quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A Ampulheta Como Um Buraco de Fechadura: resenha de Carlos Orsi


A Revanche da Ampulheta, de Fábio Fernandes, novela publicada em 2001 sob a forma de livro pela coleção Terra Incognita da editora Ano-Luz é, até o momento, a mais longa peça de ficção "stand alone" do universo da Intempol, e a segunda publicação oficial da franquia. O livro foi lançado quase um ano após a coletânea de contos original, organizada por Octavio Aragão em 2000.

Esse pioneirismo, somado ao fato de que Fábio é, ao lado de Octavio, um dos principais demiurgos da mitopoese intempoliana, impõe à Revanche um desafio duplo: apresentar o Novo Universo2 a quem não tivesse ainda lido a antologia - onde, bem ou mal, cada conto é contextualizado pelos demais - e, ao mesmo tempo, oferecer um novo biscoito fino a quem já fosse "de casa". Tudo isso, claro, sem desnortear os primeiros e nem dar no saco dos segundos.

E a coisa dá certo? Ora, mas é claro que dá. A principal crítica que já ouvi à Revanche é que se trata de um trabalho espremido, uma novela que deveria ter sido um romance. Bem, certamente há um bom romance escondido ali, esperando para germinar, mas dizer isso não é dizer nada contra a novela: da forma como está, ela transporta um certo senso de urgência - de codificação compacta - que só faz aumentar a tensão da leitura.

A introdução de Lúcio Manfredi já alerta o leitor para o turbilhão de referências e piadinhas de segundo, terceiro e quarto grau embutidas no texto, mas não cita o caráter altamente idiossincrático ligado a cada uma dessas charadas: para "captar" in totum o que se diz nas entrelinhas de A Revanche é preciso que o leitor seja, primeiro, um consumidor habituado à ficção científica e, segundo, alguém familiarizado com o vocabulário específico e as in-jokes do gênero; terceiro, que conheça o trabalho de HP Lovecraft, dos poetas simbolistas franceses, dos beatniks americanos; quarto, que esteja familiarizado com a história da evolução dos movimentos de esquerda a partir do final do século XIX.

Ou seja, para realmente entender o livro de Fábio Fernandes é preciso, antes, ter a cabeça de Fábio Fernandes. Como é provável que o autor, terráqueo, não esteja disposto a abrir mão da sua, como às vezes fazem de bom grado os selenitas, parece que o leitor está condenado a ver navios.

Ou não?

A bem da verdade, não. Sempre fui muito desconfiado de obras multirreferenciais. Em muitos casos, parece-me que a profusão de remissões externas só está lá para esconder o vácuo interno da obra, mas não é o caso da nossa amiga Ampulheta. A leve sátira política está lá para quem quiser (ou puder) decodificá-la, assim como a sátira carinhosa à assim chamada Era de Ouro da ficção científica americana. O leitor se diverte ao captar qualquer uma delas; se captar ambas, diverte-se um pouco mais. Também há o drama existencial da alma criativa confrontada pelo Poder, a espreitar pelas frestas do texto.

E se o leitor não captar nada disso?

Bolas, aí se diverte, também.

Porque A Revanche da Ampulheta se sustenta muito bem sobre as próprias pernas, obrigado. Temos personagens, conflito, crises, problemas e soluções. Aí não se trata da erudição como muleta (o tal name-dropping das listas de discussão internéticas), mas da erudição posta a bom uso: há a aventura, a primeira piada, a segunda piada e o contexto "secreto". É perfeitamente possível curtir a aventura sem penetrar nos outros níveis, digamos, inciáticos do texto, muito embora o autor seja generoso o suficiente para dar algumas pistas aqui e ali.

O recurso constante de Fábio aos comentários às vezes elucidativos, às vezes safados, via notas de rodapé, é parte dessa estratégia - lembra um pouco o Millôr Fernandes das Fábulas Fabulosas. O autor realmente só estraga uma piada entre todas, a meu ver, a do Buk Rogers, ao ceder à tentação de ser gentil e explicá-la ao leitor. Logo quando a gente está se achando esperta, o autor vem e entrega a rapadura... Mas, ei, é uma em um milhão!

A caçada, rápida, compacta, em cinco dimensões comprimidas na página, certamente vale a pena.


1 Nenhuma resenha séria sobrevive sem prefixos gregos, bolas!

2 Por falar nisso, alguém aí se lembra do Novo Universo Marvel? Estigma, A Marca da Estrela, e Justice? Eram os dois únicos personagens que prestavam...

3 Sem duplo sentido.

4 Isso se refere ao grau de recursividade da piada - se ela funciona do jeito como está no papel (primeiro grau), se contextualizada por uma referência óbvia e imediata (segundo), ou se ligada a uma referência mais sutil, que só ocorre após decodificado o sentido de segundo grau (terceiro), etc, etc, etc. ...

5 Como em "Captei, estimado guru!"

6 O mesmo pode ser dito, aliás, de qualquer obra literária. É o velho truísmo de que só Machado de Assis sabe o que daria o exame de DNA do filho de Capitu.

7 Apud, As Aventuras do Barão de Munchausen.

8 Sacou?

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