, acompanhou o movimento.
- Parem com isso, já!! A voz aguda de velho fez todos os presentes perceberem Buffalo Bill Wong parado na porta, com o inseparável chapéu Stetson e um Colt Walker na mão. As armas estavam em seus coldres e nas mãos tínhamos copos de um aconchegante Old Dougherty. Cigarros foram acesos enquanto Buffalo Bill fazia as apresentações.
- O irlandês é Jack Manion, do Esquadrão Chinatown. O ser humano é Jimmy Tan, dos Huo Yibai. A piada tinha mais de um alvo. Também sou irlandês. Sorri para ser gentil, e só por isso.
- Jack, Jimmy, este é o senhor O'Malley, da Cidade dos Anjos.
- Esqueçam o senhor. Todos me chamam de Lace...
CAPÍTULO 5
O único ser humano maior do que Grande Muralha Wu que Jimmy Tan viu em toda a sua vida tinha acabado de entrar no salão do restaurante de Buffalo Bill Wong, usavando uma gravata pintada à mão com palmeiras e dançarinas de hula-hula.
Como eu, Reno Stalker precisava desesperadamente de um pente, de um barbeiro e de muitas horas de sono, mas contentou-se com uma dose de whisky. Perguntei por Thaler.
- Dormindo - a voz do gigante estava tão arruinada quanto o resto - mas ele não chega até de manhã, Lace.
Servi outro whisky para mim mesmo, que desceu bastante amargo.
- Bem, este é Reno Stalker, e o outro homem que veio com a gente, Thaler, está lá dentro com uma bala na barriga. Nós estamos com um grande problema e Bill disse que vocês talvez pudessem ajudar.
Manion curvou-se para frente, pondo os cotovelos sobre a mesa.
- Conte a sua história, moço.
Quinze minutos depois, Manion recostou-se de novo e tomou um gole do Old Dougherty , me olhando pelo fundo do copo.
- Deixe eu ver se entendi. Às vezes eu sou um pouco lento. O nosso amigo O'Malley aqui diz que trabalha para uma agência do governo, mas não pode dizer qual.
- Eu não disse do governo. Eu disse autorizada pelo governo.
- No que me diz respeito, dá no mesmo. Você também diz que está numa missão de extrema importância, mas também não pode dizer o que é. Como não pode pedir ajuda a sua agência, embora não diga porque, espera que eu e o Jimmy aqui ajudemos, mas sem saber como. Cobri tudo?
- Mais ou menos. Levando em consideração o que acabara de ouvir de mim, Manion estava reagindo bem. Eu já estaria ligando para o manicômio se ouvisse pelo menos metade daquilo. Jimmy se mexeu na cadeira, impaciente.
- Eles são de alguma quadrilha do leste, Jack. Tentando se estabelecer por aqui. Se você quer saber, eu ...
- Ninguém está interessado, Madame Butterfly. Manion apertou os lábios para não rir da interrupção de Reno. Jimmy começou a se erguer da cadeira, mas Buffalo Bill mandou-o sentar e calar a maldita boca. Paz restaurada, Manion continuou.
- Eu devia levar os dois para aquela sala nos fundos, aquela com luzes fortes, e deixar vocês suarem até resolverem falar a sério, mas...
- Pare com a cena de tira durão, Manion. Eu já vi o suficiente disso para não me impressionar mais. Eu sei que a história parece louca, mas é verdade. Alguma coisa vai começar esta noite, alguma coisa que eu não sei direito o que é, mas sei que será grande e mais terrível do que qualquer outra que você já tenha visto. E sei que começa aqui, no restaurante de Buffalo Bill Wong.
O sargento Jack Manion, da polícia de São Francisco, conhecido como Mau Yee, olhou fixamente para mim.
- Em consideração a Buffalo Bill Wong, você tem duas horas. Por duas horas eu ajudarei você no que for preciso, mas se depois disso eu não estiver convencido, você vai matar saudades das luzes fortes. Jimmy?
- Duas horas. OK. Eu só não sei é se você vai ter alguém para por sob as luzes. Alguém vivo, eu quero dizer.
Olhei para Reno, que olhou para mim de volta e levantou-se da cadeira.
- Eu vou ver como Thaler está. Mas a coisa se materializou na sala antes que ele saísse.
CAPÍTULO 6
- Porra, Reno, ainda vai demorar muito para retocar a maquiagem?
A voz gutural de Reno devolveu alguma obscenidade, mas logo o gigante surgiu na porta do vestiário, com um terno azul-escuro, camisa branca e uma de suas inacreditáveis gravatas.
- Meu Deus, a de hoje tem dançarinas de hula-hula, Lace.
- Pelo menos estão de sarongue. As de ontem nem isso tinham. Caminhamos pelo corredor bem iluminado dos vestiários, satisfeitos com nossos ternos, chapéus e até com o peso dos coldres. Depois de duas semanas usando togas romanas, todos os hábitos do século vinte eram muito bem vindos.
Thaler, como sempre, queria ficar com uma adaga. Era um artista com uma faca ou um furador de gelo, mas o trabalho na Intempol também o tornara um colecionador. Oportunidades não faltavam. Reno resumia sua opinião sobre essa inclinação de Thaler a uma única palavra.
- Tarado.
Abri a porta dupla que dava para o setor de guarda-roupa, já antecipando o olhar que Marianne daria para Reno e a piada indecente que Thaler faria depois. Lar doce lar.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
O sujeito no lugar de Marianne era tão simpático quanto uma autópsia. Os outros na sala seguiam o exemplo. Thaler cochichou no meu ouvido.
- Quem é essa gente? O setor de pessoal andou recrutando a Gestapo?
Mandei Thaler se calar com um gesto e atravessei a sala em silêncio. Saí dali para outro corredor, andando o mais rápido que podia. Parei num telefone interno.
- Aqui é O'Malley. Chame a Dra. Dale, por favor.
Reno e Thaler olhavam sem entender nada, mas inquietos. A voz do outro lado me respondeu que não havia nenhuma Dra. Dale por ali. Bati o fone e saquei minha arma. Puxei o pente e verificava a munição enquanto explicava a situação para Reno e Thaler.
- Vocês reconheceram algum daqueles zumbis do guarda-roupa? Nem eu. Também não tem nenhuma Dra. Dale na pesquisa, e provavelmente tem algum filho-da-puta na minha mesa, mandando a segurança atrás de nós nesse instante.
Thaler entendeu de imediato, mas sua reação normal era o silêncio. Reno demorou uns dois segundos para responder.
- Mudaram tudo. Enquanto a gente estava lá, vestidos de cortinas, alguém foi ao passado e modificou a merda toda.
O guarda-roupa não era longe dos arquivos, e a planta do lugar não tinha sido modificada. Como os terminais do arquivo não podiam ser bloqueados de fora, era o lugar ideal para tentar saber o que estava acontecendo. A não ser que o complexo já estivesse entrado em código de invasão 3, porque aí as portas de áreas vitais, como os arquivos, por exemplo, seriam automaticamente seladas.
Não estavam seladas ainda. Os quatro sujeitos frios e silenciosos lá dentro foram rapidamente transformados em quatro cadáveres frios e silenciosos. Sentei num terminal, enquanto Thaler jogava no chão o cadáver da cadeira ao lado.
- O que fazemos?
- Cruzamos os eventos gravados em nossos cartões com os que estiverem nesse computador.
- Está conseguindo?
- Acho que sim. Só um momento... pronto!
- Não estou entendendo nada. Dá para transformar num gráfico?
- Deixa eu ver... acho que dá. Pronto, está aí. A linha vermelha é a dos nosso cartões. A azul é a do computador.
- Elas vão juntas até ... 1950?
- Mais ou menos. Na década de cinqüenta elas se afastam de vez, mas as diferenças começam, pequenas, desde... deixa eu ampliar essa merda... 1928.
- Foi quando tudo começou, então. E onde foi?
- Estados Unidos, com certeza. Costa Oeste. São Francisco, talvez.
- São Francisco, 1928. Uma cidade inteira e um ano inteiro. Não vai dar, Lace, tem que ser mais preciso.
- Eu sei.
As luzes apagaram-se nesse momento. Reno se aproximou dos dois.
- Que merda é essa? Thaler olhou em volta.
- Acharam a gente e cortaram a energia. Os computadores devem ter gerador próprio. Como está indo, Lace?
- Consegui. Peguem as caixas, vou dizer as coordenadas. Prontos?
Os tiros começaram nesse instante. Berrei as coordenadas, digitei a minha caixa e passei o cartão. Esperava que Reno e Thaler tivessem ouvido e feito o mesmo, enquanto o barulho ficava mais distante, cada vez mais distante...
CAPÍTULO 7
Como se não bastasse a aparência e o cheiro da coisa, a fumaça e os estampidos de um Colt 45 com cabo de nogueira, um Colt Walker, um Positive Police calibre 38 e duas Smith-Wesson Terminator fizeram do salão do restaurante de Buffalo Bill Wong uma amostra do inferno.
Uma a uma as armas esgotaram suas munições, mas os percussores ainda bateram por alguns segundos em tambores vazios, movidos pelo mais puro pânico. As Terminators que eu e Reno usávamos duraram mais. Balas e pentes extras foram apanhados nos bolsos e alimentaram as armas, que novamente foram engatilhadas e apontadas para algum lugar vago, em meio a fumaça de cordite e pólvora.
- Esperem um pouco. Mau Yee avançou um passo e depois outro, até estar próximo ao que parecia o conteúdo de uma lata de lixo derramada no assoalho, uma lata onde tivessem jogado os restos do necrotério e esquecido em algum canto. Eu, Reno e Jimmy Tan seguimos atrás e formamos um arco em torno daquilo.
Jimmy virou o rosto e curvou-se como se fosse vomitar, mas conseguiu andar até a mesa e beber um grande gole direto do gargalo da garrafa. Fui o primeiro a falar alguma coisa.
- Acredita, agora?
Jimmy ergueu a cabeça. Tinha whisky escorrendo pelo queixo. Levantou a arma e atirou. A bala passou bem perto de mim.
- No que você nos meteu, seu filho da puta?
Eu devia estar realmente exausto, porque não sei até hoje como não enfiei uma bala naquele filho da puta. Reno foi quem reagiu, caminhando na direção de Jimmy e dando um tapa no seu rosto que fez o barulho de um tiro.
Manion acendia um cigarro. Olhou em volta, parando uns segundos no corpo de Pat Noonan, num canto e depois na coisa perto de seus pés. Descobriu com desgosto que uma gota daquela gosma negra tinha respingado em suas calças. Então virou-se e viu Jimmy Tan, com um lado do rosto vermelho, jogando whisky direto do gargalo para a garganta.
- Devagar, Jimmy. A noite está longe de acabar.
Enquanto Reno e Bill foram ver Thaler, eu e Manion repassamos o que tínhamos até aquele momento. Jimmy recordou a conversa com Pat Noonan. Manion verificou que ninguém tinha atirado no telefone e pediu à telefonista Davenport 20, e depois a Central.
- Aqui é Manion. Chame o Quinlan. Quinlan? Manion. Sabe me dizer o que o imbecil do Noonan está fazendo em Chinatown? Verifique com a telefonista se ele recebeu alguma chamada. E aperte o Mcallister, ele e o Noonan eram unha e carne. É sério, sim, Quinlan. Muito sério. O Noonan pode estar com uma bala na cabeça nesse exato momento. Diga isso ao McAllister. Estou no Bill, me ligue assim que souber de alguma coisa, e não demore a noite toda.
Repeti pela décima vez para Jimmy que não tinha a menor idéia do que era aquela coisa. Sabia que Bill seria morto naquela noite, e era só isso que sabia. Senti voltar a vontade de enfiar uma bala entre aqueles olhos puxados. Manion tinha se aproximado da coisa esparramada no chão.
- Mas o que os diabos é isso, afinal?
Jimmy ficou meio verde, mas enfrentou o exame no que restava da aparição. Parecia um homem, pelas proporções gerais, mas ninguém estava com estômago para um exame mais profundo. O rosto estava além de qualquer possibilidade de identificação. A aparência geral era a de um cadáver com algumas semanas. Manion completou:
- Só que apareceu aqui do nada, e bastante animado para um morto.
Eu Já ouvira falar de cadáveres reanimados antes, mas se explicasse como, para aqueles homens, o melhor que conseguiria era passar o resto da vida em Napa, cortando bonequinhas de papel. E Manion parecia ter certeza de que eu não estava contando tudo o que sabia. Reparei num pequeno ponto verde e brilhante no meio daquela massa preta, enquanto ouvia o chinês choramingar ao lado.
- Magia. Magia negra.
Eu sempre achei que era o único em Chinatown que não acreditava nisso. Até agora.
- Francamente, Jimmy!
O estalo da lâmina do meu canivete fez com que os dois prestassem atenção em mim. Eu mexi naquela nojeira até a lâmina encontrar alguma coisa dura. Empurrei um pouco e uma forma alongada apareceu, coberta daquela merda. Peguei meu lenço e respirei fundo.
- O que é que você está fazendo?
Jack Manion estava abaixado ao meu lado, parecendo mais curioso do que enojado. Mas era eu que estava com a mão naquilo, não ele. O lenço não estava adiantando. A umidade atravessou o tecido e molhava meus dedos. Atirei a coisa para o outro lado da sala e fui atrás da garrafa, ouvindo Manion gritar para Jimmy.
- Arranje um balde com água!
Alguns minutos depois estávamos olhando para uma faca de fio duplo, com o cabo esculpido em algum tipo de pedra verde. O artista devia ser algum viciado em ópio com uma predileção doentia por estrelas-do-mar. Jimmy continuou a falar em feitiçaria, acabando com a minha paciência e a de Manion, que estava prestes a começar uma briga se o telefone não interrompesse.
- Manion. Quinlan? E então? Uma pista sobre umas crianças desaparecidas... não, não sei de nada sobre isso. A telefonista disse o que? Sotaque estrangeiro. Ok, Quinlan, eu ligo mais tarde. Sotaque estrangeiro. Senti meu cérebro sair de uma névoa de cansaço, choque e whisky.
- Jimmy, algum grupo de estrangeiros se instalou recentemente em Chinatown?
- Estrangeiros, como?
- Estrangeiros, nem americanos, nem chineses.
- Espera um pouco. Há uns três dias, houve uma confusão num jogo de fantã na Dupont Gai. Uns sujeitos estranhos tentaram forçar a entrada e meu pessoal teve que distribuir uns tapas. Eles pensaram que os sujeitos eram marinheiros, porque entre si falavam uma língua que ninguém conhecia.
Manion entrou no assunto.
- Já tive queixas contra esse pessoal. Uma bagunça no bordel da viúva Fong. Ela também pensou que eles eram marinheiros, porque não falavam chinês. Tem uns dez dias, mais menos.
Jimmy parecia menos histérico. Ajeitou o cabelo com os dedos, enquanto eu prosseguia.
- Muito tempo para um grupo de marinheiros ficar em terra. Parece mais imigração ilegal.
- Pode ser. Jimmy, os Huo Yibai ainda tem negócios com os repazes de Half Moon Bay?
Jimmy limpava o rosto com um lenço, já parecendo de novo o elegante e perigoso braço direito de Zhang Chai Lao.
- E quem disse que nós temos algum negócio com eles?
- Eu entrego meu distintivo de esse whisky não chegou aqui por Sausalito. Pare de besteira e ligue para eles. Pergunte se além de bebida eles andaram desembarcando imigrantes ilegais. Depois eu falo com o pessoal da Mission.
- Você manda, Mau Yee.
Decidi ir ver Thaler. Jack Manion e Jimmy Tan estavam em sua época e em sua cidade. Por enquanto, não precisariam da ajuda de alguém que nasceria em Los Angeles daqui a uns dez anos, mais ou menos.
No corredor ouviu uma voz entoando uma espécie de cântico. Saquei a arma e colei na parede. O som vinha do quarto onde haviam deixado Thaler. A porta estava aberta e a luz que vinha de dentro era fraca e parecia tremular.
Respirei fundo e entrei. Reno e Buffalo Bill estavam encostados na parede. Thaler estava na cama, parecendo bastante mal, e sentada ao lado dele uma mulher velha, mas de tranças ainda negras. Era ela que cantava e segurava uma vela.
Reno pegou meu braço e me puxou para fora do quarto.
- É a mulher de Bill. Uma legítima apache chiricaua, direto do Show do Oeste Selvagem. Bill fazia parte do Show, dá para acreditar?
- Atualmente eu acredito em qualquer coisa. E o que é que ela está fazendo?
- Ela disse que Thaler tem sangue índio também. Está rezando para ele se curar. Eu pensava que ele fosse meio mexicano, moreno daquele jeito.
- E isso vai adiantar de alguma coisa?
- Ele vai estar morto de manhã, Lace. Mal não vai fazer.
Voltamos para o salão. O cheiro da coisa no chão era horrível. Manion e Jimmy Tan já estavam de chapéu e sobretudo.
- Pensei que vocês iam perder a festa- Jimmy parecia bem mais bem-disposto. Quase voltei a simpatizar com ele. Manion me olhou franzindo as sombrancelhas.
- Você está bem?
Não estava. Estava tonto, enjoado e cansado o suficiente para já estar gostando da idéia do mundo acabar. Puxei uma cadeira e um cigarro.
- Aonde nós vamos?
- Você não vai a lugar nenhum. Está parecendo tão morto quanto o nosso amigo ali. Eu e Jimmy vamos perguntar por aí sobre esses imigrantes. Não saiam daqui. E caminharam para a escada, passando pelos cartazes do Show do Oeste Selvagem.
Senti a mão de Reno pesar no meu ombro, mas seus olhos estavam em Buffalo Bill, que observava a faca de cabo verde.
- Sabe o que é isso, Bill?
Buffalo Bill Wong parecia ter envelhecido mais duzentos anos além dos que já tinha.
- Acho que sim. Dez minutos depois estávamos num táxi de capota branca, do tipo que era usado tradicionalmente pelos gangsters de São Francisco.
CAPÍTULO 8
Agarrei a mão que estava no meu ombro e torci.
O motorista do táxi gritou, acabando de me acordar. Tinha dormido todo o trajeto. O motorista praguejava como um bom irlandês. Sei como é por experiência própria.
Peguntei por Bill e ele continuou a xingar. Agarrei a mão dele de novo e torci com mais força.
A casa era modesta por fora, mas por dentro ainda tinha um resto de refinamento. Quem morava ali não gostava de ostentação, mas sabia viver com conforto. Contornei os móveis da sala guiado pela luz que vinha do corredor. Ouvia as vozes de Bill e de mais alguém. Elas me levaram até um tipo de biblioteca ou escritório, com estantes de livros pelas paredes.
Em torno de uma mesa de trabalho estavam Bill e um outro homem, um judeu. Não precisava ir ao banheiro junto com ele para saber. Tinha o nariz certo, as roupas escuras e a barba. Bill abriu seu sorriso de dois dentes quando me viu e me convidou a sentar.
O outro me observava, e tinha olhos bons para isso. Eu tinha impressão que ele podia contar minhas vértebras se quisesse. A faca estava sobre a mesa, em frente ao judeu. Quando ele cansou do meu esqueleto voltou a ela. Bill desmanchou o sorriso. Eu sentei e esperei.
- Yezidi, com certeza. Vi dessas no Curdistão e no norte da Índia. Veja o trabalho no cabo. É uma das criaturas que eles chamam de Os Antigos.
Bill confirmou com a cabeça.
- Foi o que eu pensei. Mas trouxe para você confirmar.
- O senhor O'Malley estava com você?
- Foi ele que encontrou a faca.
- Pode repetir para mim como foi, senhor O'Malley?
Contei ao barbudo como foi que a coisa surgiu e tudo mais, até a hora em que eu achei a faca. Ele ouviu com os olhos na faca, mas levantou-os para mim de repente.
- E quanto ao seu surgimento, senhor O'Malley?
Por algum motivo, não me surpreendi com a pergunta. A gente fica assim quando os mortos começam a andar. Puxei meus Camels do bolso do paletó.
- O senhor se incomoda se eu fumar?
O rosto barbudo pareceu se divertir com a minha reação.
- Foi uma pena o que fizeram com Hollywood. Eu preferia os laranjais.
Acendi o cigarro sem permissão mesmo.
- Pois eu já prefiro coristas a laranjas. Mas podemos voltar aos Ye... seja lá o que for?
Bill me apoiou.
- Nós não temos muito tempo, Erich.
O barbudo resolveu ficar sério também. Melhor para ele.
- Claro, claro. Os Yezidis são descendentes de persas adoradores do diabo. Acreditam em entidades monstruosas, como essa esculpida no cabo dessa faca.
- A estrela-do-mar?
- Acredite em mim, senhor O'Malley, quando lhe digo que esta coisa é infinitamente mais poderosa e maligna que uma estrela-do-mar. E há outras muito mais assustadoras. Os yezidis acreditam que em certos momentos, quando determinadas estrelas estão alinhadas, esses seres podem ser invocados para iniciar um era de terror para a humanidade e de poder e glória para seus seguidores.
- A mesma história de sempre.
- Exatamente. Quando uma dessas datas se aproxima, há uma série de cerimônias preparatórias envolvendo sacrifícios humanos. Crianças, normalmente. Também consta que na proximidade dessas datas o poder de seus rituais e encantamentos aumenta consideravelmente, permitindo, por exemplo, a reanimação de corpos mortos e a sua ocupação por uma dessas entidades.
- Como a coisa que apareceu no restaurante.
- Precisamente.
- Mas se havia uma desses demônios estrelados dentro do corpo, quer dizer que nós o matamos?
- Talvez. Talvez ele tenha retornado ao seu corpo físico original. Mas essas coisas não são demônios, senhor O'Malley. Não no sentido religioso da palavra. São criaturas de matéria como nós, que vem de muito longe no espaço... ou no tempo.
Pode ser mania de perseguição, mas achei que a última frase do judeu tinha dois alvos, e um deles era eu. Quando isso tudo acabar, volto para perguntar umas coisinhas a esse palhaço barbudo. Se ainda estiver vivo, claro. O táxi que havia nos trazido não estava esperando. Levou mais de meia hora para aparecer outro.
CAPÍTULO 9
Manion, Jimmy Tan e Reno cuidavam de uma garrafa de Old Dougherty quando voltamos ao restaurante. Caixas de balas se espalhavam sobre a mesa. Jimmy carregava uma espingarda Eastern Arms, calibre 12, concentrado e cantando baixinho. É uma melodia divertida Me parece suave e atraente, que diz: Ja-Da, Ja-Da, Ja-Da, Ja-Da, Jing, Jing, Jing.
Respeito um homem que canta enquanto se prepara para morrer. Mesmo quando canta muito mal.
Sentei e peguei um copo que parecia estar me esperando. Manion esperou que eu bebesse antes de falar. - Telefonei para uns informantes meus em Bolinas e Sausalito. Ninguém ouviu falar sobre imigrantes ilegais, mas me contaram uma história estranha. Acho que se encaixa.
Um certo Bones Remmer apareceu boiando na baía, com o pescoço cortado. Era o proprietário de um barco com o mastro removível, para poder passar sob o píer na maré baixa e descarregar a bebida direto nos armazéns, por um alçapão no piso. Há uns dias atrás estava contando vantagens sobre um grande negócio que havia fechado, um carregamento que ele iria desembarcar no armazém de Eddie Farrel. Não disse o que era nem quando, apenas que havia fechado o negócio com um tal de Phil.
- E esse Farrell?
- Desaparecido há uns dias. O armazém está vazio. Se houve o tal desembarque, a carga sumiu.
- Alguma coisa sobre Phil?
- Nada. Ninguém sabe quem é. Alguém lembra de ter ouvido Bones dizer que o cara não era de São Francisco, que talvez fosse de alguma quadrilhas do leste, querendo se mudar para cá.
- É possível?
- Completamente fora de cogitação, pelo menos enquanto Bren "Brandy" McKenna for prefeito. Só para você ter uma idéia, Bren sustenta um bordel de gueixas caucasianas, na Sanchez com a Vigésima, só para agradar políticos visitantes. A maior parte do crime por aqui tem como acionistas a prefeitura, a promotoria e, muitas vezes, a própria polícia.
Reno já havia acabado a manutenção de sua arma e estava atento.
- Que lugar agradável. Já sei para onde eu vou quando me aposentar, Lace. Olhei para ele. Reno me conhecia o suficiente para ler o "cale a maldita boca" que estava escrito em letrinhas vermelhas nas minhas pupilas.
- Vamos imaginar, então, que os Yezidis...
- Quem?
- Yezidis. São esses imigrantes que estamos procurando. Vieram do Curdistão, seja lá onde for isso, e são adoradores de diabos com cabeça de estrela.... depois eu explico. Deixa eu continuar meu raciocínio. Os Yezidis vieram por mar e foram transferidos para o barco de Bones Remmer, que os desembarca no armazém de Eddie Farrel. Depois, de algum jeito, eles se instalam em Chinatown. Já que o tal Phil, que parece ser o contato deles no país, não é de São Francisco, não deve ter as conexões necessárias. O que nos leva a alguém em Chinatown. A essa altura, tínhamos a atenção de Jimmy, também.
- Eu e Jack pensamos nisso também. Alguém em Chinatown está nisso. E só tem um jeito de alguma coisa acontecer por aqui sem os Huo Yibai saberem. Foi minha vez de interromper.
- Lei Feng. Jimmy se recostou na cadeira. Parecia satisfeito com a conclusão. Manion o observava, com uma expressão de desgosto.
- É o motivo que você esperava, não é, Jimmy? Jimmy Tan sorriu um sorriso satisfeito e desagradável de ver.
- Já liguei para Zang Chai Lao e expliquei tudo. Ele me deu carta branca para agir. Tem uns homens a caminho. Manion se inclinou até aproximar o rosto do chinês. Falou baixo e pausado.
- Jimmy, se essa história virar uma guerra desnecessária com os Lei Feng, eu substituo seus olhos pelos seus bagos. Depois talvez eu te mate e leve sua cabeça pessoalmente para Zhang Chai Lao, acompanhado de cada homem do distrito e de cada filho da puta que eu encontrar na Mission capaz de usar uma arma. Fui claro?
Eu conhecia o sargento Jack Manion. Agora tinha acabado de conhecer o legendário Mau Yee. Sem esperar pela resposta de Jimmy Tan, Jack virou-se para mim.
- O puteiro de Chop-Chop. Se o próprio Chop-Chop não souber de nada, com certeza tem algum Lei Feng se divertindo por lá. Reno apanhou a arma sobre a mesa e meteu no paletó. Virou o resto do whisky e levantou.
-Vamos?
CAPÍTULO 10
Antes de sair, Jimmy e Manion tiveram uma discussão sobre esperar ou não os pistoleiros Huo Yibai, enquanto eu e Reno discutíamos sobre quem ia ficar com Thaler. Buffalo Bill resolveu as duas quesões quando voltou de dentro da casa, acompanhado pelo Colt Walker e pela esposa, que trazia um rifle.
- Vocês podem ir tranqüilos. O seu amigo está melhor. As orações de minha mulher são poderosas e ela atira bem, então cuidaremos de tudo por aqui. Jimmy, seus homens esperarão nos carros. Levá-los seria uma declaração de guerra. Eu levo chá e whisky para eles, mas não os quero aqui dentro.
Apesar de confiar em Buffalo Bill, ele e a mulher eram velhos, talvez velhos demais para o que tivessem que enfrentar. À bordo do Wolverine de Manion, Jimmy riu de minhas preocupações.
- Bill deve ser o mais perigoso de nós. E aquela índia dele não fica atrás. Demônios de cabeça estrelada devem ser uma das poucas coisas que ele ainda não enfrentou. Qualquer dia peça a ele para contar sobre a primeira guerra dos matabeles, em 1893, contra a nata dos guerreiros Lobelugas. Ou sobre a batalha de Imbembese.
- Mas isso não foi na África?
- Foi. Bill viajou muito por aí, antes de vir para os Estados Unidos.
- Foi quando ele entrou para o Show de Buffalo Bill? Quer dizer, do verdadeiro Buffalo Bill?
- Não. Ele veio para os Estados Unidos a convite do próprio Willian Cody. Se eu não me engano, foi Touro Sentado que apresentou os dois. Eles se conheceram na Inglaterra, quando o Show do Oeste selvagem se apresentou para a Família Real.
Essa história devia ser longa. Decidi deixar para mais tarde.
Quinze minutos mais tarde, enquanto Jimmy Tan e Jack Manion conversavam com o baixinho gago que era o proprietário do lugar, Reno punha abaixo a porta de um quarto no segundo andar.
Peguei o revólver sobre a mesa de cabeceira antes do pistoleiro Lei Feng que estava na cama e, sem me preocupar com a adolescente nua que o cavalgava, encostei o cano da Terminator na sua testa.
Cravei a faca Yezidi no tampo da mesa de cabeceira e tentei ler a expressão em seus olhos, o que não é fácil num chinês. A menina deu um grito quando viu a faca. Deixei ela se vestir e sair. O Lei Feng desistiu de negar que conhecia a faca, mas ainda não queria dizer nada. Substituí Reno na porta do quarto, vigiando o corredor, enquanto ele trabalhava o pistoleiro.
Dez minutos depois já estávamos de volta ao Reo Wolverine.
- Os Lei Feng tiraram os Yezidis do armazém e os trouxeram para Chinatown. Mas o cara não sabe onde eles estão.
Jimmy estava indignado com o pouco resultado da conversa com o pistoleiro.
- E você acreditou nele? Por que não insistiu mais?
- Porque o cara desmaiou. Além disso, não ia dar para entender nada do que ele dissesse. Reno tinha quebrado a mandíbula dele.
Manion dirigia, mas dava para notar que sua mente estava bem longe das ruas embaçadas pela neblina.
- Lace, o judeu que você e Bill foram ver não disse nada que ajudasse?
- Deixa eu ver... acho que falou alguma coisa sobre as cerimônias acontecerem em lugares isolados...
- Isso é óbvio. Ninguém sacrifica crianças em praça pública, ao meio-dia.
- E alguma coisa sobre templos profanados. Eles acreditam que um lugar que já foi sagrado tem mais poder.
Jimmy tirou os olhos da rua.
- Pat Noonan disse que a menina desaparecida tinha doze anos.
- E daí?
- Nessa idade, muitas delas costumam estar na escola dominical na Missão Metodista Chinesa, na Dupont Gai.
Eu continuava sem entender nada, mas Manion pegou alguma coisa.
- Espera aí... não tem uma Igreja abandonada nos fundos do prédio da Missão?
Já estávamos parando em frente ao Bill's. Em frente é apenas maneira de dizer, já que pelo menos uns dez carros haviam tomado a frente do restaurante. Todos estavam escuros por dentro, mas dava para notar os homens no interior, de chapéus enterrados na cabeça.
Manion, descendo do carro, olhou em volta e depois cravou os olhos nas costas de Jimmy Tan, que caminhava para um Morris-Cowley com volante do lado direito.
CAPÍTULO 11
Buffalo Bill Wong confirmou a história da Igreja atrás da Missão Metodista Chinesa. O prédio da Missão foi construído no terreno que havia na frente de uma antiga igreja católica, abandonada há muitos anos. O motivo do abandono envolvia padres enlouquecidos, sacrifícios, profanação de imagens e todo o resto do repertório diabólico. Manion confirmou por telefone que várias crianças desaparecidas freqüentavam a Missão.
- E alguém dos arredores acabou de fazer uma queixa de cantos e batidas de tambor vindo da área da missão. E não é a primeira vez.
O sargento Jack Manion, conhecido como Mau Yee, desligou o telefone e tirou o 38 do paletó. Verificou a munição e depois fez o mesmo com uma automática 45. Recolocou o chapéu e dirigiu-se ao grupo em torno dele, o que incluía a mim, Reno Stalker e o gangster chinês Jimmy Tan.
- Começou, seja lá o que for.
Gostei da cena. Decidido, destemido, um verdadeiro herói. Já vi muitas outras como essa antes e muitos corpos de heróis em sacos de plástico preto. Toquei no ombro de Jimmy.
- Pegue armas com seus capangas. Espingardas e metralhadoras. Lembra de quantas balas nós precisamos só para derrubar um deles? Se encontrarmos meia dúzia estamos mortos. Um carro vai nos seguir, e apenas um. Vai estacionar uns cinquenta metros atrás de nós e esperar. Se não voltarmos em meia hora, ele volta, apanha os outros e destrói o lugar.
Jimmy olhou para Manion, que enfiava um cigarro entre os lábios. Se fosse um lápis ele teria quebrado um dente.
- Está esperando um memorando?
Enquanto Jimmy saía, fiz um sinal para Reno e atravessei o salão do restaurante com ele atrás de mim. Passamos pela cortina de contas e pelo corredor. Abri com cuidado a porta do quarto de Thaler. A aparência dele estava melhor. O curativo na barriga tinha sido trocado e não estava tão encharcado de sangue quanto o último.
Apoiei o pé na cama e levantei a barra da calça. Reno entendeu e fez o mesmo. Cinco minutos depois tínhamos substituído os pentes de munição das Terminators por outros com munição explosiva que tínhamos, contra as normas da Intempol, presos nas canelas.
Contra as normas também era a caixinha preta, do tamanho de um maço de cigarros, que tirei do paletó. Reno me deu a dele e foi pegar a de Thaler. Enquanto amarrava as três com a tira de elástico que antes estava na minha perna, segurando o pente, Reno fazia as perguntas que não poderia fazer na presença dos outros.
- Demônios cabeça-de-estrela e igrejas abandonadas. É outro Artefato?
- Parece.
- Eu não entendo direito o que são essas merdas.
- Não se preocupe. Ninguém entende. Ninguém sabe o que são, nem quando foram deixados por aqui e nem porque.
- Thaler me explicou que eles são como uma antena de rádio. Um rádio precisa de uma antena para transmitir e outra para receber. Esses Artefatos são as antenas de recepção. Quando são ligados começam a transportar os filhos da puta para cá.
Olhei para Reno, impressionado com o tamanho do discurso. Ele deve passado algumas noites em claro para decorar isso tudo.
- Alguns dos malucos da Pesquisa dizem que os alienígenas estão dentro dos artefatos. Quer dizer, suas mentes, ou almas, ou qualquer coisa assim. Então algum cretino desenterra a coisa, acha bonito e leva para decorar a sala de jantar. No outro dia o cara já acorda transformado no novo sumo sacerdote de Cthulhu. Em duas semanas já tem um bando de idiotas em volta preparando a vinda dos Antigos para o próximo alinhamento de Marte com a puta que os pariu.
- Esse cú-de-qualquer-coisa que você falou, Thaler já me falou disso.
Eu não respondi. A resposta veio numa voz fraca, cortada por tosses.
- Cthulhu, (tosse) seu estúpido.
- Thaler!
Controlei a euforia de Reno e resumi a situação para Thaler. Ele costuma ter alguma informação útil quando o assunto é alguma coisa bizarra.
- A pesquisa acha que esse cara, o tal de H. P. Lovecraft, conheceu bem de perto o culto aos Antigos, mas todo mundo pensa que é invenção. Por que você não pergunta a ele ?
- Ele está vivo?
- Você não disse que estamos no final da década de vinte? Ele está vivo, sim. Mora em Providence, Rhode Island.
Do restaurante ouvimos a voz de Jack Manion perguntando alguma coisa sobre retoque de maquiagem. Já na porta do quarto alguma se mexeu na minha cabeça. Às vezes acontece, acredite.
- Thaler, o que significa o H.P.?
- Como?
- O nome do sujeito. O que quer dizer H.P.?
- Howard... Howard...
- Seria Philip? Howard Philip?
- Isso mesmo. (tosse) Howard Philip Lovecraft.
- Philip...Phil.
CAPÍTULO 12
Jimmy ocupou o banco traseiro do carro de Manion com uma bela coleção de artilharia pesada, incluindo bananas de dinamite.
Para não perder tempo abrindo espaço para mim e Reno, fomos no outro carro, com dois garotos chineses fantasiados de gangsters. O Reo parou em frente ao terreno da missão. O nosso carro, uns cinqüenta metros atrás. Reno me cutucou para mostrar um beco um pouco atrás de nós e disse que me esperaria ali, enquanto eu ia falar com Manion.
- Seus homens estão chegando?
- Daqui a pouco. Pedi a Quinlan que inventasse alguma história e desocupasse a Missão. Não deve ter muita gente, só o zelador e sua família.
- E esse Quinlan?
- Chega, tira as pessoas daqui e desaparece sem perguntas.
- OK. Eu preciso de uns minutos. Não comece sem mim.
Reno estava encostado na parede do beco. No escuro só via-se a brasa do cigarro contra um vulto gigantesco.
- Está ouvindo?
Prestei atenção. Vozes. Cantos. Tambores. Muito baixo, mas muito nítido. Devia ser o vento. Reno apontou para o fundo do beco.
- Para lá tem um muro mais baixo, que dá para o terreno da Missão. O lugar está uma verdadeira selva. Acho que vi a Igreja.
Entre lixo e mato, realmente via-se a sombra de uma construção com um tipo de torre que poderia ser um campanário. Mas não podíamos arriscar. Pulamos o muro e avançamos, meio agachados. Eu estava preparado para cachorros ou sentinelas, mas não para a voz que educadamente me cumprimentou.
- Boa noite, Sr. O'Malley. E este deve ser o Sr. Stalker.
Uma sombra estranhamente baixa estava à nossa frente. Podia ser de um garoto, se não fosse a voz grave e educada. O judeu amigo de Buffalo Bill. O barbudo que me devia algumas explicações.
- Erich. Erich Weiss. O senhor esteve na minha casa com Wong. E já que estamos aqui pela mesma razão, creio que essas armas apontadas para mim são desnecessárias.
- Isso eu decido assim que o senhor responder à umas perguntas. Quem, como, porque... esse tipo de coisas.
- Sr. O'Malley, eu acho que nós não temos tempo para isso. Se eu tivesse alguma coisa a ver com o que está acontecendo lá dentro, já teria matado os dois. Estamos aqui para interromper a cerimônia que está ocorrendo lá dentro e evitar um futuro que... bem, o senhor sabe.
Claro que eu sabia. Como ele sabia é que me preocupava.
Os tambores e vozes estavam mais altos e rápidos. Pus a mão no braço de Reno, que me olhou espantado mas abaixou a arma. Tirei do meu bolso as três caixas pretas amarradas. Deslizei uma pequena tampa numa delas e apertei um botão. Uma pequena luz amarela se acendeu.
- Cada caixa dessas é uma bomba. Destrói tudo num raio de trinta metros. As três juntas devem ser o suficiente, se forem colocadas no lugar certo. Meu problema é localizar esse lugar.
O baixinho olhou para a igreja alguns segundos e então fechou os olhos. A caixa foi construída de forma que o deslocamento espacial está vinculado ao deslocamento temporal, mas isso pode ser contornado. Programei-a para cinco minutos à frente, com permanência de cinco segundos e retorno para um segundo após o momento zero.
O barbudo me deu as coordenadas espaciais, incluindo um deslocamento vertical, para baixo, de quase cinqüenta metros. Direto para o inferno. Programei a bomba para detonar em dez segundos se eu desse mais um toque no botão e para detonação instantânea se houvessem dois toques.
Engatilhei a pistola, acendi um cigarro e passei o maldito cartão.
Buffalo Bill Wong ajudou a mulher a preparar uma bandeja com xícaras fumegantes de chá e outra com whisky e copos. Enquanto ela subia as escadas com o chá, Wong sentou-se um pouco, sentindo-se velho e cansado. Sem que ele percebesse, seus olhos começaram a fechar. Uma sacudida violenta acordou Buffalo Bill Wong. Não conseguia respirar. Tentou desesperadamente arrancar as mãos de Pat Noonan de seu pescoço antes de desmaiar.
CAPÍTULO 13
"A possessão pelas entidades relacionadas ao culto de Cthulhu e ao mito dos Antigos aparentemente causa alguma alteração no DNA do possuído. Apesar das severas restrições da Intempol ao estudo de espécimes, são freqüentes os relatos sobre as deformações nos indivíduos que nascem do contato entre os possuídos e as mulheres que seus adoradores seqüestram e aprisionam para esse fim. Criados em celas, testemunhas e vítimas de torturas, abusos sexuais e mutilações, consequentemente apresentam quadros irreversíveis de loucura violenta e retardamento mental. Mutilações e cirurgias primitivas também são usadas para a criação desses ‘monstros’ que parecem ter uma importante, embora ainda não totalmente esclarecida, função nesses cultos. Os lugares onde costumam se esconder os membros são, habitualmente, relacionados à eventos violentos. Locais onde ocorreram batalhas particularmente sanguinárias, por exemplo. Recomenda-se aos agentes uma atenção especial à lugares que tenham sido utilizados pelo Santo Ofício."
Extraído do "Resumo dos relatórios sobre o Culto de Cthulhu e afins".
Distribuição apenas entre agentes de nível 3 e/ou superior.
CAPÍTULO 14
Eu sentia a parede do beco nas minhas costas e a umidade da calçada se infiltrando pelas minhas calças. Acho que era a umidade da calçada, mas não posso garantir. Juntei toda a coragem que eu ainda tinha e abri os olhos. Se não fizesse isso logo, acho que nunca mais conseguiria.
Reno Stalker estava na minha frente, ajoelhado, e eu, em toda minha vida, nunca fiquei tão feliz de ver um rosto. Ele moveu os lábios, mas não ouvi as palavras. Um zumbido grave e contínuo cobria sua voz. Minha cabeça latejava, e tinha alguma coisa quente descendo da têmpora esquerda até o pescoço.
- Perdi a festa?
- Vá para o inferno, Lace. Você voltou berrando e apontando a arma para todo mundo. Tive que derrubar você e arrastá-lo para cá. A coisa explodiu praticamente nas nossas costas.
- O que? Não estou ouvindo!
Reno riu e devolveu minha arma. Fiquei olhando para ela como se nunca tivesse visto, enquanto ele pegou um lenço imundo e passou na minha têmpora. Empurrei a mão dele.
- Pare com isso. Um cara pode pegar tétano só de olhar para esse lenço. Reno riu de novo. Eu já estava em franca recuperação.
Logo que eu pude ficar sobre as pernas, tentamos melhorar o que era possível com lenços e pentes. Não adiantou muito. Programamos as caixas e passamos os cartões.
Mau Yee, que fora de Chinatown atendia pelo nome de Jack Manion e costumava ser encontrado em bares ilegais da Mission quando deveria estar no Esquadrão, viu quando duas criaturas cambaleantes saíram do beco onde Lace e seu urso de estimação tinham entrado, poucos minutos atrás. Puxou a arma com uma mão e cutucou o homem ao seu lado com a outra.
O homem ao lado de Manion era conhecido como Jimmy Tan, dentro ou fora de Chinatown. Era um capanga da quadrilha conhecida com Huo Yibai, grande consumidor de cocaína e um notório assassino. Também puxou seu revólver com coronha de nogueira e ficou esperando.
Quando as duas figuras cambaleantes puderam ser reconhecidas, Manion desceu do Reo Wolverine preto, enfiando a arma de volta no paletó.
- O que é que houve com vocês? Foi nesse exato momento que ouviu-se a explosão, atrás da missão. Jimmy pulou do carro.
- Mas o que é que está acontecendo?
CAPÍTULO 15
Thaler ouviu o barulho vindo do restaurante e acordou. Parecia uma cadeira caindo no chão. Desde que acordara com Reno e Lace no quarto, só tirava curtos cochilos. Já estava ficando impaciente com isso.
Outro barulho. Alguém derrubando outra cadeira ou chutando a que tinha caído antes. Thaler experimentou erguer o corpo. Sentiu dor, mas o ferimento na barriga não sangrou.
Outro barulho. Thaler levantou-se da cama, apoiando-se na parede. A barriga doeu de verdade. Arrastando os pés, saiu para o corredor, em direção ao restaurante. Quando alcançou a cortina de contas, o suor escorria pelas têmporas de tanta dor.
Apoiando o ombro no batente da porta, tirou a pistola do coldre e mirou nas costas largas do homem de terno escuro que estava estrangulando um velhinho chinês.
Abriu fogo. Por segurança, atirou mais uma vez. Por indignação com aquela covardia, atirou mais duas.
Mesmo não estando em condições de mirar com perfeição, Thaler com certeza havia perfurado os pulmões e arrebentado com a coluna do sujeito, além de grandes chances de ter acertado o coração. Ainda assim, ele continuou em pé. Apesar dos grandes buracos vermelhos e fumegantes nas costas, ele apenas se virou para Thaler.
Praticamente só tinha a metade direita da cabeça. Thaler não podia dizer que a coisa olhava para ele, já que o olho restante estava virado para cima, como é frequente nos cadáveres.
A Terminator 50, arma regulamentar da Intempol, podia descarregar seu pente de dezessete tiros em seis segundos, embora isso provavelmente deslocasse o pulso do atirador. Mesmo assim, foi o que Thaler fez.
Partido ao meio, o tronco do sujeito tombou para frente, ficando pendurado aos quadris por umas tiras de carne. Arrastando aquela metade pendurada, que sacudia os braços e tentava virar a cabeça, as pernas começaram a se mexer na direção de Thaler.
CAPÍTULO 16
Desci as escadas do restaurante de Buffalo Bill Wong's sentindo dolorosamente cada degrau. Minha cabeça doía. Meu estômago doía. Meus pés doíam. Se eu tivesse tentáculos saindo das orelhas, eles estariam doendo também.
Ainda estava meio surdo da explosão. O ferimento na minha têmpora ardia. Manion insiste em me interrogar e me ameaçar. Acho que vou matá-lo, começando por atirar em seus joelhos e subindo lentamente.
Pisei numa poça de sangue. Havia muitas delas, por toda parte. Tinha sangue pelas paredes, nas mesas e nas cadeiras. E um monte de pistoleiros chineses. Uma festa. As dançarinas deviam estar a caminho.
- Que merda aconteceu aqui?
Um vulto passou por mim e abriu caminho entre os chineses. Reno tinha visto Thaler sentado numa mesa, com um bocado de sangue nele também.
Fui atrás, enquanto Jimmy Tan e Manion ficaram com o que parecia o capanga-chefe por ali.
- Thaler! Você está bem?
O rosto estava meio acinzentado, como ficam as pessoas morenas quando estão pálidas. O sorriso era débil, assim como a voz.
- O que é que está acontecendo por aqui, Lace? Eu parti o cara ao meio e ele continuou vindo. Bill pegou o rifle e atirou nas pernas dele, mas mesmo assim ele continuou vindo, se arrastando pelo chão. Então entrou esse monte de chineses e atiraram até fazer o cara em pedacinhos.
- Eu te explico no quarto, quando você estiver deitado. Reno, ajude aqui.
Reno levantou Thaler como uma criança e carregou-o para dentro. A mulher de Bill passou por mim, fez um sinal para que eu ficasse e foi atrás dos dois. Sentei na cadeira onde Thaler estava e pus os pés na cadeira em frente. Acendi um cigarro. Achei melhor não beber mais.
Fechei os olhos por alguns segundos, até que algum filho da puta empurrou meus pés para o chão. Manion, é óbvio. E Jimmy a tiracolo.
- E então?
- Então o quê?
- Não comece, O'Malley. Você sabe que tem um monte de explicações para me dar. Pode começar por aquela explosão. Foi você, não foi?
- Fui. Eu e Reno podemos viajar no tempo, sabia? Nós voltamos no tempo alguns minutos, entramos na igreja e deixamos por lá uns explosivos que sempre carregamos conosco. Eles são do tamanho de um maço de cigarros, mas fazem um estrago enorme, como você notou. Pode voltar para casa. Não há mais com o que se preocupar.
- Lace, eu não estou brincando...
- Nem eu.
Jimmy está um pouco impaciente para meu gosto. Decidi dar um pouco de atenção a ele.
- Jimmy, só para você saber, minha arma está no bolso do meu paletó, onde, se você prestar atenção, vai notar que também está a minha mão.
Jimmy me olhou com toda a raiva que podia concentrar em seus olhinhos. Dava para azedar leite a dez passos.
Manion rosnou:
- Merda, Lace, vai querer complicar as coisas...
Rosnei de volta.
- Cale a boca. Levante devagar e vamos andando lá para dentro. Ouviu esse estalo? É minha arma sendo engatilhada. Você já viu o que ela faz. Você já me viu atirando. Sabe que eu fuzilo vocês dois antes que um desses capangas de Jimmy note alguma coisa. Agora vamos. Vocês na frente.
Atravessamos o salão e chegamos ao corredor. Estive o tempo todo perto deles o bastante para me acertarem um cotovelo, mas tinha que arriscar. Entramos no quarto onde Thaler e Reno estavam. Ali pude mostrar minha arma. Entendendo a situação, Reno tirou a sua também e apontou para Manion e Jimmy Tan.
- Acorde Thaler e se prepare. Voltamos em cinco minutos. Onde está Bill?
- No outro quarto. A índia está com ele.
Voltei ao corredor e achei outra porta. Abri cuidadosamente. Bufallo Bill estava deitado, com a esposa a seu lado. Havia mais alguém no quarto, um sujeito baixinho e barbudo.
- Não sei porque não estou surpreso.
O barbudo sorriu. Até que era um sorriso agradável, para alguém que está do lado errado de uma arma.
- Também o esperava, senhor O'Malley.
- OK, vamos dispensar o chá e os bolinhos. O que você sabe sobre essa confusão toda?
- Muito, como o senhor já deve ter notado. Mas estou do lado dos mocinhos, acredite.
- Acredito. E Bufallo Bill?
- Já tinha visto isso antes. Na Ásia. A primeira vez que ouvi falar dos Antigos, foi por ele. Também me levou a certos lugares, mas nunca pertenceu ao culto.
- Acredito nisso também. E qual o seu interesse nisso tudo?
- O oculto, o sobrenatural, foi durante muito tempo minha profissão. Mesmo depois que abandonei a minha antiga vida, a curiosidade nunca me deixou.
- A curiosidade já matou muito mais do que um gato. E esse tal de Phil?
- Trabalhou para mim algum tempo. Cometi o erro de deixar que ele tivesse acesso a certos... conhecimentos.
- Imagino. Ele armou isso tudo?
- Isso o senhor já sabe.
- Sei. Mas há mais alguém.Transportar os Yezidis e instalá-los em Chinatown, tudo isso requer dinheiro e conexões. Aqui e no oriente. Parece que Phil armou tudo, mas há alguém por trás dele. Talvez você. Talvez Bufallo Bill. Agora eu não tenho tempo para descobrir. Mas se foi você, nós vamos nos ver de novo.
Acenei para a esposa de Bill e ela sorriu para mim. Todo mundo resolveu ficar feliz, de repente. Voltei para o quarto de Thaler, que já estava sentado na cama, com o paletó jogado nos ombros. Manion e Jimmy estavam sentados no chão, sobre as mãos.
Guardei minha arma e sentei no chão também.
CAPÍTULO 17
Acendi um cigarro e estendi o maço a Jack.
- Tire as mãos da bunda e pegue um. Precisamos conversar. Jimmy começou a se mexer também. Mandei o meu olhar especial para ele.
- Não falei nada sobre você. Fique quieto. Manion sacudia as mãos dormentes.
- Eu respondo por ele, O'Malley.
- Então você morre junto com ele, se alguma coisa acontecer. Tudo bem, Jimmy.
Ele se remexeu, levantou as mãos e sacudiu-as também. Hora de começar o discurso.
- Eu não posso fazer o que preciso para sair daqui e continuar a apontar uma arma para vocês. Então vamos resolver isso agora. O problema imediato acabou. Acho que isso é o principal para todos. Concordam?
Jimmy não tirava os olhos de mim. Manion abaixou a cabeça e logo levantou de novo.
- Ainda não está resolvido. Ainda tem o tal de Phil.
- Eu disse o problema imediato. O culto não existe mais. Vocês agora tem que cuidar para que ele não recomece.
- Nós? E você, está tirando férias?
- Não é mais da sua conta o que eu vou fazer e nem para aonde eu vou. Me responda uma coisa: quem chamou você aqui, no restaurante de Bill?
- O próprio Bill.
- Você falou com ele?
- Na verdade, não. Ele deixou um recado no distrito.
Jimmy resolveu entrar no assunto.
- Aonde você quer chegar?
- Quando eu chegar você vai saber. Eu vim para cá porque tinha uma informação de que Bill seria morto esta noite. Acho que alguém o queria morto porque ele já tinha visto isso tudo antes. Quando começasse, ele reconheceria. E procuraria ajuda. Vocês dois. Assim, alguém cuidou para que vocês estivessem aqui também, para morrer junto com Bill.
- E onde entra Pat Noonan? Alguém pensou que ele poderia dar conta de nós três?
- Dos três, não, mas talvez apenas de você, Jimmy. Ou de Manion. Mas de qualquer forma, ele seria morto e estaria por aqui, pronto para voltar e continuar o serviço. Manion apagou o cigarro no chão, antes de falar.
- Jimmy, foi Zang Chai Lao que o mandou aqui, não foi?
- Claro.
- E nós estamos procurando por uma pessoa que tem poder e dinheiro. Conexões aqui e no oriente. E, principalmente, capacidade para preparar tudo sem que os Huo Yibai percebessem. O que é quase impossível em Chinatown, a não ser...
Jimmy olhou de Manion para mim e vice-versa. Um flash de fotografia explodiu no meu rosto.
Gritos.
Antes que es estrelas sumissem e a dor começasse, eu já sabia que Jimmy tinha me chutado no rosto e deslizado para fora do quarto. Ele era o que estava sentado mais perto da porta. Reno tentou ir atrás dele, mas soaram uns tiros no corredor. Ouvimos gritos em chinês vindos do restaurante. Manion me pegou pelo braço e me ajudou a levantar.
- Eu consigo uns minutos. Se vocês tem como sair daqui, aproveitem. Tentei fixar o seu rosto, mas tudo ainda estava dançando. Meus lábios pareciam diferentes, maiores.
- Você ficou louco?
Manion encostou no batente da porta e gritou para ocorredor.
- Jimmy! Eu vou sair!
E saiu para o corredor. Não ouvi tiros. Manion caminhou para o restaurante.
Foi a última vez que o vi.
CAPÍTULO 18
- Você sabe se Manion morreu ali?
- Deixe de bobagem. Você sabe muito bem que Manion morreu muitos anos depois. Ele deve ter provocado Jimmy para um duelo, e sendo Jimmy como era, aceitou.
- Vocês voltaram em seguida.
- Exato. No vestiário, exatamente como antes. Só que dessa vez eu liguei de um telefone interno para a Pesquisa. Pedi para falar com Dana, quer dizer,com a Dra. Dale.
- E contou a ela o que tinha acontecido?
- Não naquele momento. Apenas fiz umas perguntas que só ela saberia responder.
- Perguntas de que natureza?
- Daquela natureza que não é da conta de ninguém, a não ser de duas pessoas casadas.
- Entendo. Mais tarde, porém, você contou tudo a ela.
- Claro que sim. A Dra. Dale, como responsável pelo Setor de Pesquisa, tem que ser informada de qualquer anomalia. E se isso não foi uma anomalia, eu não sei o que é.
- Não lhe ocorreu que, devido à gravidade da questão, seus superiores do setor de Segurança deveriam ser informados primeiro?
- Você está querendo dizer que eu deveria ter mantido segredo disso tudo.
- Pelo menos até que a Direção decidisse o que fazer. Afinal, não há nenhum precedente para esse caso. Nunca antes a própria Intempol tinha sido afetada, até esse nível, por uma alteração de LT.
- E é por isso que eu estou aqui? Ah, vão para o inferno! Se tem alguém nessa merda que pode evitar que isso aconteça de novo, é Dana. Posso continuar o relatório ou não?
- Por favor.
- Não encontramos mais nenhum indício de presença de Artefatos ou do Culto. Zang Chai Lao foi morto, e acho que tem dedo de Manion nisso. Talvez o dedo que puxou o gatilho. O tal de Phil...
- H. P. Lovecraft. Isso nos leva a outra questão. Como ele teve contato com o Culto.
- O judeu, Erich. Ele me disse que Phil trabalhou para ele, durante algum tempo.
- E você investigou a identidade desse Erich?
- Mandei o computador relacionar H.P.Lovecraft ao nome Erich. Não levou nem um minuto. Erich Weiss era o nome de Houdini.
- O ilusionista?
- O próprio. Lovecraft escreveu algumas de sua aventuras, para revistas da época. Assinava como sendo o próprio Houdini. Eles devem ter tido algum contato.
- Mas Houdini consta como tendo morrido em 1926. Vocês estavam...
- Depois disso, eu sei. Mas não tenho nenhuma explicação para isso. Mas existem registros de pessoas ligadas ao culto que tiveram suas vidas prolongadas, assim como ocupação de corpos por personalidades de pessoas já falecidas. Talvez...
- Esse caso é muito sério para nos permitirmos conjecturas, Sr. O'Malley. O seu setor não investigou?
- Eu voltei lá, pessoalmente. Nada. Nem a casa estava lá. Segundo as pessoas da vizinhança, ninguém morava naquele terreno há muitos anos, desde...
- Sim?
- Desde que uma antiga igreja, que ficava lá, foi demolida. Uma igreja que há muitos anos, foi profanada por...
Eu e Reno avançamos pelo corredor, segurando Thaler e com nossas armas na mão livre. Abrimos a porta dupla aos pontapés, quase matando de susto o pessoal do guarda-roupa. Olhamos cada rosto cuidadosamente, e cada um era o que conhecíamos. Eles nos olhavam perplexos. Natural, levando em conta a nossa aparência. Perfeita e maravilhosamente natural.
Levamos Thaler para a enfermaria, mas antes Reno apoiou Thaler em mim e se aproximou de Marianne. Ela olhou para ele com uns olhos enormes e perguntou se estava tudo bem e o que é que tinha acontecido.
Um sorriso abriu-se bem devagar no rosto de Reno Stalker e ele puxou a moça e deu-lhe um beijo de honrar o final de qualquer filme. Ainda é a melhor maneira de terminar uma história, na minha opinião.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
O Senhor da Luz: resenha por Ernesto Nakamura
Começamos aqui a republicar a série de depoimentos pessoais dos autores/fãs da FCB a respeito de seus autores preferidos. Para começo de conversa, Ernesto Nakamura e Roger Zelazny.
***
Eis uma daquelas obras que encontram seu leitor.
Minha relação com este livro começou em 1985, quando estudava na Unicamp. Eu não seria o aluno mais vagabundo da Universidade porque a concorrência era brava. Mas não era como meus colegas mais hedonistas, uma vez que para se passar o periodo universitário no esquema sexo, drogas e festas radicais, requer-se bastante dinheiro, beleza ou isso que hoje chamam inteligência emocional, coisas que jamais tive.
Sem dinheiro, não podia comprar livros interessantes, mas o dono da livraria era generoso e eu passava as tardes lendo os livros lá mesmo. Por várias vezes tive O Senhor da Luz em mãos mas nunca li realmente o livro, pois numa pré-leitura, a classificava como ficção científica ao estilo Daniken.
Certa noite, apos mais uma vez comprovar minha incompetência social, fiquei só, sem companhia, nem amigos e sentindo-me mais frustrado que o habitual. Então passei na livraria buscando algum romance leve. Nada achei de interessante e abri mais uma vez o livro, que permanecera na prateleira por dois anos e finalmente virara saldo, já amarelado. Então compreendi o enredo básico: o herói finge-se Buda, imitando a parábola do falso iluminado, luta contra os deuses. Seus aliados são o Diabo, a Morte e a Noite. Achei muito adequado ao meu estado emocional. Comprei o livro, para surpresa do dono.
Fui ler o romance no bar que freqüentava, um ponto de encontro para estudantes em busca de parceiros para uma noite. Pelas qualidades já citadas, para mim este local era extremamente sossegado, uma vez que ninguém costumava sequer me dirigir a palavra. Após quatro horas e algumas cervejas (sim, era assim que lia meus livros), estava encantado.
Pela primeira vez meus lados místico e racional ficaram satisfeitos simultaneamente. Toda a carga budista que carregava sem saber apareceu-me, nua e tremente, ridicularizada. Para quem não sabe, o budismo tal-como-conhecia era quase lovecraftiano em suas fantasmagorias de punição, inferno e mistificação.
Um romance que ao mesmo tempo usa o estilo da hard-fiction, mas também escreve um conto mistico, usando mesmo alegorias e parábolas realmente encantadoras. Fiz algo raro: reli o romance, agora analisando sua estrutura e construção. Achei curioso: parecia mal escrito! Por isso, jamais me interessei nos dois anos em que folheava o livro na estante: sua beleza só aparece após a leitura, quando a história fez sentido, uma vez que é contada em flashback. Mais que um romance coeso, era uma coleção de pérolas, pequenas frases geniais, poemas e piadas infames e filosóficas.
Havia encontrado um novo patamar de qualidade, provando que era possível reunir aspectos como religião, filosofia oriental, ficção científica e humor sem vrar uma música tropicalista. Hoje, quando analiso meu próprio estilo de escrever, místico-humorístico, percebo que imito, ou gostaria de imitar, o estilo de Zelazny, deste livro. Não li nada mais do autor, talvez por medo de me decepcionar. Pelo que falam de Amber, creio ser correto minha distância respeitosa.
Finalmente, se hoje me considero um pouco melhor do que naquela época, um pouco disso se deve ao senhor da luz, a partir do qual refiz minhas leituras sobre filosofia oriental, budismo, hinduísmo, tomados de uma perspectiva lúdica e acho que me libertei deste karma.
Neste sentido, para mim, O Senhor da Luz foi um texto religioso, de libertação pessoal.
***
Eis uma daquelas obras que encontram seu leitor.
Minha relação com este livro começou em 1985, quando estudava na Unicamp. Eu não seria o aluno mais vagabundo da Universidade porque a concorrência era brava. Mas não era como meus colegas mais hedonistas, uma vez que para se passar o periodo universitário no esquema sexo, drogas e festas radicais, requer-se bastante dinheiro, beleza ou isso que hoje chamam inteligência emocional, coisas que jamais tive.
Sem dinheiro, não podia comprar livros interessantes, mas o dono da livraria era generoso e eu passava as tardes lendo os livros lá mesmo. Por várias vezes tive O Senhor da Luz em mãos mas nunca li realmente o livro, pois numa pré-leitura, a classificava como ficção científica ao estilo Daniken.
Certa noite, apos mais uma vez comprovar minha incompetência social, fiquei só, sem companhia, nem amigos e sentindo-me mais frustrado que o habitual. Então passei na livraria buscando algum romance leve. Nada achei de interessante e abri mais uma vez o livro, que permanecera na prateleira por dois anos e finalmente virara saldo, já amarelado. Então compreendi o enredo básico: o herói finge-se Buda, imitando a parábola do falso iluminado, luta contra os deuses. Seus aliados são o Diabo, a Morte e a Noite. Achei muito adequado ao meu estado emocional. Comprei o livro, para surpresa do dono.
Fui ler o romance no bar que freqüentava, um ponto de encontro para estudantes em busca de parceiros para uma noite. Pelas qualidades já citadas, para mim este local era extremamente sossegado, uma vez que ninguém costumava sequer me dirigir a palavra. Após quatro horas e algumas cervejas (sim, era assim que lia meus livros), estava encantado.
Pela primeira vez meus lados místico e racional ficaram satisfeitos simultaneamente. Toda a carga budista que carregava sem saber apareceu-me, nua e tremente, ridicularizada. Para quem não sabe, o budismo tal-como-conhecia era quase lovecraftiano em suas fantasmagorias de punição, inferno e mistificação.
Um romance que ao mesmo tempo usa o estilo da hard-fiction, mas também escreve um conto mistico, usando mesmo alegorias e parábolas realmente encantadoras. Fiz algo raro: reli o romance, agora analisando sua estrutura e construção. Achei curioso: parecia mal escrito! Por isso, jamais me interessei nos dois anos em que folheava o livro na estante: sua beleza só aparece após a leitura, quando a história fez sentido, uma vez que é contada em flashback. Mais que um romance coeso, era uma coleção de pérolas, pequenas frases geniais, poemas e piadas infames e filosóficas.
Havia encontrado um novo patamar de qualidade, provando que era possível reunir aspectos como religião, filosofia oriental, ficção científica e humor sem vrar uma música tropicalista. Hoje, quando analiso meu próprio estilo de escrever, místico-humorístico, percebo que imito, ou gostaria de imitar, o estilo de Zelazny, deste livro. Não li nada mais do autor, talvez por medo de me decepcionar. Pelo que falam de Amber, creio ser correto minha distância respeitosa.
Finalmente, se hoje me considero um pouco melhor do que naquela época, um pouco disso se deve ao senhor da luz, a partir do qual refiz minhas leituras sobre filosofia oriental, budismo, hinduísmo, tomados de uma perspectiva lúdica e acho que me libertei deste karma.
Neste sentido, para mim, O Senhor da Luz foi um texto religioso, de libertação pessoal.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
A maior banda de ficção científica do mundo
Esta é a republicação de um artigo que escrevi na semana seguinte ao primeiro show do Rush no Brasil, ocorrido em 23 de Novembro de 2002.
Ainda acredito em tudo que escrevi abaixo. Quem não leu na época, veja se concorda...
***
O Rush tocou no Maracanã.
Só o peso de irrealidade desta frase já é suficiente para incluí‑la no gênero da FC – particularmente, esperei por mais de vinte anos por esse momento e o que assisti foi um show quase perfeito, não fosse a má equalização das guitarras de Alex Lifeson e da voz de Gedy Lee (inaudível em certos momentos).
Nem é preciso dizer que trata‑se de minha banda preferida, né? Pois.
Minha mulher ficou perguntando o que diabos o Rush tem que a torna diferente de todas as outras bandas de rock do mundo. Eu tentei responder...
Eles navegam entre muitos estilos da música pop‑rock com familiaridade e conhecimento de causa invejáveis.
Quer dançar? Tasca no CD player o PRESTO, aquele dos coelhinhos na capa. Porrada na idéia? Nada como o CARESS OF STEEL, terceiro disco do trio canadense. Ah, sua tara inconfessável é viajar durante horas sob os efeitos de sons “progressivos”? Então manda o HEMISPHERES tímpanos adentro. Hmmm... algo de techno? SIGNALS. Pop? ROLL THE BONES. Hard rock efeêmico? MOVING PICTURES.
Mas acho que nada me agrada mais que prestar atenção nas letras – compostas em sua maioria pelo baterista Neil Peart – , que abraçam um amplo espectro, da simples crônica de costumes (Working Man, I Think I’m Going Bald), a citações literárias (Tom Sawyer, Rivendell), fábulas (The Trees, By‑Thor and The Snow Dog), história (Bastille Day) e reflexões de cunho pessoal que, ao contrário do que possa parecer, não soam nada pretensiosas (Time Stand Still, Red Barchetta, Nobody’s Hero, Limelight). Sem falar nas várias incursões dos três pelos caminhos da ficção científica musical.
Algumas canções são compostas como trilhas sonoras para determinados livros ou contos de autores tão diversos quanto polêmicos. Anthem, baseada no romance homônimo de Ayn Rand, retrata uma civilização onde um regime super‑capitalista e assumidamente de direita funciona como uma distopia azeitada (nas palavras de Carlos Orsi Martinho, um tipo de “anarco‑capitalismo”); e a já citada Rivendell é referência direta ao SENHOR DOS ANÉIS, de Tolkien.
Mas o forte mesmo é quando os caras compõem material inédito, de inspiração própria. O número 2112, além de batizar o quarto álbum, também é o nome da canção que introduz a história dos “Monges do Templo de Syrinx”, cujos imensos computadores reúnem uma súmula do Universo (2112, The Temples of Syrinx). GRACE UNDER PRESSURE, de 1984, está prenhe de influência cyberpunk na letra de The Body Electric (Trying to change it’s program, Trying to change the code – Crack the code. Images conflicting Into data overload); ecos paranóicos de Philip K. Dick em Distant Early Warning (Left and rights of passage Black and white of youth Who can face the knowledge That the truth is not the truth. Obsolete. Absolute) e uma pequena obra‑prima narrada em primeira pessoa pelo sobrevivente de uma invasão alienígena que foge de um campo de concentração: Red Sector A [I hear the sound of gunfires At the prision’s gate Are the liberators here? – Do I hope or do I fear? (...) Are we the last ones left alive? Are we the only human beeings To survive?].
SIGNALS, lançado em 1982, pode ser considerado um disco de FC na íntegra. Com exceção de uma canção, Losing It, as outras sete faixas ostentam títulos como The Analog Kid, Digital Man, New World Man, Countdown (composta em homenagem aos astronautas da Challenger), Chemistry, The Weapon e Subdivisions. Cacotopias, naves espaciais e cyborgues pulam de um lado para o outros em mais de 40 minutos de duração do CD.
Para terminar, o último disco dos caras, VAPOR TRAILS, motivo da turnê que os trouxe ao Brasil, deixa um pouco de lado o casamento com a música eletrônica que durava desde o fim dos anos 80, e flerta com a eletricidade. Os temas estão mais ligados à volatibilidade da vida e a impotência diante de forças acima do ser humano comum, como nos petardos The Stars Look Down (Like the rat in a maze who says, “Watch me choose my own direction” Are you under the illusion The path is winding your way?), Secret Touch (You can never break the chain There is never love without pain) e a canção‑título Vapor Trails, que evoca imagens apocalípticas dignas dos contos de Arthur C. Clarke e Ray Bradbury (Stratospheric traces of our transitory flight Trails of condensation held in narrow bands of white The sun is turning black The world is turning gray All the stars fade from the night The oceans drain away).
Ou seja, caríssimo, você gosta de ficção científica e não foi ao show no último sábado? Tá, então faça um favor a si próprio: aproveite o Natal e arrume um CD dos caras.
Qualquer um.
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
A volta da Mortífera Maldição da Múmia
Graças ao auxílio luxuoso de Fernando Trevisan, a webcomic A Mortífera Maldição da Múmia, uma produção da equipe Calango Produktado baseada no conto homônimo de Carlos Orsi, publicado originalmente na antologia Intempol (Ano Luz, 2000), ressuscitou e passa bem.
Vão lá e curtam!
Vão lá e curtam!
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
O ovo e a galinha: conto de Jorge Nunes
Por detrás das grossas lentes dos óculos gatinho, a supervisora Mariete fuzilou com olhar de raio laser os dois agentes sentados do outro lado da mesa. Macedo mascava ruidosamente um chiclete e inspecionava com olhar vazio o teto da sala. Sobrinho brincava de girar o chapéu com um só dedo enfiado na copa e assobiava entre dentes uma melodia infame. A supervisora Mariete suspirou fundo. Estava cercada de imbecis, e se sentia muito cansada e solitária.
Não que ela fosse um exemplo de competência. Também saía às vezes da linha, como no dia em que aceitou um convite para jantar com... Mas isso já é uma outra história, e ela abanava a cabeça como para apagar da memória a lembrança. E só quem sabia dos detalhes do caso eram aqueles dois idiotas do outro lado da mesa. Reuniu toda a indignação suficiente para poder passar uma descompostura eficaz nos dois subordinados e mandar-lhes para a próxima missão. Ergueu a régua no ar e golpeou-a com força sobre a mesa:
- Parem com isso!
O estalo da régua sobre a madeira despertou os dois agentes, que num sobressalto recompuseram-se e se aprumaram nas cadeiras. A supervisora Mariete disse:
- Jogue esta porcaria fora, Macedo. Isso me dá nos nervos.
Macedo levou dois dedos à boca, tirou o chiclete e ameaçou aplicá-lo sob a mesa. Sobrinho olhou para o companheiro e abanou discretamente a cabeça em negativo. Por alguns instantes Macedo ficou indeciso, com o chiclete na mão, até que a supervisora apontou para a lixeira.
- Ali, Macedo - ela disse, levando uma das mãos à testa, enquanto apontava a lixeira com a outra. Ele depositou o chiclete no lixo e voltou à cadeira. A supervisora se levantou e começou a falar:
- Eu devia esfolar vocês. Prendê-los não adiantaria, já que ainda assim não me livraria dos dois. Continuariam no mesmo lugar onde trabalham e que, infelizmente, é onde eu também trabalho. Por isso, só posso mandá-los para o inferno e é exatamente o que eu vou fazer. Vocês são, provavelmente, os piores agentes que já passaram por aqui, e estão por um fio. Mas vou lhes dar mais uma chance para não ganharem um bilhete azul. Ou então para desaparecerem por completo, o que não seria nada mau.
Macedo e Sobrinho se entreolharam enquanto a supervisora se aproximava por trás das cadeiras onde estavam sentados. Ela pôs a régua debaixo de um dos braços e colocou as mãos sobre o ombro de cada um dos agentes. Continuou:
- Mas dessa vez não vou admitir falhas, não vou tolerar nehum descuido! Aliás, se falharem, não sou eu quem vai puni-los. A supervisora deu um sorrisinho sádico. Macedo limpou um perdigoto da calva, lançado pela veemência da supervisora ao articular puni-los. Ela ajeitou o coque atrás da cabeça e apontou com a régua dois envelopes pardos sobre a mesa.
- Aí estão as instruções. Leiam com cuidado, não se precipitem. O caso até que não é complicado, mas em se tratando de dois idiotas como vocês tudo é possível. Agora sumam daqui.
Os dois agentes nível 2 da Intempol recolheram da mesa os seus respectivos envelopes, levantaram-se e saíram da sala. A supervisora Mariete sentou-se em sua cadeira e olhou com desalento para a folhinha: ainda faltavam quatro meses para as suas férias. Que ironia! Ela era supervisora da Intempol, a respeitável instituição responsável pela ordem no tempo.
Teoricamente dispunha de todo o tempo do mundo, mas era escrava da enervante e arrastada seqüência normal de quatro longos meses, até o doce descanso no lugar e tempo que quisesse. Escolher o local onde passar as férias e o período histórico que desejasse era um dos poucos privilégios de trabalhar para a Intempol que a supervisora considerava. Às vezes pensava como seria bom trabalhar, por exemplo, como bibliotecária numa obscura cidadezinha do interior, ou algo assim. Alguma coisa bem prosaica a simples, sem a pressão dos ponteiros dos relógios, sem o labirinto dos dias, meses, anos e séculos nas folhinhas sufocando na cabeça. E, principalmente, sem ter de aturar as chantagens de certos agentes... Levantou os óculos para a testa e apertou os olhos com os dedos. Estava cansada, muito cansada.
No corredor, Sobrinho comentou com Macedo:
- A velha está cada vez pior. Vive nos chamando de imbecis, mas esquece das besteiras que faz. Um dia, ainda perco a cabeça e dou com a língua nos dentes...
- Deixa de coisa, Sobrinho. Ela faz bobagem também, mas resolve. E ainda tem que resolver as nossas. Vamos até o banheiro. Quero te mostrar uma coisa.
- Tá me estranhando, parceiro?
- Cala a boca e entra aí. Macedo abriu a porta do banheiro e empurrou o parceiro para dentro. Tirou do bolso um pacotinho de plástico transparente contendo um pó branco.
- Sabe o que é isso? - perguntou Macedo, sacudindo com dois dedos o pacotinho. Ele mesmo respondeu:
- Cocaína. Lembra daquele cara que a gente prendeu semana passada, contrabandeando tudo quanto é porcaria pelo tempo? Ele tentou me subornar com ela. Disse que valeria uma grana alta.
- Sim, eu sei, mas só em determinadas épocas, quando era proibida. Aqui não vale nada.
- Foi o que eu disse pro cara, antes de botá-lo em cana. Mas acontece que eu nunca experimentei, dizem que dá uma sensação incrível para quem cheira. Você se sente mais seguro, mais confiante, fica com a atitude ideal para um policial. O cara me ensinou como se faz. E aí? Vai nessa?
- Por que não? Não pode fazer mais mal do que a comida daqui. E olha que o que ela faz é justamente o contrário: dá desânimo e enjôo, quando não diarréia - e Sobrinho olhou pensativo para as latrinas. Macedo pegou da pasta um pratinho que apanhara na cantina, acendeu o Zippo e com ele aqueceu a sua superfície. Espalhou com cuidado um pouco do pó sobre o prato.
- O calor tira a umidade, e faz o pó ficar mais solto - explicou - Me empresta o teu cartão cronal.
Sobrinho tirou do bolso o cartão e passou-o ao colega, meio desconfiado. Reclamou:
- Olha lá, rapaz, o que voce vai fazer com o meu cartão? Sabe como é a burocracia para a segunda via...
- Calma, Sobrinho. Ele começou a separar o montinho de pó com o cartão, em duas carreiras estreitas e paralelas, de mais ou menos sete centímetros de comprimento. O cartão de plástico, usado da mesma forma que uma faca picando salsa, fazia um ruído de código morse enquanto delineava na superfície do prato as duas tiras de pó. A operação foi meticulosa, e Macedo cuidava para que as carreiras fossem as mais finas e regulares possível. Depois de se dar por satisfeito com a forma das paralelas brancas de pó sobre o prato, devolveu o cartão a Sobrinho, tirou da carteira uma nota de dez e enrolou-a em canudo, como lhe havia dito para fazer o homem que tentara suborná-lo. Sobrinho acompanhava a operação enquanto acendia um cigarro. Ele perguntou:
- E agora?
- Agora a gente cheira essas carreiras, aspirando bem fundo - respondeu Macedo. Curvou-se sobre a pia onde estava apoiado o prato, enfiou uma das extremidades da nota em canudo em uma das narinas, ao mesmo tempo que fechava a outra com um indicador, e aspirou toda a carreira da esquerda para os pulmões. Sentiu uma ligeira ardência por dentro enquanto o pó passava pela narina, atravessava a traquéia e se infiltrava nos brônquios, até que se alojasse nos pulmões, de onde se espalharia pela corrente sangüínea e alcançaria o cérebro, transformando Macedo no super-policial que ele imaginava o pó ser capaz de criar. Fungou algumas vezes e estendeu a nota enrolada para o companheiro:
- Sua vez agora, parceiro. Sobrinho repetiu a operação. Macedo passou um dedo pelo prato recolhendo os resquícios do pó e passou-o nas gengivas. O outro perguntou:
- Pra quê isso, cara?
- Sei lá. Mas o cara disse que é assim que se faz. Vamos nessa. Percorrendo o branco corredor de paredes nuas do terceiro andar da Intempol até o elevador, entre solenes meneios de cabeça em cumprimento a esse ou aquele agente, Macedo e Sobrinho sentiam crescer a sensação de euforia e excitação que a droga lhes trazia. Sobrinho comentou:
- Não estou sentindo nada, cara. Acho que aquele babaca te enganou. Quer dizer, babaca é você, que caiu nessa. Você é um otário, mesmo, e eu não sei onde eu tenho a cabeça que vou sempre na sua.... Ei, lembra daquela gata do almoxarifado? Ela me deu maior mole, ontem. Acho que vou dar um papo nela. Cara, estou com uma sede. Por que a gente não vai ao bar? Pô, essa cocaína não faz efeito nenhum...
- Cala essa boca, Sobrinho. Parece um papagaio. Sobrinho intercalava cada frase curta com uma fungada e um sacolejar de ombros. O elevador chegou, e os dois agentes desceram ao segundo andar, para o grande salão onde cada agente tinha a sua escrivaninha própria. Cada um buscou a sua e abriram os envelopes contendo a próxima
Enquanto Macedo lia o conteúdo, seu queixo ia desabando. O memorando dizia:
"De: Supervisora Mariete Para: Agente Macedo Assunto: Missão 325/LCG
De acordo com dados apurados em nosso Nível 5, a atuação de alguns agentes da Instituição, ao invés de atender o objetivo de manter a ordem no CET, tem provocado significativas e perigosas alterações na estrutura temporal, causando por vezes um desequilíbrio maior do que o encontrado na situação anterior. Este problema tem sido recorrente, e alguns agentes foram identificados como responsáveis pelo maior número de problemas encontrados. O Agente Cronal Nível 2 Sobrinho é um deles.
A presente missão tem por objetivo a garantia da eliminação do referido Agente, que deve ser realizada a qualquer custo. Dada a impossibilidade de nossos próprios Agentes serem recolhidos à Prisão, foi elaborada uma alternativa. Nossos computadores identificaram uma LT onde o Agente Sobrinho será assassinado no ano de 1998, na cidade do Rio de Janeiro.
Sua missão será acompanhá-lo até a data e local específicos e garantir que o destino do agente Sobrinho se cumpra. Lembramos o sigilo absoluto quanto ao objetivo da missão. O memorando enviado ao Agente Sobrinho contém instruções para que a missão seja apenas a de voltar até 1998 para investigar possíveis anomalias temporais de rotina. E só. Boa sorte,
Supervisora Mariete"
Macedo pôs o memorando de lado e olhou com olhar vidrado para o parceiro. Coincidentemente, Sobrinho tinha acado de ler o seu memorando também, e devolvia o mesmo olhar. Os dois permaneceram se encarando por algum tempo, imersos cada um em seus pensamentos. Sobrinho desviou primeiro o olhar. Fingiu arrumar alguns papéis, mas apenas conseguiu aumentar a bagunça sobre a mesa. O efeito da cocaína tornava ainda mais patética a tentativa. Macedo limpou a garganta e dirigiu-se ao parceiro com voz insegura, sem olhar para ele:
- Brincadeira, hein, parceiro? A velha está de sacanagem com a nossa cara. Voltar no tempo pra nada? Desde quando a gente faz ronda? - Macedo rezava para parecer natural.
- É verdade... - respondeu Sobrinho, evasivo.
Os dois agentes se calaram e conferiram o restante do conteúdo dos envelopes: carteiras de identidade, de motorista e dinheiro da época. Tudo certo. Um homem passou por eles e os cumprimentou com um gesto discreto da mão. Macedo disse:
- Lá vai O'Malley. Ele é que um cara de sorte. Trabalha sozinho e na surdina.
- Qual é, Macedo? Não gosta da minha companhia, é?
- Meu amigo, pode ser que eu me livre dela mais cedo do que você pensa...
- Engraçado: eu poderia dizer a mesma coisa, mas deixa pra lá.
Foram à sala de transporte, digitaram as datas, passaram os seus cartões nas respectivas caixas, e se foram em direção ao Rio de Janeiro de 1998.
Macedo e Sobrinho caminhavam à noite pela Avenida Atlântica. Era verão, o calçadão se apinhava de gringos, de vendedores de todas as bugingangas possíveis, prostitutas e travestis. Nenhum dos dois era muito dado à filosofia, mas não deixavam de se impressionar com o contraste entre a beleza do cenário e os estranhos personagens daquele teatro. A curva do litoral era acompanhada pelo colar das luzes emitidas do alto dos postes, sugerindo uma sensualidade feminina que aguçava a libido dos dois agentes entediados.
Quando não estava analisando a qualidade do material feminino disponível que passava por ali, Macedo pensava na missão. Não tinha a menor idéia do que aconteceria, de como Sobrinho seria assassinado. Não sabia quando, por quem ou por que motivo. Mas olhava atento para um ou outro cidadão suspeito, na esperança de que fosse um assaltante que acabasse de vez com aquela agonia. Dez meses de parceria aproximaram os dois agentes, mas Macedo suspeitava que se a missão não fosse completada ele também estaria em maus lençóis. Era uma questão de sobrevivência e ele não tinha escolha. Tinha de garantir a morte do companheiro, e apelava para sua frieza de policial adquirida em anos de experiência para não se envolver emocionalmente com o problema. Mas transparecia uma ansiedade nervosa, e se assustava à aproximação de qualquer um, aguardando para qualquer momento o acontecimento que mandaria o companheiro para os infernos. Sobrinho mantinha-se calado e de cabeça baixa.
Entraram por uma rua perpendicular, perto do Leme, e ao passarem em frente a uma boate, o sorridente porteiro abriu a porta e os convidou com uma mesura:
- Vai começar o show, cavalheiros. Podem entrar sem compromisso.
Os dois agentes se entreolharam. Sobrinho disse:
- Por que não? Vamos dar uma olhada, Macedo?
- Parceiro, foi a melhor coisa que voce já disse em dez meses. Tá esperando o quê? Entra aí, cara.
A boate era um cubículo apertado, enfumaçada como a praxe recomendava. Uma música 'disco' altíssima fornecia a trilha sonora para três moças de seios nus dançarem sobre seus pedestais, em três cantos da casa. Mesas acanhadas eram iluminadas por pequenas lâmpadas vermelhas. Completavam a iluminação três spots de luz sobre as dançarinas, deixando em penumbra os fregueses, sevidos por garçons usando lanterninhas de mão. Macedo e Sobrinho sentaram-se e pediram cada um uma bebida. Sobrinho escolheu um Campari e Macedo um conhaque. No fundo, um palco minúsculo rodeado de espelhos aguardava o show.
A música parou e foi substituída por outra, mais lenta e sensual. Vinda dos bastidores com passo de pantera, uma jovem de cabelos curtos, espetados e descoloridos, subiu languidamente ao palco. Vestia uma diminuta saia vermelha e um top negro, deixando à mostra uma serpente tatuada na barriga, cuja cauda terminava sob o piercing no umbigo. A jovem começou o seu strip-tease, tirando lentamente cada peça do vestuário até a nudez total, e mostrou-se afinal em toda a sua glória, para deleite dos dois agentes da Intempol.
O show terminou e soaram alguns aplausos esparsos. A moça recolheu do chão as peças de roupa, rodopiou a título de gran finale e retirou-se. A música 'disco' voltou, e imediatamente as três moças de seios nus retomaram o seu rebolar frenético sobre os pedestais. Sobrinho disse:
- Pelo menos a gente se diverte. Melhor do que ficar correndo atrás de malandro pelo tempo. Estou começando a gostar dessa missão...
Macedo levantou um dedo antes de responder, quando uma morena de longos cabelos negros se aproximou da mesa:
- Sozinhos? Posso me sentar um pouco?
Macedo ergueu o olhar e encontrou os olhos da morena:
- Claro, fique à vontade - respondeu, levantando-se.
Ela sentou-se entre os dois e pediu um whisky ao garçon. Escocês. Os agentes não se importaram. Dinheiro não era problema e, mesmo que fosse, a morena merecia todo o whisky que quisesse.
Ela perguntou:
- Procurando diversão, gatos? Talvez eu possa ajudar vocês. Meu nome é Jéssica.
Sobrinho apontou um polegar para o próprio peito e depois na direção do parceiro:
- Eu sou Sobrinho e ele Macedo. Você trabalha aqui, Jéssica?
- Mais ou menos. Digamos que eu preste serviços para a casa. E vocês, o que fazem?
- Nada de mais. Procuramos companhia de belas jovens, como você - respondeu Macedo. Jéssica ajeitou os cabelos negros com um movimento brusco da cabeça e sorriu, exibindo os dentes brancos e perfeitos:
- Parece que encontraram, então. Mas acho que vai faltar companhia para um de vocês. Posso arrumar, se vocês quiserem. Vai custar um pouco mais, mas eu garanto que vai valer a pena.
- Se ela for igual a você não vai haver problemas - disse Sobrinho, acariciando a perna da morena. Jéssica disse:
- É claro que se vocês tiverem alguma coisinha a mais para ajudar seria ótimo. Eu fico bem mais descontraída quando estou ligada, sabe...?
Macedo lembrou-se da cocaína no seu bolso. Talvez fosse aquela coisinha a mais que a morena buscava. Tinha quase certeza de que naquela época a cocaína era apreciada e valiosa. E também proibida. Ele disse:
- Escute, Jéssica: tenho aqui comigo essa coisinha. Você conhece algum lugar onde a gente pudesse conversar mais à vontade?
- Vamos até ao apartamento da minha amiga. Fica a duas quadras daqui.
Os agentes pagaram a conta e saíram acompanhados pela morena. Caminharam até uma esquina e, enquanto aguardavam o sinal para atravessar a avenida, um carro da polícia que estava estacionado em frente à boate se aproximou lentamente e parou em frente aos dois agentes da Intempol. Dois policiais militares saltaram da patrulha ajeitando as calças.
- Boa noite, cidadãos. Documentos, por favor - disse um dos guardas.
Macedo e Sobrinho ficaram um instante sem saber o que fazer. Entreolharam-se indecisos sobre o que responder, e então Macedo começou:
- Escute aqui...
- Cala a boca, babaca! - disse Jéssica - Coloquem as duas mãos no carro e vamos abrindo essas perninhas.
Sobrinho tentou falar:
- Mas... - Você não ouviu a moça, cara? Cala essa boca e fica quieto - disse um dos guardas. Ele voltou-se para Jéssica:
- Quem são os babacas, Sônia? Estão com algum flagrante?
Então Sobrinho entendeu tudo: a tal da Jéssica na verdade era Sônia, uma policial disfarçada de prostituta, e eles caíram direitinho na armadilha.
Puta que o pariu!, pensou. Como é que nós demos um mole desses? Dois policiais tarimbados, acostumados a lidar com malandros de todos os tempos! Mas era melhor não reagir e esperar para resolver a coisa usando o cartão cronal, quando surgisse uma oportunidade. Sônia respondeu ao guarda, indicando Macedo com a cabeça:
- O carequinha aí disse que tinha um presentinho pra mim. Vamos ver o que é. Macedo foi revistado e os policiais encontraram o sacolé de cocaína no bolso do paletó. Um dos policiais falou:
- É, meu camarada. Parece que você dançou. Aqui tem brizola suficiente pra te botar em cana por uns trinta anos... O outro guarda revistou Sobrinho e achou o cartão cronal e a caixa registradora. Mostrou os objetos para Sobrinho e perguntou:
- Que porra é essa, cara? Sobrinho empalideceu. Se acontecesse alguma coisa ao cartão ou à caixa, eles ficariam para sempre presos naquela época. Poderia tentar arrancá-los da mão do guarda, mas talvez não tivesse tempo de se transportar, e eles com certeza atirariam. Macedo arregalou os olhos em direção ao parceiro. Esperou que ele tentasse reagir e que fosse baleado. Mas Sobrinho respondeu:
- São objetos de trabalho, seu guarda. Minha identificação profissional e um aparelho especial. O guarda olhou o cartão e leu:
- "Intempol"? Nunca ouvi falar nessa porra. Que empresa é essa?
Macedo e Sobrinho não poderiam dizer que eram policiais também. Ainda mais "policiais do tempo". Os guardas jamais acreditariam, e talvez só piorasse a situação, se é que isso fosse possível. Era melhor deixar as explicações para algum superior na delegacia. Macedo disse:
- É difícil de explicar. Nós queremos falar com o seu superior. Macedo ganhou uma porrada na cabeça.
- Filho da puta! Tá pensando o quê? O superior aqui sou eu, babaca! Vocês estão fodidos! Vamos em cana! - gritou um dos guardas.
Macedo e Sobrinho foram algemados e entraram na patrulha. Os dois guardas se despediram de Sônia, que foi embora para continuar o seu trabalho. No caminho para a delegacia, os dois agentes não se falaram. Cada um pensava num modo de se livrar da situação. Sobrinho achava que talvez tivessem uma chance de usar o cartão cronal na delegacia. Poderiam pedir ao delegado para mostrar como funcionava o aparelho e sumiriam no tempo, nas barbas de todo mundo. Seria até divertido. Macedo pensava que tudo aquilo favoreceria a missão. O resultado daquela confusão talvez fosse o fim de Sobrinho, como previsto pela Intempol. Acalmou-se e resolveu aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
A 12ª Delegacia ficava numa casa velha e mal-cuidada. O delegado titular de plantão, o doutor Raggio, olhava para os objetos pessoais dos agentes da Intempol espalhados sobre a mesa. Ele disse:
- Muito bem. Qual dos palhaços estava com o flagrante?
Um dos guardas respondeu, empurrando Macedo:
- Esse careca aqui. O outro estava limpo.
O delegado voltou-se para Sobrinho:
- Voce está liberado. O outro vai puxar uma etapa por aqui. Antes, eu quero que vocês me expliquem que porra é essa - o delegado apontou para os cartões cronais e para as caixas.
Era agora ou nunca. Macedo foi mais rápido. Já que Sobrinho estava limpo e não seria preso, ele tinha de escapar de qualquer maneira. Conteve o parceiro com o braço e se adiantou até a mesa.
- Pode deixar que eu mostro, doutor. É apenas um aparelho novo que estamos testando. Serve para fazer compras debitando o dinheiro direto da conta do usuário, usando esse cartão. Macedo pegou o seu cartão e a caixa. Continuou:
- A gente digita aqui o valor, o código do produto, passa o cartão nessa fenda e... Sobrinho gritou:
- Espere aí, Macedo!
Macedo fechou os olhos e preparou-se para apertar o botão que o faria sumir dali. Armou uma pose teatral para uma saída em grande estilo e apertou o botão.
Abriu os olhos e teve um choque. Lá estava o doutor Raggio, de braços cruzados, olhando fixamente para ele. Desesperado, Macedo apertou outra e mais uma vez o botão, com o mesmo resultado. Enquanto Macedo martelava o botão alucinado, com o rosto transfigurado, o delegado disse:
- E então? Só isso? Muito bem. Podem recolher o elemento!
Macedo quase desmaiou. O que teria acontecido? Seu cartão não funcionava! Alguma coisa estava acontecendo e ele não sabia o que era. Talvez fosse parte da missão, e ele se agarrava a essa esperança. Sentiu-se desamparado. Em todas as missões, o cartão era sempre uma segurança, era sempre uma forma de escapar de qualquer perigo, e agora ele estava à mercê da linha normal de tempo, como todo mundo.
Sobrinho olhava tudo assustado, mas calado. Esperava que recuperasse o seu cartão quando fosse liberado e então testaria o seu funcionamento. Mas desconfiava que aquela não seria mesmo uma missão como todas as outras. Ainda assim, achava que tudo poderia estar correndo bem, que o caso não influenciaria o desfecho da missão descrita no seu memorando. Não fazia idéia do que tinha acontecido com o cartão de Macedo, mas se aquilo servisse para que a missão fosse cumprida, não via nenhum problema imediato.
Os dois agentes prestaram depoimento. Macedo foi fichado e arrastado à cela. Devolveram a Sobrinho os seus pertences e o liberaram. Sobrinho procurou um local discreto e parou para testar o seu cartão. Com as mãos trêmulas, digitou alguma data a êsmo e passou o cartão. Fechou os olhos com força, prendeu a respiração e apertou o botão.
Nada. Não se movera nem um segundo no tempo. Ele sentou-se na calçada e tentou pensar.
Em sua cela, Macedo também tentava pensar. Imaginava que não haveria problemas com o cartão de Sobrinho, e para escapar dali era preciso usar aquele cartão.
É claro! Tudo armado pela Intempol para garantir que Sobrinho fosse eliminado, sem o que Macedo ficaria preso para sempre no século vinte. Macedo tinha de eliminar Sobrinho pessoalmente para escapar, e achava que seu cartão não funcionaria enquanto Sobrinho estivesse vivo. A Intempol deve ter usado esse artifício para garantir o sucesso da missão. Mas havia dois problemas: o primeiro, como fugir da cadeia; e o segundo, bem pior: se não houvesse problemas com o cartão de Sobrinho, provavelmente ele já estaria longe dali. Mas poderia ser que ele voltasse para libertá-lo, o que seria a atitude mais correta para um agente responsável. E Sobrinho nada sabia sobre aquela história de ser assassinado naquela época.
Macedo encolheu-se num canto da cela e baixou a cabeça, desesperado. A única saída era acusar Sobrinho como cúmplice, e fazer com que ele fosse preso também. Então, acabaria pessoalmente com ele.
Sentado no meio-fio, Sobrinho tirou do bolso do paletó o memorando da supervisora Mariete com a sua missão e conferiu mais uma vez o conteúdo. Sim, lá estava escrito que Macedo seria assassinado e que ele deveria garantir que o destino se cumprisse. O memorando era exatamente igual ao de Macedo, somente as vítimas eram diferentes, mas nenhum dos dois jamais saberia disso. Macedo estava preso, e talvez fosse morto na prisão. Mas como Sobrinho voltaria? Tinha de eliminar pessoalmente Macedo para que o cartão funcionasse. Era a única esperança. Resolveu voltar à delegacia para tentar matar Macedo de algum modo e cumprir a missão.
Sobrinho foi autuado imediatamente. Macedo dissera ao delegado que a cocaína pertencia ao parceiro, e que ele era um traficante procurado e perigoso.
Os dois agentes pegaram trinta anos de cadeia, e no terceiro mês encarcerados mataram-se numa luta de estoques, encorajados pelos companheiros de cela.
Em seu gabinete, a supervisora Mariete conferia no monitor as condições daquela LT. Perfeito. Tudo funcionara às mil maravilhas. Macedo e Sobrinho nunca voltariam a ser agentes da Intempol, tinham se matado em 1998, numa briga feroz na penitenciária. Seus cartões e registros nos computadores da Intempol estavam inutilizados e jamais funcionariam outra vez.
Ela riscou mais um dia na folhinha e se preparou para ir para casa. Aquele dia tinha sido produtivo, ela estava cansada, mas satisfeita. Surpreendeu-se consigo mesma, rindo daqueles seus dois agentes que, mal ou bem, tinham completado a missão com sucesso.
Ajeitou o coque e os óculos, retocou a maquiagem e trancou a porta de seu gabinete. Enquanto descia pelo elevador, lembrou-se nostálgica de alguns livrinhos policiais que lera na juventude e que tinham despertado a sua vocação. Vaidosa, pensou que tivesse enfim cometido o crime perfeito...
Não que ela fosse um exemplo de competência. Também saía às vezes da linha, como no dia em que aceitou um convite para jantar com... Mas isso já é uma outra história, e ela abanava a cabeça como para apagar da memória a lembrança. E só quem sabia dos detalhes do caso eram aqueles dois idiotas do outro lado da mesa. Reuniu toda a indignação suficiente para poder passar uma descompostura eficaz nos dois subordinados e mandar-lhes para a próxima missão. Ergueu a régua no ar e golpeou-a com força sobre a mesa:
- Parem com isso!
O estalo da régua sobre a madeira despertou os dois agentes, que num sobressalto recompuseram-se e se aprumaram nas cadeiras. A supervisora Mariete disse:
- Jogue esta porcaria fora, Macedo. Isso me dá nos nervos.
Macedo levou dois dedos à boca, tirou o chiclete e ameaçou aplicá-lo sob a mesa. Sobrinho olhou para o companheiro e abanou discretamente a cabeça em negativo. Por alguns instantes Macedo ficou indeciso, com o chiclete na mão, até que a supervisora apontou para a lixeira.
- Ali, Macedo - ela disse, levando uma das mãos à testa, enquanto apontava a lixeira com a outra. Ele depositou o chiclete no lixo e voltou à cadeira. A supervisora se levantou e começou a falar:
- Eu devia esfolar vocês. Prendê-los não adiantaria, já que ainda assim não me livraria dos dois. Continuariam no mesmo lugar onde trabalham e que, infelizmente, é onde eu também trabalho. Por isso, só posso mandá-los para o inferno e é exatamente o que eu vou fazer. Vocês são, provavelmente, os piores agentes que já passaram por aqui, e estão por um fio. Mas vou lhes dar mais uma chance para não ganharem um bilhete azul. Ou então para desaparecerem por completo, o que não seria nada mau.
Macedo e Sobrinho se entreolharam enquanto a supervisora se aproximava por trás das cadeiras onde estavam sentados. Ela pôs a régua debaixo de um dos braços e colocou as mãos sobre o ombro de cada um dos agentes. Continuou:
- Mas dessa vez não vou admitir falhas, não vou tolerar nehum descuido! Aliás, se falharem, não sou eu quem vai puni-los. A supervisora deu um sorrisinho sádico. Macedo limpou um perdigoto da calva, lançado pela veemência da supervisora ao articular puni-los. Ela ajeitou o coque atrás da cabeça e apontou com a régua dois envelopes pardos sobre a mesa.
- Aí estão as instruções. Leiam com cuidado, não se precipitem. O caso até que não é complicado, mas em se tratando de dois idiotas como vocês tudo é possível. Agora sumam daqui.
Os dois agentes nível 2 da Intempol recolheram da mesa os seus respectivos envelopes, levantaram-se e saíram da sala. A supervisora Mariete sentou-se em sua cadeira e olhou com desalento para a folhinha: ainda faltavam quatro meses para as suas férias. Que ironia! Ela era supervisora da Intempol, a respeitável instituição responsável pela ordem no tempo.
Teoricamente dispunha de todo o tempo do mundo, mas era escrava da enervante e arrastada seqüência normal de quatro longos meses, até o doce descanso no lugar e tempo que quisesse. Escolher o local onde passar as férias e o período histórico que desejasse era um dos poucos privilégios de trabalhar para a Intempol que a supervisora considerava. Às vezes pensava como seria bom trabalhar, por exemplo, como bibliotecária numa obscura cidadezinha do interior, ou algo assim. Alguma coisa bem prosaica a simples, sem a pressão dos ponteiros dos relógios, sem o labirinto dos dias, meses, anos e séculos nas folhinhas sufocando na cabeça. E, principalmente, sem ter de aturar as chantagens de certos agentes... Levantou os óculos para a testa e apertou os olhos com os dedos. Estava cansada, muito cansada.
No corredor, Sobrinho comentou com Macedo:
- A velha está cada vez pior. Vive nos chamando de imbecis, mas esquece das besteiras que faz. Um dia, ainda perco a cabeça e dou com a língua nos dentes...
- Deixa de coisa, Sobrinho. Ela faz bobagem também, mas resolve. E ainda tem que resolver as nossas. Vamos até o banheiro. Quero te mostrar uma coisa.
- Tá me estranhando, parceiro?
- Cala a boca e entra aí. Macedo abriu a porta do banheiro e empurrou o parceiro para dentro. Tirou do bolso um pacotinho de plástico transparente contendo um pó branco.
- Sabe o que é isso? - perguntou Macedo, sacudindo com dois dedos o pacotinho. Ele mesmo respondeu:
- Cocaína. Lembra daquele cara que a gente prendeu semana passada, contrabandeando tudo quanto é porcaria pelo tempo? Ele tentou me subornar com ela. Disse que valeria uma grana alta.
- Sim, eu sei, mas só em determinadas épocas, quando era proibida. Aqui não vale nada.
- Foi o que eu disse pro cara, antes de botá-lo em cana. Mas acontece que eu nunca experimentei, dizem que dá uma sensação incrível para quem cheira. Você se sente mais seguro, mais confiante, fica com a atitude ideal para um policial. O cara me ensinou como se faz. E aí? Vai nessa?
- Por que não? Não pode fazer mais mal do que a comida daqui. E olha que o que ela faz é justamente o contrário: dá desânimo e enjôo, quando não diarréia - e Sobrinho olhou pensativo para as latrinas. Macedo pegou da pasta um pratinho que apanhara na cantina, acendeu o Zippo e com ele aqueceu a sua superfície. Espalhou com cuidado um pouco do pó sobre o prato.
- O calor tira a umidade, e faz o pó ficar mais solto - explicou - Me empresta o teu cartão cronal.
Sobrinho tirou do bolso o cartão e passou-o ao colega, meio desconfiado. Reclamou:
- Olha lá, rapaz, o que voce vai fazer com o meu cartão? Sabe como é a burocracia para a segunda via...
- Calma, Sobrinho. Ele começou a separar o montinho de pó com o cartão, em duas carreiras estreitas e paralelas, de mais ou menos sete centímetros de comprimento. O cartão de plástico, usado da mesma forma que uma faca picando salsa, fazia um ruído de código morse enquanto delineava na superfície do prato as duas tiras de pó. A operação foi meticulosa, e Macedo cuidava para que as carreiras fossem as mais finas e regulares possível. Depois de se dar por satisfeito com a forma das paralelas brancas de pó sobre o prato, devolveu o cartão a Sobrinho, tirou da carteira uma nota de dez e enrolou-a em canudo, como lhe havia dito para fazer o homem que tentara suborná-lo. Sobrinho acompanhava a operação enquanto acendia um cigarro. Ele perguntou:
- E agora?
- Agora a gente cheira essas carreiras, aspirando bem fundo - respondeu Macedo. Curvou-se sobre a pia onde estava apoiado o prato, enfiou uma das extremidades da nota em canudo em uma das narinas, ao mesmo tempo que fechava a outra com um indicador, e aspirou toda a carreira da esquerda para os pulmões. Sentiu uma ligeira ardência por dentro enquanto o pó passava pela narina, atravessava a traquéia e se infiltrava nos brônquios, até que se alojasse nos pulmões, de onde se espalharia pela corrente sangüínea e alcançaria o cérebro, transformando Macedo no super-policial que ele imaginava o pó ser capaz de criar. Fungou algumas vezes e estendeu a nota enrolada para o companheiro:
- Sua vez agora, parceiro. Sobrinho repetiu a operação. Macedo passou um dedo pelo prato recolhendo os resquícios do pó e passou-o nas gengivas. O outro perguntou:
- Pra quê isso, cara?
- Sei lá. Mas o cara disse que é assim que se faz. Vamos nessa. Percorrendo o branco corredor de paredes nuas do terceiro andar da Intempol até o elevador, entre solenes meneios de cabeça em cumprimento a esse ou aquele agente, Macedo e Sobrinho sentiam crescer a sensação de euforia e excitação que a droga lhes trazia. Sobrinho comentou:
- Não estou sentindo nada, cara. Acho que aquele babaca te enganou. Quer dizer, babaca é você, que caiu nessa. Você é um otário, mesmo, e eu não sei onde eu tenho a cabeça que vou sempre na sua.... Ei, lembra daquela gata do almoxarifado? Ela me deu maior mole, ontem. Acho que vou dar um papo nela. Cara, estou com uma sede. Por que a gente não vai ao bar? Pô, essa cocaína não faz efeito nenhum...
- Cala essa boca, Sobrinho. Parece um papagaio. Sobrinho intercalava cada frase curta com uma fungada e um sacolejar de ombros. O elevador chegou, e os dois agentes desceram ao segundo andar, para o grande salão onde cada agente tinha a sua escrivaninha própria. Cada um buscou a sua e abriram os envelopes contendo a próxima
Enquanto Macedo lia o conteúdo, seu queixo ia desabando. O memorando dizia:
"De: Supervisora Mariete Para: Agente Macedo Assunto: Missão 325/LCG
De acordo com dados apurados em nosso Nível 5, a atuação de alguns agentes da Instituição, ao invés de atender o objetivo de manter a ordem no CET, tem provocado significativas e perigosas alterações na estrutura temporal, causando por vezes um desequilíbrio maior do que o encontrado na situação anterior. Este problema tem sido recorrente, e alguns agentes foram identificados como responsáveis pelo maior número de problemas encontrados. O Agente Cronal Nível 2 Sobrinho é um deles.
A presente missão tem por objetivo a garantia da eliminação do referido Agente, que deve ser realizada a qualquer custo. Dada a impossibilidade de nossos próprios Agentes serem recolhidos à Prisão, foi elaborada uma alternativa. Nossos computadores identificaram uma LT onde o Agente Sobrinho será assassinado no ano de 1998, na cidade do Rio de Janeiro.
Sua missão será acompanhá-lo até a data e local específicos e garantir que o destino do agente Sobrinho se cumpra. Lembramos o sigilo absoluto quanto ao objetivo da missão. O memorando enviado ao Agente Sobrinho contém instruções para que a missão seja apenas a de voltar até 1998 para investigar possíveis anomalias temporais de rotina. E só. Boa sorte,
Supervisora Mariete"
Macedo pôs o memorando de lado e olhou com olhar vidrado para o parceiro. Coincidentemente, Sobrinho tinha acado de ler o seu memorando também, e devolvia o mesmo olhar. Os dois permaneceram se encarando por algum tempo, imersos cada um em seus pensamentos. Sobrinho desviou primeiro o olhar. Fingiu arrumar alguns papéis, mas apenas conseguiu aumentar a bagunça sobre a mesa. O efeito da cocaína tornava ainda mais patética a tentativa. Macedo limpou a garganta e dirigiu-se ao parceiro com voz insegura, sem olhar para ele:
- Brincadeira, hein, parceiro? A velha está de sacanagem com a nossa cara. Voltar no tempo pra nada? Desde quando a gente faz ronda? - Macedo rezava para parecer natural.
- É verdade... - respondeu Sobrinho, evasivo.
Os dois agentes se calaram e conferiram o restante do conteúdo dos envelopes: carteiras de identidade, de motorista e dinheiro da época. Tudo certo. Um homem passou por eles e os cumprimentou com um gesto discreto da mão. Macedo disse:
- Lá vai O'Malley. Ele é que um cara de sorte. Trabalha sozinho e na surdina.
- Qual é, Macedo? Não gosta da minha companhia, é?
- Meu amigo, pode ser que eu me livre dela mais cedo do que você pensa...
- Engraçado: eu poderia dizer a mesma coisa, mas deixa pra lá.
Foram à sala de transporte, digitaram as datas, passaram os seus cartões nas respectivas caixas, e se foram em direção ao Rio de Janeiro de 1998.
Macedo e Sobrinho caminhavam à noite pela Avenida Atlântica. Era verão, o calçadão se apinhava de gringos, de vendedores de todas as bugingangas possíveis, prostitutas e travestis. Nenhum dos dois era muito dado à filosofia, mas não deixavam de se impressionar com o contraste entre a beleza do cenário e os estranhos personagens daquele teatro. A curva do litoral era acompanhada pelo colar das luzes emitidas do alto dos postes, sugerindo uma sensualidade feminina que aguçava a libido dos dois agentes entediados.
Quando não estava analisando a qualidade do material feminino disponível que passava por ali, Macedo pensava na missão. Não tinha a menor idéia do que aconteceria, de como Sobrinho seria assassinado. Não sabia quando, por quem ou por que motivo. Mas olhava atento para um ou outro cidadão suspeito, na esperança de que fosse um assaltante que acabasse de vez com aquela agonia. Dez meses de parceria aproximaram os dois agentes, mas Macedo suspeitava que se a missão não fosse completada ele também estaria em maus lençóis. Era uma questão de sobrevivência e ele não tinha escolha. Tinha de garantir a morte do companheiro, e apelava para sua frieza de policial adquirida em anos de experiência para não se envolver emocionalmente com o problema. Mas transparecia uma ansiedade nervosa, e se assustava à aproximação de qualquer um, aguardando para qualquer momento o acontecimento que mandaria o companheiro para os infernos. Sobrinho mantinha-se calado e de cabeça baixa.
Entraram por uma rua perpendicular, perto do Leme, e ao passarem em frente a uma boate, o sorridente porteiro abriu a porta e os convidou com uma mesura:
- Vai começar o show, cavalheiros. Podem entrar sem compromisso.
Os dois agentes se entreolharam. Sobrinho disse:
- Por que não? Vamos dar uma olhada, Macedo?
- Parceiro, foi a melhor coisa que voce já disse em dez meses. Tá esperando o quê? Entra aí, cara.
A boate era um cubículo apertado, enfumaçada como a praxe recomendava. Uma música 'disco' altíssima fornecia a trilha sonora para três moças de seios nus dançarem sobre seus pedestais, em três cantos da casa. Mesas acanhadas eram iluminadas por pequenas lâmpadas vermelhas. Completavam a iluminação três spots de luz sobre as dançarinas, deixando em penumbra os fregueses, sevidos por garçons usando lanterninhas de mão. Macedo e Sobrinho sentaram-se e pediram cada um uma bebida. Sobrinho escolheu um Campari e Macedo um conhaque. No fundo, um palco minúsculo rodeado de espelhos aguardava o show.
A música parou e foi substituída por outra, mais lenta e sensual. Vinda dos bastidores com passo de pantera, uma jovem de cabelos curtos, espetados e descoloridos, subiu languidamente ao palco. Vestia uma diminuta saia vermelha e um top negro, deixando à mostra uma serpente tatuada na barriga, cuja cauda terminava sob o piercing no umbigo. A jovem começou o seu strip-tease, tirando lentamente cada peça do vestuário até a nudez total, e mostrou-se afinal em toda a sua glória, para deleite dos dois agentes da Intempol.
O show terminou e soaram alguns aplausos esparsos. A moça recolheu do chão as peças de roupa, rodopiou a título de gran finale e retirou-se. A música 'disco' voltou, e imediatamente as três moças de seios nus retomaram o seu rebolar frenético sobre os pedestais. Sobrinho disse:
- Pelo menos a gente se diverte. Melhor do que ficar correndo atrás de malandro pelo tempo. Estou começando a gostar dessa missão...
Macedo levantou um dedo antes de responder, quando uma morena de longos cabelos negros se aproximou da mesa:
- Sozinhos? Posso me sentar um pouco?
Macedo ergueu o olhar e encontrou os olhos da morena:
- Claro, fique à vontade - respondeu, levantando-se.
Ela sentou-se entre os dois e pediu um whisky ao garçon. Escocês. Os agentes não se importaram. Dinheiro não era problema e, mesmo que fosse, a morena merecia todo o whisky que quisesse.
Ela perguntou:
- Procurando diversão, gatos? Talvez eu possa ajudar vocês. Meu nome é Jéssica.
Sobrinho apontou um polegar para o próprio peito e depois na direção do parceiro:
- Eu sou Sobrinho e ele Macedo. Você trabalha aqui, Jéssica?
- Mais ou menos. Digamos que eu preste serviços para a casa. E vocês, o que fazem?
- Nada de mais. Procuramos companhia de belas jovens, como você - respondeu Macedo. Jéssica ajeitou os cabelos negros com um movimento brusco da cabeça e sorriu, exibindo os dentes brancos e perfeitos:
- Parece que encontraram, então. Mas acho que vai faltar companhia para um de vocês. Posso arrumar, se vocês quiserem. Vai custar um pouco mais, mas eu garanto que vai valer a pena.
- Se ela for igual a você não vai haver problemas - disse Sobrinho, acariciando a perna da morena. Jéssica disse:
- É claro que se vocês tiverem alguma coisinha a mais para ajudar seria ótimo. Eu fico bem mais descontraída quando estou ligada, sabe...?
Macedo lembrou-se da cocaína no seu bolso. Talvez fosse aquela coisinha a mais que a morena buscava. Tinha quase certeza de que naquela época a cocaína era apreciada e valiosa. E também proibida. Ele disse:
- Escute, Jéssica: tenho aqui comigo essa coisinha. Você conhece algum lugar onde a gente pudesse conversar mais à vontade?
- Vamos até ao apartamento da minha amiga. Fica a duas quadras daqui.
Os agentes pagaram a conta e saíram acompanhados pela morena. Caminharam até uma esquina e, enquanto aguardavam o sinal para atravessar a avenida, um carro da polícia que estava estacionado em frente à boate se aproximou lentamente e parou em frente aos dois agentes da Intempol. Dois policiais militares saltaram da patrulha ajeitando as calças.
- Boa noite, cidadãos. Documentos, por favor - disse um dos guardas.
Macedo e Sobrinho ficaram um instante sem saber o que fazer. Entreolharam-se indecisos sobre o que responder, e então Macedo começou:
- Escute aqui...
- Cala a boca, babaca! - disse Jéssica - Coloquem as duas mãos no carro e vamos abrindo essas perninhas.
Sobrinho tentou falar:
- Mas... - Você não ouviu a moça, cara? Cala essa boca e fica quieto - disse um dos guardas. Ele voltou-se para Jéssica:
- Quem são os babacas, Sônia? Estão com algum flagrante?
Então Sobrinho entendeu tudo: a tal da Jéssica na verdade era Sônia, uma policial disfarçada de prostituta, e eles caíram direitinho na armadilha.
Puta que o pariu!, pensou. Como é que nós demos um mole desses? Dois policiais tarimbados, acostumados a lidar com malandros de todos os tempos! Mas era melhor não reagir e esperar para resolver a coisa usando o cartão cronal, quando surgisse uma oportunidade. Sônia respondeu ao guarda, indicando Macedo com a cabeça:
- O carequinha aí disse que tinha um presentinho pra mim. Vamos ver o que é. Macedo foi revistado e os policiais encontraram o sacolé de cocaína no bolso do paletó. Um dos policiais falou:
- É, meu camarada. Parece que você dançou. Aqui tem brizola suficiente pra te botar em cana por uns trinta anos... O outro guarda revistou Sobrinho e achou o cartão cronal e a caixa registradora. Mostrou os objetos para Sobrinho e perguntou:
- Que porra é essa, cara? Sobrinho empalideceu. Se acontecesse alguma coisa ao cartão ou à caixa, eles ficariam para sempre presos naquela época. Poderia tentar arrancá-los da mão do guarda, mas talvez não tivesse tempo de se transportar, e eles com certeza atirariam. Macedo arregalou os olhos em direção ao parceiro. Esperou que ele tentasse reagir e que fosse baleado. Mas Sobrinho respondeu:
- São objetos de trabalho, seu guarda. Minha identificação profissional e um aparelho especial. O guarda olhou o cartão e leu:
- "Intempol"? Nunca ouvi falar nessa porra. Que empresa é essa?
Macedo e Sobrinho não poderiam dizer que eram policiais também. Ainda mais "policiais do tempo". Os guardas jamais acreditariam, e talvez só piorasse a situação, se é que isso fosse possível. Era melhor deixar as explicações para algum superior na delegacia. Macedo disse:
- É difícil de explicar. Nós queremos falar com o seu superior. Macedo ganhou uma porrada na cabeça.
- Filho da puta! Tá pensando o quê? O superior aqui sou eu, babaca! Vocês estão fodidos! Vamos em cana! - gritou um dos guardas.
Macedo e Sobrinho foram algemados e entraram na patrulha. Os dois guardas se despediram de Sônia, que foi embora para continuar o seu trabalho. No caminho para a delegacia, os dois agentes não se falaram. Cada um pensava num modo de se livrar da situação. Sobrinho achava que talvez tivessem uma chance de usar o cartão cronal na delegacia. Poderiam pedir ao delegado para mostrar como funcionava o aparelho e sumiriam no tempo, nas barbas de todo mundo. Seria até divertido. Macedo pensava que tudo aquilo favoreceria a missão. O resultado daquela confusão talvez fosse o fim de Sobrinho, como previsto pela Intempol. Acalmou-se e resolveu aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
A 12ª Delegacia ficava numa casa velha e mal-cuidada. O delegado titular de plantão, o doutor Raggio, olhava para os objetos pessoais dos agentes da Intempol espalhados sobre a mesa. Ele disse:
- Muito bem. Qual dos palhaços estava com o flagrante?
Um dos guardas respondeu, empurrando Macedo:
- Esse careca aqui. O outro estava limpo.
O delegado voltou-se para Sobrinho:
- Voce está liberado. O outro vai puxar uma etapa por aqui. Antes, eu quero que vocês me expliquem que porra é essa - o delegado apontou para os cartões cronais e para as caixas.
Era agora ou nunca. Macedo foi mais rápido. Já que Sobrinho estava limpo e não seria preso, ele tinha de escapar de qualquer maneira. Conteve o parceiro com o braço e se adiantou até a mesa.
- Pode deixar que eu mostro, doutor. É apenas um aparelho novo que estamos testando. Serve para fazer compras debitando o dinheiro direto da conta do usuário, usando esse cartão. Macedo pegou o seu cartão e a caixa. Continuou:
- A gente digita aqui o valor, o código do produto, passa o cartão nessa fenda e... Sobrinho gritou:
- Espere aí, Macedo!
Macedo fechou os olhos e preparou-se para apertar o botão que o faria sumir dali. Armou uma pose teatral para uma saída em grande estilo e apertou o botão.
Abriu os olhos e teve um choque. Lá estava o doutor Raggio, de braços cruzados, olhando fixamente para ele. Desesperado, Macedo apertou outra e mais uma vez o botão, com o mesmo resultado. Enquanto Macedo martelava o botão alucinado, com o rosto transfigurado, o delegado disse:
- E então? Só isso? Muito bem. Podem recolher o elemento!
Macedo quase desmaiou. O que teria acontecido? Seu cartão não funcionava! Alguma coisa estava acontecendo e ele não sabia o que era. Talvez fosse parte da missão, e ele se agarrava a essa esperança. Sentiu-se desamparado. Em todas as missões, o cartão era sempre uma segurança, era sempre uma forma de escapar de qualquer perigo, e agora ele estava à mercê da linha normal de tempo, como todo mundo.
Sobrinho olhava tudo assustado, mas calado. Esperava que recuperasse o seu cartão quando fosse liberado e então testaria o seu funcionamento. Mas desconfiava que aquela não seria mesmo uma missão como todas as outras. Ainda assim, achava que tudo poderia estar correndo bem, que o caso não influenciaria o desfecho da missão descrita no seu memorando. Não fazia idéia do que tinha acontecido com o cartão de Macedo, mas se aquilo servisse para que a missão fosse cumprida, não via nenhum problema imediato.
Os dois agentes prestaram depoimento. Macedo foi fichado e arrastado à cela. Devolveram a Sobrinho os seus pertences e o liberaram. Sobrinho procurou um local discreto e parou para testar o seu cartão. Com as mãos trêmulas, digitou alguma data a êsmo e passou o cartão. Fechou os olhos com força, prendeu a respiração e apertou o botão.
Nada. Não se movera nem um segundo no tempo. Ele sentou-se na calçada e tentou pensar.
Em sua cela, Macedo também tentava pensar. Imaginava que não haveria problemas com o cartão de Sobrinho, e para escapar dali era preciso usar aquele cartão.
É claro! Tudo armado pela Intempol para garantir que Sobrinho fosse eliminado, sem o que Macedo ficaria preso para sempre no século vinte. Macedo tinha de eliminar Sobrinho pessoalmente para escapar, e achava que seu cartão não funcionaria enquanto Sobrinho estivesse vivo. A Intempol deve ter usado esse artifício para garantir o sucesso da missão. Mas havia dois problemas: o primeiro, como fugir da cadeia; e o segundo, bem pior: se não houvesse problemas com o cartão de Sobrinho, provavelmente ele já estaria longe dali. Mas poderia ser que ele voltasse para libertá-lo, o que seria a atitude mais correta para um agente responsável. E Sobrinho nada sabia sobre aquela história de ser assassinado naquela época.
Macedo encolheu-se num canto da cela e baixou a cabeça, desesperado. A única saída era acusar Sobrinho como cúmplice, e fazer com que ele fosse preso também. Então, acabaria pessoalmente com ele.
Sentado no meio-fio, Sobrinho tirou do bolso do paletó o memorando da supervisora Mariete com a sua missão e conferiu mais uma vez o conteúdo. Sim, lá estava escrito que Macedo seria assassinado e que ele deveria garantir que o destino se cumprisse. O memorando era exatamente igual ao de Macedo, somente as vítimas eram diferentes, mas nenhum dos dois jamais saberia disso. Macedo estava preso, e talvez fosse morto na prisão. Mas como Sobrinho voltaria? Tinha de eliminar pessoalmente Macedo para que o cartão funcionasse. Era a única esperança. Resolveu voltar à delegacia para tentar matar Macedo de algum modo e cumprir a missão.
Sobrinho foi autuado imediatamente. Macedo dissera ao delegado que a cocaína pertencia ao parceiro, e que ele era um traficante procurado e perigoso.
Os dois agentes pegaram trinta anos de cadeia, e no terceiro mês encarcerados mataram-se numa luta de estoques, encorajados pelos companheiros de cela.
Em seu gabinete, a supervisora Mariete conferia no monitor as condições daquela LT. Perfeito. Tudo funcionara às mil maravilhas. Macedo e Sobrinho nunca voltariam a ser agentes da Intempol, tinham se matado em 1998, numa briga feroz na penitenciária. Seus cartões e registros nos computadores da Intempol estavam inutilizados e jamais funcionariam outra vez.
Ela riscou mais um dia na folhinha e se preparou para ir para casa. Aquele dia tinha sido produtivo, ela estava cansada, mas satisfeita. Surpreendeu-se consigo mesma, rindo daqueles seus dois agentes que, mal ou bem, tinham completado a missão com sucesso.
Ajeitou o coque e os óculos, retocou a maquiagem e trancou a porta de seu gabinete. Enquanto descia pelo elevador, lembrou-se nostálgica de alguns livrinhos policiais que lera na juventude e que tinham despertado a sua vocação. Vaidosa, pensou que tivesse enfim cometido o crime perfeito...
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