quarta-feira, 25 de junho de 2008

Os pelegos: conto de Paulo Elache

Saí da cama e fui até a janela. De lá podia ver as luzes da cidade, seus sons e seus cheiros... quanto mais via essas luzes mais sentia saudade de Paris... é como se eu estivesse olhando da janela daquele hotelzinho barato da Quai de La Mégisserie... como era o nome mesmo?.. Ah! Hôtel du Palais, com Notre-Dame à esquerda e a Torre Eiffel bem à direita, quase sumindo ao fundo... e o som dos vendedores às margens do Sena, oferecendo um pouco da França através de souvenires e livros usados... e o cheiro dos brioches quentinhos, dos queijos...humm...

Paris... tão bela, misteriosa e romântica... e tão diferente da Delhi que via agora.

E só o que tinha a fazer era esperar pacientemente o momento de agir.
Por isso, peguei o dossiê no criado-mudo e tentei repassar o planejamento da missão. Mas não conseguia. Era como se já estivesse cansada de tudo, de todas essas malditas missões que a Empresa jogava em meu colo, melhor, em meus ombros como que “passando o mico”...

Essa coisa de “passar o mico” trazia vagas lembranças... acho que de um caso antigo da Empresa... não sabia ao certo, mas parecia algo importante.
Memória é uma coisa engraçada...

* * *

– E seu plano de ação?

– Bom... ahm... – respondeu o vacilante engenheiro, apontando para o slide seguinte como se ele fosse uma bóia salva-vidas. – Veja bem... hum... invoiçamos quatro placas que foram shipadas ontem para a MinTEC de Penang, conforme o commitado no último confcall. São todas not fail found... errr... quer dizer,boot up problem não confirmado... ahmm... e isquedulamos sua chegada na Malásia para a próxima quinta-feira...

– Sei, sei – interrompeu novamente o site manager da Suntronics. – Acho excelente, parabéns mesmo, correr atrás de ajuda para esse problema, mas o que você fará enquanto as placas shipadas não chegam à Malásia?..

– Bichô, isso dói... – cochichou Melecão para o seu colega Renó ao lado. Este, por sua vez, retrucou sem tirar os olhos do site manager, que falava sem parar : – Do que você está falando, cara? Dos defeitos?
Melecão virou-se para Renó, com seu sorriso maroto e sacana característico estampado no rosto, dizendo :

– Não, mané. “Shipado”... “Isquedulado”... “Commitado”... Argh!.. Dá vontade de vomitar... Porra, cara!.. não tenho que escutar todo o santo dia esse crime contra a língua portuguesa...

– Tem sim, pois você ganha pra isso. E fique quieto... – sussurrou Renó, olhando nervosamente para os lados à procura de seu chefe imediato. Até imaginou o que ele falaria : “Me desculpe à sinceridade, ô Renó... esse é meu jeito, você sabe ?... mas puta-que-pariu, caralho... ficar conversando durante a reunião de qualidade é foda!..”

– Ih, tá nervosa, santa? – provocou Melecão, tirando Renó de seu devaneio. Só não continuou mais pois viu que o gerente da Qualidade, dirigia-se à platéia.

– Antes de terminar gostaria de lembrar a todos sobre a importância que é para nós, da Suntronics, a re-certificação ISO2000/9. Os auditores do BVQ estarão aqui na próxima terça-feira, o que torna urgente à atualização dos planos de ação pendentes até a manhã de segunda-feira, OK?.. Bem, obrigado e tenham um ótimo fim-de-semana.

– Ufa! Até que enfim essa agonia acabou. – comentou discretamente Melecão ao levantar-se com brusquidão. Como sempre fazia após as reuniões, dirigiu-se rapidamente para a saída como se quisesse ser o primeiro a sair do auditório... e como sempre acontecia, pois sempre se sentava no fundo, ficava preso no rush humano. Renó, que por ser magrinho aproveitava-se sempre do “vácuo” criado pelo amigo grandalhão, aproximou-se de Melecão e perguntou : – Por que você nunca presta atenção na reunião, heim Luciano? Ainda mais hoje que foram mostrados trabalhos que servem como um share pra nós...

– Ah, me poupe você também. – retrucou Melecão com uma cara de quem comeu e não gostou. – Partilhar, Renó... em português é bem melhor, você não acha?

– Partilhar, share, tanto faz... Deixe de ser chato, cara, e preste atenção no que estou falando!

– Tá legal, Renó, desembucha. – respondeu Melecão, ao mesmo tempo em que cumprimentava com um aceno seu ex-chefe de Engenharia, agora no Marketing. “Esse é que é sortudo”, pensou.

– Você nunca deu valor à reunião de qualidade...

– E porque deveria? Quantas vezes nosso yield foi baixo? NUNCA! Quantas vezes tivemos que apresentar planos de ação para justificar rejeito no cliente? NUNCA, de novo! Bichô, pra “NÓS” essa reunião é pura PO-LÍ-TI-CA... não serve pra nada, deu pra entender?

A ênfase que ele deu no “NÓS” fez Renó lembrar-se “QUEM” era seu cliente... o verdadeiro “CLIENTE”.

– Não... entendi sem dar mesmo, seu gordo careca escroto. – brincou tentando tirar o embaraço do rosto.
Enquanto desenrolava a conversa, chegaram rapidamente ao lobby central, quase próximo à linha de produção. Ali ficava clara a tendência à praticidade american clean que a arquitetura seguia em toda a fábrica. No meio do lobby com uma cúpula geodésica, numa grotesca imitação moderna da Capela Sistina com pontos de iluminação substituindo a arte de Michelângelo, descia uma escadaria. E foi para aí que a dupla teve a atenção desviada, ao ouvirem uma voz feminina :

– Oi Renó... Lú, querido, tudo bem contigo?

– Fala gata... agora tô bem.

– Oi Marcinha... tudo bem? – perguntou Renó, enquanto a varria com os olhos. Márcia Moretti era uma das mulheres mais bonitas do Comércio Exterior (e da Suntronics) e aquele conjuntinho jeans camisa/calça, que ela usava no look desleixado-fashion (muito comum na sexta-feira), realçava ainda mais essa beleza.
Renó viu também que o Melecão não estava gostando nada disso.

– Bom... foi realmente um prazer revê-la, mas preciso ir. O pessoal está me esperando para uma reunião... chata mas inevitável, sabe como é?..

– Nossa!.. Agora? Que saco, heim?... Eu também só estou de passagem... preciso levar rapidinho essas requisições de compra ao Financeiro antes que eles fechem o expediente... Só queria saber se vocês irão à Estação do Chopp mais tarde?

– Claro, gata... Para o bota-fora do Ortega?

– É... legal,então... Preciso ir senão o serviço não sai. Beijão! – respondeu Márcia. Ela piscou para Melecão e deu uma corridinha, os passos ecoando pelo lobby.

– Selvagem... – sussurrou Melecão.

– É...

– É o quê, mané? – reclamou Melecão, enquanto se dirigiam à fábrica 1 – Bichô, desde quando você começou a gostar da “fruta”?.. Ela não é pro seu bico, rapaz… Olha que o Dú vai sentir ciúme...

– Você já “foi” hoje?

– Fui... sabe quem eu encontrei “lá”?..

E assim foram, trocando “amabilidades”, até chegarem às baias dos teams do High Volume.

Restava pouco mais de uma hora para começar o fim-de-semana, mas as baias ainda mantinham um ritmo frenético, como se o dia estivesse apenas começando. Eram os coordenadores das linhas correndo atrás dos engenheiros dos FUC para resolver problemas de processo e teste; o planejador de produção numa reunião agitada com os gerentes de conta para definir quem teria prioridade nas estratégias de produção para a próxima semana, sem falar dos estagiários correndo alucinados para resolver os problemas burocráticos originariamente propostos aos engenheiros; dos fornecedores apresentando seus produtos e serviços para engenheiros de saco-cheio que sonhavam com uma descida ao litoral e dos clientes... Ah, esses merecem menção especial... São a vida e a alma do negócio, seguindo ao pé-da-letra o credo liberal, assim como por vezes um tormento. Por exemplo, o cliente ElGio, o grupo coreano de telecom, avisando em cima da hora que haveria uma alteração de produto (sem o formulário correto... praticamente em “papel de pão”) e o cliente Hèrcule Purquard, a corporação belga de computadores, que vivia auditando o processo da Suntronics até altas horas e nas sextas-feiras, como se o intuito real fosse pura e simplesmente azucrinar o fornecedor, apertando-o até espanar.

Coincidentemente, quando Melecão e Renó passavam pela baia da Hèrcule Purquard, foram interpelados pelo gerente dessa conta:

– Luciano Cardoso, meu caro! – começou Mussio, dando tapas vigorosos nas costas de Melecão. – Posso roubá-lo de ti, Renó? É só por pouco tempo...

– Ele é todo seu – respondeu Renó, rindo da cara que o Melecão fez. – preciso mesmo dar uma passadinha nos testes funcionais... Tchau...

– Até... Luciano, preciso de tua ajuda. Tu sabes que estamos chegando no fim do ano fiscal e o isquedulado para as linhas não pode ser mudado sem que tenhas uma boa razão para isso, certo?

– Certo. E daí?.. – perguntou Melecão, de saco cheio por ouvir de novo aqueles estrangeirismos, ainda mais pela boca de seu perpetrador-mor na fábrica.

– Tu sabes aqueles componentes da placa Veneza2, que estavam presos na alfândega? Pois foram liberados, meu caro... canal verde! Por isso preciso que você ceda tua vaga na linha 2, no primeiro turno da próxima terça-feira até o segundo turno de quinta-feira. O Farinelli gostou da idéia, principalmente se levarmos em conta o faturamento de mais de 3300 placas além do forecast…

– Sei... mas e o meu compromisso com a WhoWells Tek?..

– Não se preocupe. Já falei com o production planner e ele encaixou tuas 500 GoogolPlexCR12 para bater na linha 4 do Low Volume no mesmo período. Você vê algum problema técnico nisso?

– Máquinas SMT mais lentas... debug de programa difícil... pessoal não treinado para esse processo... humm... tudo bem... Tenho escolha?

– Ânimo, meu caro... é essa nossa flexibilidade que garante o teu salário.

– Não está na hora de seu “fuc meeting” ? – ironizou Melecão.

– O quê?!. Ah… muito engraçado, – respondeu Mussio, meio sem graça. – Ok, vou comunicar sua aprovação ao Farinelli.

– É, faça isso… - despediu-se Melecão, não sem antes murmurar, - “vai lá, seu puxa-saco do cacete…”

Antes de fechar a semana Melecão ainda precisava verificar, no Controle de Documentos, se as novas instruções de processo já estavam impressas e devidamente autografadas pelo gerente de engenharia. No caminho ele parou para conversar com alguns colegas no corredor principal da fábrica 1:

– Mais de três é greve, pessoal...

– Taí uma coisa que deve te preocupar muito, né pelegão? – disse Veloso, mecânico das linhas SMT. Ele era delegado sindical e um dos mais ativos manifestantes na última greve.

– Ih, cara, não sei porque você está tão tenso... Sai do meu pé, jacaré…

– É, Melecão, você se acha um cara especial – brincou Veloso. – Um dos graúdos, o gerente de conta “honorário” da WhoWells Tek...

– Ah, não fode. Todo mundo tá careca de saber que a WhoWells Tek não precisa de gerente de conta fixo, e quem realmente cuida da administração, aquisição e cotação de novos projetos é o gerente de engenharia. Eu sou como qualquer outro engenheiro de projeto, pessoal – arrematou sarcasticamente. – E se quer saber, tô me lixando para o que você pensa ou deixa de pensar. Só acho que não prejudiquei em nada a greve... Bichô, os engenheiros daqui não produzem nada além de reuniões “nãna-nenê”, programas que vivem dando pau e planos de ação que levam a lugar nenhum...

– A velha desculpa do reacionário... Melecão, pena que você não ouviu o discurso do presidente do sindicato... ele ficou fulo de raiva quando o “bando” de pelegos... você inclusive... tentava se esgueirar pela cerca, abaixando a cabeça para não olhar a cara dos companheiros que lutavam por eles... vocês... e tascou um esporro bem dado : “Pessoal, pelego é pior que barata, pois nem inseticida mata esse povo...”

– Sou tão barata quanto o Kafka...

– Quem?

– Ah, deixa pra lá... doesn’t merda – comentou Melecão, querendo cortar aquele bate-boca infindável. Ele aproveitou a aproximação do colega Renó para fazer isso. – Renó! Renó!.. com licença, turma.

Estranhamente Renó pareceu assustar-se com a voz de Melecão, pois arregalou os olhos e apertou o passo rumo à área de testes.

– Bichô, algum problema?

– Não... tudo bem...

– Precisa de ajuda?.. Parou algum funcional?..

Renó parou bruscamente e, encarando o obeso e ofegante colega, falou:

– Estou ocupado, cacete, não percebeu ainda?

– Que é isso, cara... precisava falar assim?

Renó estava visivelmente nervoso, desviando sempre os olhos do escrutínio do amigo. Mesmo assim, ameaçou um sorriso rápido antes de falar:

– Foi mal, mano... Sabe como são desesperados esses coordenadores de linha... É só uma máquina dar uma engasgada e eles já se descabelam para que a gente faça o reparo o mais rápido possível – e olhou para o relógio. – Pode deixar comigo que é rapidinho... vá para a baia e me espere, OK?

– Humm... então tá... se for esse seu desejo, mas pode ir tirando o cavalinho da chuva que não vou te dar carona. Hoje, meu carro só leva a Marcinha.

– Sei... – despediu-se com um suspiro Renó, continuando sua caminhada ao final da linha.

Melecão sentiu uma pontinha de preocupação no jeito que Renó respondeu, mas deixou para lá. Ele já atuara como engenheiro de testes no início de sua carreira e sabia muito bem como esses “problemas de final de expediente” tiravam qualquer um do sério.

Quando estava guardando suas coisas e desligando ao mesmo tempo o PC e a “cabeça” das coisas da fábrica, pensando somente em “encher a cara”, viu que Renó aproximava-se da baia.

– E aí? Resolvido?

– O quê?!

– O funcional, ICT ... sei lá, cara... não tinha parado uma máquina?

– Ficou louco, gordo? Tô sabendo de nada, meu...

– Ai, meu saco... deve ser tensão pré-menstrual...

– Eu, heim... E aí, descola uma carona até a Estação do Chopp?

“Caralho”, pensou Melecão. “Além de viado é surdo... Tô precisando mesmo chapar o côco...”


* * *

– Ôoo.. garçom, garçoooom!.. merda! – se esgoelava Melecão para fazer seu pedido a um dos garçons, que equilibrava uma bandeja lotada de tulipas “estupidamente douradas”, no meio daquele fuzuê que era a Estação do Chopp na sexta-feira à noite. O lugar não era um dos points mais famosos de São José dos Campos e o atendimento não era lá essa coisa, mas se você queria reunir o pessoal da Suntronics para uma happy hour interessante, não havia lugar melhor. Ninguém sabia ao certo por que. Talvez o sabor do chopp, o preço dos petiscos... talvez por ficar bem em frente à quadra de futsal...

O certo era que as noites de sexta-feira começavam sempre ali.

Naquela sexta-feira em especial, eles estavam se despedindo de um colega, o Ortega, que resolveu largar a vida de engenheiro e se dedicar à sua banda de música gótica.

– Mais um? – perguntou retóricamente o garçom, já largando as tulipas suadas na mesa.

– Claro... e mais uma casquinha de siri e outro submarino... – pediu Melecão virando o caneco até sentir o copinho de cachaça vazio bater em seus lábios.

– Pega leve, Melecão – avisou Renó, após despejar goela abaixo o seu chopp. – Você está dirigindo.

– Cara, preciso recuperar toda a água que eu perdi no jogo...

– Só se perdeu mijando, seu barrigudo – ripostou rindo Renó.

– Ah, vá se ferrar – reclamou Melecão.

– Tá bom... pena que você perdeu o lance do pênalti “duvidoso”...

– Que pênalti?

– Ah, não ! – reclamaram todos à mesa.

E não era para menos. Toda vez que discutiam os lances duvidosos após as partidas, sempre acabavam em discussão e acirramento de ânimos. Exatamente o que eles não queriam para o início da noitada de sexta-feira.

– Esqueça, é bobeira... Vamos falar do que agora? – perguntou Renó.

– Que tal sexo? – tascou Melecão.

– É seu tema “teórico” preferido, né? – brincou Renó.

– Pelo menos ainda gosto da “coisa”, seu viadinho.

– Gostei do “ainda”...

– Ainda o quê? – perguntou Márcia Moretti, enquanto colocava os óculos no rosto emoldurado por ruivos cabelos cacheados. Ela acabara de voltar do banheiro com duas amigas.

– Nada, gata. É só frescura do Renó.

E assim correu a noite daquela sexta-feira, com muitas provocações, as pessoas contando as mesmas velhas piadas, mas que todos pareciam ouvir pela primeira vez, numa cumplicidade gostosamente assumida; os grupinhos sendo formados e desfeitos pela maré dos assuntos, que variavam do papo-cabeça ao último capítulo da minissérie picante do momento (“Vocês viram o tamanho da ‘mala’?..” – Elas . “... Vocês não perceberam a influência de Nélson Rodrigues naquela cena da calcinha molhada?..” – Eles).

Teve até o “recital” de mais uma das famosas “Orações da Cachaça” do Walney Santos, um dos mais velhos engenheiros da Suntronics e profundo conhecedor de testes ICT. Mineiro de Araxá, ele era um contador de “causos” de mão cheia e apreciador de uma boa pinga. E “causos” e carraspanas não faltavam. Certa vez, num fim-de-semana, Walney foi convocado para reparar uma máquina em plena madrugada. Como bom funcionário que era, foi à fábrica sem reclamar. Não que fosse um puxa-saco, coisa que jamais passaria pela cabeça de qualquer pessoa que o conhecesse bem. Talvez sua placidez e solicitude fossem mais fruto das cervejas e pingas que tomara, horas antes, num churrasco na casa de amigos. Chegando na Suntronics, o supervisor que o chamara de pronto percebeu seu “estado alterado” e comentou: “Cara, você tá mal mesmo...”. Walney não se fez de rogado e disparou: “Mal estão vocês, que precisam de um bêbado pra resolver seus problemas...”. Esse era o Walney, amigo bom de conversa e bebedeiras.

Com o copo na mão, Walney ajeitou seus óculos, passou a mão pela barba alourada e com aquele sotaque típico de mineiro da gema começou:

Subi na torre da igreja,

Mexi no badalo do sino.

Desci castigando homem, mulher e menino.

Seu padre perguntou:

- Que é isso, menino?

Respondi:

- Conforme vô fazendo, lá vô bebendo!

- Pra que nossas muié não morram viúvas,
nossos fío num seje fío do vizinhu mais próximo e pra que fiquêmu rico, que bunítu nóis já sômu...

- Rezêmo essa oração:

Sarto de purga!

Carreira de lebre!

Quem disse que nóis num bebe!.. Nóis bebe!

E vai arriba!..

E vai abaixo!..

E vai ao centro!..

E vai adentro!

Todos repetiram a coreografia dele, subindo e abaixando os copos, parando no meio e jogando goela abaixo a caninha pura. Foi um delírio só, naquela mesa de bar. Aqueles engenheiros divertiam-se como crianças, tentando esquecer a amarga e, por vezes, alucinada rotina de trabalho.

Mas aquela noite não foi igual às outras.

– ... os putos que se cuidem, meu – brincou Melecão, falando alto para ser ouvido em meio ao falatório. – Com nossa nova plaquinha GoogolPlexCR12 vai ser fácil atingir a meta do trimestre... hein?... o que você quer, Renó?

Renó estava a seu lado, cutucando o amigo e indicando o pager em sua mão. Na telinha aparecia a mensagem: “Apresente-se já para reunião de emergência!”... e logo abaixo o remetente: “Parmegianni”.

– Cacete! Que será que ele quer logo agora? – sussurrou Melecão, lembrando-se de ligar seu pager. Apareceu uma mensagem idêntica.

– O que foi, Lú? – perguntou Márcia, ao perceber o nervosismo dos dois.

– Nada, gata, não se preocupe. É só um probleminha na fábrica... nada que uma ligação não resolva – disse Melecão ao levantar-se. – Vou até o telefone no balcão e já volto, tá?

– Quer usar meu celular?

– Obrigado, mas eu já ia mesmo ao banheiro – e deu um beijo carinhoso nela. – É rapidinho.

Ao passar por Renó, sussurrou: “Eu vou à frente, tá legal?”

No banheiro Melecão e Renó enrolaram um pouco, esperando que todos saíssem. Como o último cachaceiro não dava mostras de querer parar de esvaziar a bexiga, Melecão resolver dar uma ajuda:

– É pra hoje ou tá difícil?

O homem tomou um susto tão grande que quase virou eunuco, tamanha a rapidez para fechar o zíper.

– Calma, companheiro – falou Renó, tentando acalmá-lo. – É que a gente precisa muito usar esse banheiro o mais rápido possível...

O bêbado olhou os dois e antes de sair cambaleando pela porta falou alto: “Bando de baitolas!”.

– Ah, vá se ferrar, pinguço! – gritou Melecão ao fechar a porta do banheiro. – E você tinha que falar aquela boiolice, né, Renó? Vamos logo antes que alguém entre de novo.

Melecão puxou duas varetas de seu pager, formando algo parecido com uma forquilha, e foi até uma das paredes do banheiro. Ao tocá-la com as duas varetas, ocorreu uma pequena mudança em sua textura, algo como uma leve transparência.

E foi por essa transparência que Melecão passou, como se não existisse parede alguma ali.

Não era o que conhecemos como “porta”. Era algo parecido com uma “objetivação 3D da quebra da supersimetria local por monopólos exóticos”.

Nem o outro lado era o “banheiro feminino do bar” (muito menos poderia ser chamado de “outro lado”, na acepção tetradimensional da palavra), mas um “nexus com topologia Kaluza-Klein-Witten de décima ordem, resultante do curto-circuito de Linhas Temporais entre a quinta e a sexta dimensão (compactadas no espaço de Planck)”.

Toda essa algaravia técnica servia somente para mostrar que o Melecão foi à sede da Polícia Internacional do Tempo... Intempol ou, simplesmente, a Empresa.

Essa era a verdadeira “Empresa” para qual Melecão e Renó trabalhavam. A WhoWells Tek era apenas umas das muitas empresas de fachada que a Intempol usava para transações comerciais em várias LT .

Como todos os que se dirigem à sede, Melecão saiu diretamente na plataforma de uma das Salas de Transição. Não por limitação da aparelhagem, mas apenas para controlar o vai-e-vem dos funcionários.

– E ibe,Luciano, quale esaraj? Vu kyxeis aby tempur linaj? – escutou Melecão, ainda tonto pela transição, a pergunta em vortalex .

– Ah, HK, não enche meu saco! – reclamou Melecão, tomando seu comprimido de sorocafeína. A resposta metabólica foi imediata, curando-o do porre num piscar de olhos. Não que isso o deixasse alegre, pois adorava as bebedeiras de sexta-feira, mas precisava dos neurônios bem “secos” para enfrentar o mau humor do Parmegianni.

HK, o esguio robô cujo nome completo era Hamamatsu-Kudai24 (série Courier), esperou calmamente que Melecão terminasse de xingá-lo em várias línguas. Paciência era uma característica inata nessa série, originalmente isenta de quaisquer circuitos emocionais. Mas, de todos os “couriers”, HK era o que freqüentemente entrava em loops lógicos, repetindo ad nauseam sua pergunta-chavão: “E aí, como estamos?”. Diziam que era por causa da longa exposição aos campos temporais, naqueles (humanos ou não) que ficavam mais tempo que o necessário nos reparos das Salas de Transição.

– Se já acabou, gostaria de lhe informar que o supervisor Parmegianni o espera ansiosamente em sua sala. E os expurgos de LTA?

– Ih, é hoje... – disparou Melecão. – HK, é melhor você dar um reset em seu buffer de memória antes que alguém, com menos paciência que eu, estoure seus miolos positrônicos... e eu tô esperando o Renó, tá legal?

– Evaristo Renó chegou antes de você, já contatou o supervisor Parmegianni e está em missão especial, com 85.7% de probabilidade de retorno nos próximos 20 minutos. E, para sua informação, meus módulos gnósticos são ParaCOG e holoquânticos, em nada semelhantes à estrutura cerebral humana, bem como independem de reações matéria-antimatéria para operar. Suponho que sua menção aos “miolos positrônicos” signifique uma alusão aos relatos fictícios sobre robôs na obra de Isaac Asimov, autor que...

– Dá um tempo, HK... mas como o Renó chegou antes de mim?.. Só se... Merda!.. Puseram-me no “gelo”...

– Suponho que sua menção ao “gelo” signifique uma alusão ao fato de ter sido cronodefasado...

– Tá, tá... sei muito bem a sacanagem que fizeram comigo, HK. Só estava pensando alto – replicou com rancor Melecão, dirigindo-se à saída da Sala de Transição. – Vamos nessa, “courier”... e me explique tudo no caminho. A começar pelo tamanho da “gelada”...

– Suponho que sua menção a “gelada” signifique...

– Desembucha e não me enrola, cacete!

– Trinta minutos e vinte e seis segundos em 3, 2, 1... agora!

– Ah, o Parmegianni vai ter que me explicar isso direitinho... Ah, vai... – reclamou Melecão enquanto passava pelos corredores a toque de caixa. Foi então que notou a falta de movimentação característica da Empresa, com o vai-e-vem barulhento de burocratas, técnicos e agentes. Agora poucas pessoas circulavam pelos corredores.

– HK, por que está tão vazio por aqui?

– É a greve.

– Que greve?

– Mais detalhes com o supervisor Parmegianni. Expurgou as LTA?

– Não, saco!.. Mas já expurguei sua mãe, sabia?

– Para sua informação, não tenho “mãe”, no sentido que vocês humanos dão a essa palavra. Suponho que sua menção seja apenas uma alusão jocosa... seja lá o que isso for... assim como suponho que minha resposta-padrão deva ser “é a sua, seu babaca!”...

– Que é isso, minha gente? Parece que senti uma pontinha de humor cínico em você, HK... Acho que a exposição aos campos temporais está fazendo bem aos seus “módulos gnósticos”, heim?

– Talvez, em uma outra hora, você possa explicar melhor o que entende por “consciência robótica”. Mas agora o supervisor Parmegianni o espera – comentou HK apontando uma porta à sua frente.

Melecão bateu à porta e abriu-a, sem esperar qualquer autorização.
A sala não era diferente de qualquer outra na Intempol. Mesmo sendo um supervisor, Parmegianni não gozava todas as regalias que o cargo exigia. Uma mesa, quatro cadeiras e um pequeno sofá de dois lugares... Era tudo o que precisava para coordenar o Departamento Técnico.

– ... Sei, sei... Entre – sussurrou Parmegianni, indicando uma das cadeiras perto da mesa. Ao acomodar-se, Melecão percebeu que o Parmegianni não estava sozinho. No sofá, quase na penumbra, estava sentado um homem que ele não conhecia. Estava soltando a fumaça do cigarro muito calmamente e nem fez qualquer movimento para cumprimentá-lo. “Tipo estranho”, pensou Melecão. Como o telefone estava em viva-voz, era possível escutar o burburinho do outro lado. Parmegianni continuou: – ... Mas preciso falar com ele agora.

– Certo, vou tentar senhor... de qual firma, senhor?

– Marcos Parmegianni, da WhoWells Tek... rapidinho, por favor.

– Como disse ao senhor, ele acabou de entrar numa reunião muito importante e farei o possível... qual o assunto?
Parmegianni apertou a tecla para silenciar o fone e disparou – Qual assunto!? Que tal “avise que o resultado do exame deu herpes genital”? Ah, não fode... – e religou o fone – Minha cara, diga simplesmente que vocês estão correndo o sério risco de perder um cliente...

– Calma, senhor... só um minuto... – e a voz da recepcionista foi substituída por uma daquelas mensagens musicais enfadonhas, descrevendo ad nauseam os objetivos da empresa.

– Esse Tacco é um espertalhão... err... espere um pouco... – disse Parmegianni ao pegar o celular. Ele tinha a mania de atender o celular com a mão esquerda, colocando-o no ouvido direito, num engraçado ato contorcionista. Outra mania era ficar espetando a lapiseira na testa enquanto falava, como que para testar se ainda havia grafite. E era exatamente isso o que ele estava fazendo.

– ... Certo... humm... faça isso bem rápido antes que as mudanças sejam implementadas... vou desligar agora pois o Tacco está chamando... é sim, depois eu te digo, tchau... – guardou o celular e falou ao fone. – Tacco, é você?

– Grande Parmegianni, é sempre um prazer falar com você... só não pude atendê-lo antes pois estava, melhor, estou em uma reunião muito importante para definir estratégias de teste... coisa muito útil para vocês da WhoWells Tek...

– Eduardo Tacco, meu caro, você está usando meu dinheiro em coisas que não me interessam agora – replicou Parmegianni com um sorriso maroto. Enquanto falava, seus olhos não se fixavam em ninguém além de sua indefectível lapiseira. Na verdade, ele quase nunca olhava nos olhos de seus interlocutores, o que deixava muita gente desnorteada. – Vamos direto ao ponto: quando você me entregará a fixture da GoogolPlexCR14 ?
Melecão estranhou a última parte da frase. “GoogolPlexCR14?!?.. esqueceram de passar pelo 13 ou fui deixado de fora mesmo?”, pensou.

– Veja bem, Parmegianni, com os arquivos gerber/CAD e o esquema elétrico, que o Luciano enviou, adiantamos a furação... ahn... supondo que essa documentação seja a versão final e se o Luciano puder me enviar ainda hoje as golden boards mecânica e elétrica, entrego sua fixture debugada dentro do prazo, que é... deixe-me ver... na próxima semana. Tudo bem?

– OK, então. E não me enrole, senão eu chuto o balde!

– Confie no meu taco, amigo – replicou, rindo, Tacco.

“Que trocadilho mais besta”, sussurrou Parmegianni. – Tchau, Tacco!

– Tchau e bom dia pra você.

Terminada a ligação, Parmegianni olhou sem encarar para Melecão.

– Aí está você, heim? Quais são as novidades, Luciano?

– Desculpe a franqueza, chefia, mas você é que está me devendo explicações. Que história é essa de me colocarem no “gelo”? E esse negócio de greve? Quem está fazendo greve? E, com o perdão da má palavra, que merda é essa de arquivos que eu enviei ao Tacco? Nem sabia dessa nova placa...

– Você enviou sim porque vai enviar. E pode tirar essa máscara de espanto do rosto... até parece que se esqueceu que trabalha num lugar onde o tempo é nosso negócio. Ontem, hoje e amanhã são apenas palavras bonitas de se ouvir, sem grande significado real para nós, da Intempol.

– Não sou estagiário, Parmegianni, mas entendi o recado. Mas e a greve? Que eu saiba, não existem funcionários “sindicalizados” na Empresa...

– Bom, vamos lá... Essa greve começou depois que vários agentes tiveram sérios problemas com suas Caixas Registradoras. Pelo menos trinta agentes perderam-se no CET, seus átomos espalhados sem qualquer possibilidade de resgate. Outros dez tiveram seu ETA deslocado, prejudicando suas missões. Mas o pior foi o que aconteceu com os agentes M. Ismael e I. Watson. Com ambos ocorreu uma sobrecarga no reator de descarga, que evitou a dissipação completa dos monopólos virtuais... bem, o resto você deve imaginar...

– Supercordas?!.. Em superfície planetária? Duvido! Isso é... é...

– Impossível? Não, acho que improvável seria a forma mais correta de expressar o ocorrido. M. Ismael, programado para crono-saltar em Cairo/1923 dC, foi pulverizado por microcordas de 15 megatons em El-Lissan/2024 aC, uma região também conhecida pelas cidades que lá existiam: Sodoma e Gomorra.

– Caralho!

– Concordo... I. Watson, programado para crono-saltar em Quebec/2001 dC, teve o mesmo destino na manhã de 30 de Junho de 1908 dC, numa região da Sibéria conhecida como Tunguska.

– Brincou?!

– Sério... Por isso falei que foram os piores casos. Com os outros agentes, mesmo os dispersos atomicamente pelo CET, pudemos evitar que viajassem. Mas Ismael e Watson não pertenciam mais a Intempol... agora e para sempre eles faziam parte da História, aquela com “H” maiúsculo.

– Mas os Arquivos... todas as missões, tudo o que aconteceu/ acontece/ acontecerá... como eles...

– Eles também estão surpresos – falou pela primeira vez o fumante.

– Ah, desculpe a minha falha, mas depois de tanta confusão acabei esquecendo... Luciano Cardoso... comissário Antônio Fraga. Ele está aqui para nos ajudar nesse caso. Por favor, comissário, continue.

– O Sr. K., dos Arquivos, não encontrou referências aos incidentes, muito menos os relatórios de rejeito dessas placas – disse Fraga, após uma longa tragada em seu Continental sem filtro.

– Elas não falharam nos testes de integração – replicou Parmegianni. A Intempol contratava empresas montadoras como a Suntronics para a fabricação das placas de controle das Caixas Registradoras. Mas algumas peças, como o reator de descarga e o anel SSNAQE, eram apenas acrescentadas no processo de integração de sistemas.

– Sei disso. Por essa razão e pelos agentes mortos, que eram de minha equipe, resolvi investigar esse caso.

– Mas o que eu tenho com tudo isso, já que as placas passaram na integração? – perguntou Melecão.

– Todas foram produzidas no segundo turno da semana 25-5 e estavam com BIOS corrompidas por programas aparentemente viróticos – replicou Fraga.

– Peraí... isso foi hoje, quer dizer, na sexta-feira que deixei pra trás antes de ser “gelado”... mas quem e como souberam que a Suntronics montava placas para nós?

– Você fez isso, Luciano – respondeu Parmegianni, com um sorriso amarelo e com os olhos mirando tudo menos o rosto de Melecão.

– Eu?!.. Mas nunca... jamais faria isso... você sabe muito bem, Parmegianni...

– Mas quem disse que não confio em você, rapaz? Digamos que você “deu bobeira”, “vacilou”, “pisou na bola”. Em seu lugar e naquelas condições, talvez fizesse o mesmo...

– Mas... quando dei esse tal “vacilo”?

– Quando você, após levar uma moça chamada Márcia Moretti ao motel, contou-lhe alguns “detalhes técnicos” sobre a viagem temporal. Ela achou seu papo engraçado e conversa aqui, conversa ali, foi espalhando o assunto. Como em todos os fabricantes de placas que subcontratamos existem espiões, foi fácil juntar as pontas soltas.

Melecão abriu um enorme sorriso.

– Não acredito? Consegui então...

– Não. Tiramos você da LT antes disso.

Melecão arregalou os olhos e, apoiando-se perigosamente na mesa, gritou:

– Sacanagem, Parmegianni! Levei meses para ganhar aquela gata, cara... Foram muitos jantares... muito “balada”... Bichô, não faça isso comigo!.. Sei que você é meu chefe, mas não vou ficar calado vendo-o tirar isso de mim!

– Baixe a bola, rapaz. Já era. E você devia me agradecer, isso sim, por livrá-lo do vexame da broxada... – retrucou sarcasticamente Parmegianni. – Como você acha que o assunto espalhou-se tão rápido?

Percebendo que a discussão ia esquentar além do necessário, Fraga interviu:

– A exibição dos machos feridos já acabou? O cheiro de testosterona já está incomodando...
“Fuma o meu pinto então, seu puto, pra sentir o gostinho de testosterona...”, pensou Melecão. “Que cara mais escroto!.. Sabia que era um babacão, desde a primeira vez que o vi”.

Fraga deu uma última tragada no cigarro e, antes de jogá-lo fora, olhou para Melecão:

– Sabemos o quê, quando, onde e como tudo aconteceu. Resta saber quem e porquê.

Melecão meneou a cabeça, nitidamente confuso:

– Foi essa a razão de me deixarem no “gelo”?

– Preferia ir direto para a Prisão? – replicou Fraga.

– Claro que não! – respondeu Melecão, com certa raiva e preocupação em seu tom de voz. E não era para menos. Afinal ninguém, em sã consciência, gostaria de ser obliterado do continuum, indo para a Prisão Henry Armstead-González. Também conhecida como a “Prisão dos Homens Que Nunca Existiram”, ou somente “a Prisão”, era para lá que iam aqueles que cometeram crimes contra o continuum, aqueles que sabiam demais. Seus registros eram apagados da existência e sua ascendência era reformulada de forma tal que não podiam mais voltar para sua Linha Temporal.

Prisão Henry Armstead-González... era assim que prestavam homenagem ao criador da viagem no tempo.

– Gostaria mesmo era saber por que fui “gelado” e o Renó não, se nós dois trabalhamos para a WhoWells Tek...

– Por causa disso – falou Parmegianni, entregando-lhe um papel amarelado. Nele estava escrita a seguinte mensagem:
“Preciso de ajuda urgente, pois não posso ‘saltar’ sozinho. Tenho 3 eventos na ‘linha’ me segurando” – a seguir, apareciam 3 tetracronos e o restante da mensagem. “Parmegianni, conto com você para eliminar esses ‘eventos’ que atrapalham nossa missão nessa ‘linha’. Atenciosamente, Renó.”

– Parece a letra do Renó, mas não sei... – disse Melecão, virando e revirando o papel. – Está muito velho... Como você recebeu isso, se o pessoal dos Arquivos não sabia de nada?

– Não veio através dos Arquivos – disse Parmegianni, tirando o papel das mãos de Melecão. – Chegou pelo “correio do tempo”.
“Correio do tempo” era uma expressão muito comum na Empresa, significando mensagens enviadas no sentido crescente da entropia, do passado para o futuro, viajando pelo tempo com “velocidade” normal de 24 horas por dia e escondidas da vista de qualquer pessoa que não fosse da Intempol. Agentes que usavam esse artifício com certeza estavam em apuros.

– E como você ficou sabendo onde procurar?

– Recebi um relatório do Renó sobre problemas de não-conformidade em algumas memórias EEPROM da semana 25-5... coincidência, não?

– Peraí... fui eu que te enviei esse relatório...

– Eu sei. Por isso achei incomum essa duplicidade de informação, ainda mais quando não é uma atribuição dele como engenheiro de teste. Mas como já conhecia sua “lerdeza” em cumprir prazos, achei que o Renó resolveu ajudá-lo.

– Muito obrigado por sua confiança em minha “performance profissional”, chefinho “querido” – retorquiu Melecão, arregalando os dentes.

– De nada... Para sua sorte, o que confirmou mesmo minha desconfiança foi o comentário que ele escreveu no final do relatório. Havia, em meio à tradicional despedida, um agradecimento pelo delicioso porto que ele degustara em minha casa...

– Humm... esse Renó não perde tempo, heim?

– Prefiro fingir que não ouvi seu comentário cretino, – replicou Parmegianni, ainda espetando a testa com a lapiseira. – Foi na última confraternização de fim-de-ano e você estava lá, seu puto. Continuando, ele escreveu que meu Caves da Porca era sublime por ser tão velho quanto eu, mas ele queria confirmar isso, vendo minha certidão de nascimento...

– Folgado esse Renó, te chamando de velho... Será que ficou maluco?

– Nem uma coisa, nem outra – cortou Parmegianni. – Esse era o código que o Renó usava para verificação de “correio do tempo”. Segui seu comentário enológico e fui até sua caixa de correio. Vasculhei a papelada até que achei um artigo sobre vinhos do Porto. Verifiquei o documento de cabo-à-rabo... Visualmente não achei nada diferente nele; por isso enviei-o para análise, suspeitando que estava diante de um palimpsesto. Adivinhe o que acharam?

– Tá legal, tá legal... parece que o documento é verdadeiro, mas me explique só uma coisinha: se o Renó estava preso, incapacitado, fodido... sei lá, doesn’t merda... como ele mandou essa porra de mensagem?.. E não me venha com o papo de autosalvamento que eu tô careca de saber, você inclusive, que o postulado Tesla não permite isso...

– Tenho uma idéia, mas acho que é melhor escutar da boca do próprio Renó – disse Parmegianni, fazendo uma ligação. – HK?

– Como estamos?

– Bem, HK, muito bem... ele já voltou?

– Suponho que seu questionamento seja sobre o paradeiro do agente Evaristo Renó...

– É, HK... ele voltou ou não?

– O agente Renó já chegou e está a caminho de sua sala, supervisor Parmegianni.

– Obrigado HK .

– Servir bem faz parte de meu protocolo básico, supervisor Parmegianni. Se me permite, senhor, posso perguntar-lhe sobre os últimos expurgos de LTA?

“Manda ele à merda”, sussurrou Melecão impaciente. Parmegianni riu do comentário e continuou:

– Agora não, HK. É tudo por enquanto, – e desligou de pronto, antes que HK pudesse falar qualquer coisa.

– Não sei por que você ainda não sucatou esse robô pentelho, – comentou Melecão

– Você é que tem birra dele, Luciano. Ele e muitos outros couriers estão fazendo coisas para as quais não foram projetados.

– Além do mais – cortou Fraga, – a greve não deixou-nos muitas opções operacionais.

– Ah, tá... – comentou com um muxoxo e só não continuou pois batiam à porta. Era o Renó.

– Entre Renó, entre, – pediu um ansioso Parmegianni.

O recém-chegado aceitou o convite e sentou-se ao lado de Melecão; este, por sua vez, sussurrou um cumprimento bem provocativo: “Fala aí, sua bicha loura!”. “Vá te catar, gordo idiota!” – foi a resposta de Renó, seguindo o padrão ritualístico de comunicação entre eles. Pelo fato de ser esguio e com maneirismos delicados, ter a pele bem clara e viver tingindo os cabelos (agora estava alaranjado, mas na semana anterior parecia quase ruivo), Renó era alvo de comentários tendenciosos sobre sua masculinidade. Mas ele encarava tudo isso apenas como uma brincadeira entre amigos. A sério mesmo Renó levava sua responsabilidade como engenheiro de teste do projeto GoogolPlex, que a Suntronics produzia para a Intempol.

– Estávamos preocupados com o resultado da missão – disse Fraga, acendendo outro cigarro. – Mas vejo que, mesmo sem orientação dos Arquivos, você atingiu o objetivo desejado.

– Foi difícil, mas cumpri meu dever.

“Dever o caralho... você é pelego que nem eu...” – cochichou Melecão.

Renó quase retrucou, mas desistiu por concordar com o amigo. Eles sempre furavam as greves da Suntronics, com a eterna arenga de que não eram essenciais ao processo produtivo e que, por isso, não atrapalhavam o movimento dos trabalhadores. E por serem funcionários da Intempol, achavam-se acima dos problemas que apareciam na LT que trabalhavam. Mas agora era diferente. Eram agentes da Empresa, colegas de longa data, que estavam lutando por mais segurança nessa perigosa atividade de viajar no tempo. E, novamente, ele e Melecão estavam “pelegando”.

– Então, que tal apresentar suas atividades? – perguntou Fraga.

– Claro... mas não tive tempo para preparar uma Apresentação , sinto muito. Espero que meu relato oral seja o suficiente.

“Ah, meu saco, só faltava essa”, pensou Melecão. Desde que “viu” uma Apresentação pela primeira vez ficara marcado para sempre, tamanha a pressão invasiva na mente do “espectador”. Se o Renó “apresentasse” a dele, seria a terceira de Melecão, e somente na segunda aprendera a controlar-se, não vomitando no final.

– É o suficiente – arrematou Fraga, para alívio de Melecão, colocando um gravador na mesa. – Tudo o que falarmos nesta sala não irá para os Arquivos, como todos já sabem. Continue, por favor.

Renó acomodou-se na cadeira e começou seu relato...


* * *

Odeio viajar no tempo.

Não é a mesma coisa que “viajar” à Empresa. Eu “viajo” quando passo por uma interface dimensional. Para muitos é uma coisa comum, rápida e sem maiores conseqüências. Acho que eles passam de olhos fechados, com medo de enlouquecer...

É, é isso mesmo, enlouquecer... enlouquecer com as luzes ofuscantes, as cores impossíveis e as perspectivas absurdamente echerianas . Mas nada disso me afeta, ao contrário, só me deixa com mais tesão para trabalhar.

Mas quando passo um cartão cronal , nada de interessante acontece. Num momento estou “aqui”, naquele instante que eu chamaria de “meu presente”; noutro “lá”... no “meu futuro” ou “meu passado”. Se não fosse a tontura e o arrepio que dava quando se chegava “lá”, todo o processo seria completamente insosso...

Como o Parmegianni e aquele tal supervisor Fraga queriam, evitei chamar a atenção para essa missão. Além da caixa registradora e do cartão cronal, precisava de mais apetrechos para minhas investigações na Suntronics. Duro mesmo foi convencer o Messias, do almoxarifado, que eu só iria fazer uma viagem de rotina.

– Rotina? – perguntou Messias. – Meu filho, desde quando um inibidor taquiônico, uma mini-Glock lança-dardos e vários nanicos são rotina? Tá furando a greve, é?

Expliquei-lhe que só iria realizar testes de campo com aqueles equipamentos, a pedido do Parmegianni, para garantir que os acidentes que deram início à greve dos agentes não se repetissem.

– Eu já sabia, seu bobo – replicou Messias, olhando-me de um modo bem estranho. – Já havia falado com o Parmegianni. Pode levar e não precisa assinar nada... confio em você...

Ih... Não é que o Messias estava me “cantando”?

Saí logo daquele lugar, indo direto ao meu apartamento. Por segurança e sigilo, crono-saltei de lá diretamente para o tetracronon que o Parmegianni me dera.

Apareci dentro do depósito de equipamentos sucatados da Suntronics. Mesmo que lá existissem câmeras de segurança, não teriam notado minha transição para a LT.

Só eu notei... pela zonzeira.

Consultei o clock da caixa registradora. Era sexta-feira, 22 de Junho de 2001 dC, 16:46h.

Merda... a reunião de qualidade terminara minutos atrás e eu teria que rebolar muito para não encontrar comigo mesmo... Mas, se não me lembro de qualquer encontro desse gênero, então não aconteceu, certo?.. Sei lá... esse negócio de viajar no tempo sempre me deixa tonto. Acho que é por isso que esses encontros não são permitidos.

Saí de lá e fui rapidinho até minha baia. Por sorte estava vazia. Coloquei meu jaleco e calcanheira antiestática e fui direto para a área de testes. Cumprimentei várias pessoas no caminho, mas levei um susto tremendo quando ouvi a voz conhecida de Melecão chamando:

– Renó!.. Renó!..

Puta-que-pariu!.. Não podia me encontrar com ele naquele momento. Acelerei o passo, mas o gordo me alcançou ofegando.

– Bichô, algum problema?

Ah, que vontade de dar um soco na fuça daquele gordo, que causou todo esse problema por causa de uma xota... Merda, tive que me controlar:

– Não... tudo bem...

– Precisa de ajuda?.. Parou algum funcional?.. – perguntou Melecão com aquele sorriso sacana.

Foi a gota d’água... ainda mais com aquela cara de safado...

– Estou ocupado, cacete, não percebeu ainda?

Melecão fez uma simulação de cara triste, já que ele nunca conseguiria ficar sério, e disparou:

– Que é isso, cara... precisava falar assim?

Evitei olhar para ele e olhei ao redor, verificando se o “Renó” do passado estava por perto.

Merda!.. Precisava cortar logo aquele papo furado e fazer logo o que tinha que ser feito. Armei um arremedo de sorriso e falei:

– Foi mal, mano... Sabe como são desesperados esses coordenadores de linha... É só uma máquina dar uma engasgada e eles já se descabelam para que a gente faça o reparo o mais rápido possível – olhei para meu relógio... “Seja rápido na dispensa, cara”, pensei... – Pode deixar comigo que é rapidinho... vá para a baia e me espere, OK?

– Humm... então tá... se for esse seu desejo, mas pode ir tirando o cavalinho da chuva que não vou te dar carona. Hoje, meu carro só leva a Marcinha.

Coitadinho... lutou tanto pela xota da Márcia... “mas o Parmegianni cortou seu barato, gordo escroto”, pensei. Suspirei e falei, enquanto me dirigia para o final da linha:

– Sei...

No caminho peguei alguns chips de BIOS na linha SMT . Seria mais fácil e seguro analisá-los usando meu datachecker portátil que levá-los até o pessoal dos Programáveis.

Nada. O checksum dos chips estava OK, logo as alterações não vieram dos Programáveis.

Como o ICT não testava nem gravava o conteúdo da BIOS, restava o Teste Funcional. Pedi licença aos operadores dos Funcionais e verifiquei as rotinas de refresh de BIOS.

Bingo!.. Os filhos da puta alteraram as linhas de programa referentes ao set up de injeção monopolar, de uma forma tão sutil e aleatória que não mudavam em quase nada o tempo da seqüência de pré-teste. Segundo os operadores, às vezes ocorriam falhas de inicialização, mas num segundo boot up essas placas passavam.

– Que é que está havendo aqui?

Cacete! Estava tão entretido no debug do programa que nem percebi a chegada do coordenador de testes, Jonas.

– Calma, Jonas – respondi rápido, ainda me refazendo do susto. – Estou só verificando as versões de programa... sabe como são essas auditorias e não pretendo tomar uma não-conformidade...

– Pois faça isso em seu terminal – retrucou Jonas, fazendo de tudo para ver o que eu estava mexendo no programa. – Você está atrapalhando meu processo e tenho um commitment de placas para entregar até o final do turno.

“Bem sei as merdas de placas que você nos enviará”, pensei enquanto o observava. Jonas sempre fora um cara estranho. Era magro, tinha a pele branca e pálida, uma voz cavernosa e rouca. Tinha a mania de colocar a mão no peito por entre a camisa, apertando-o como que para diminuir alguma dor. Sua respiração era entrecortada e pelos cantos da boca por vezes escorria um pequeno filete de baba, que era logo sugado antes de cair na barba rala... uh, nojento...

– É coisa rápida, Jonas. Só vou desfazer algumas alterações e liberar os equipamentos...

– Hei... você não pode mexer nisso aí – gritou Jonas, obrigando-me a retirar as mãos do teclado.

– Claro que posso mexer nesse equipamento... sou o responsável pela manutenção de todos os testadores da WhoWells Tek, não você. Não sei por que você está tão nervoso.

Percebi que quanto mais o provocava, mais ele literalmente espumava de nervosismo. Com certeza ele era um dos envolvidos na sabotagem. Por isso peguei um patch de nanico investigador e, disfarçadamente, apliquei-o em seu pescoço quando simulei um conciliador bater nas costas.

– Que é isso?!. – reclamou Jonas. Ele sentiu quando colei o pequeno patch e tentava tirá-lo a todo custo. “Sem chance, Jonas”, pensei. Mesmo que ele conseguisse, os nanomeks já estavam em sua corrente sanguínea e dirigindo-se ao neocórtex. Daqui a pouco ele estaria sob controle e pronto pra abrir o bico...

– Não... eu não quero... não posso... – gemia um roufenho Jonas.

– Calma, Jonas, vou te levar pra tomar um ar fresco – falei, mais para que os operadores ficassem tranqüilos e não desconfiassem de nada.

Apoiando Jonas pelos ombros, fomos pelo corredor lateral, menos movimentado. Precisava achar logo um lugar isolado para interrogar Jonas, pois o organismo dele estava reagindo fortemente aos nanomeks. O cara estava quase convulsivo, o que era reação muito estranha para um “nanicado”.

Para não dar mais bandeira, entramos rapidamente na sala da manutenção. Nesse horário, sexta-feira após o expediente, ela estava vazia. Coloquei o Jonas numa das cadeiras e sentei-me a seu lado para observá-lo melhor.

Ele já devia estar calmo, completamente submisso e pronto para ser interrogado. Ao contrário, Jonas gemia e balbuciava palavras sem pé nem cabeça, fazendo caretas de dor.

“É muco ou baba escorrendo pelo ouvido?”, pensei, notando que alguma coisa estava se mexendo lá...

– Cacete! – dei um grito abafado. Uma lesma... um verme, talvez, estava saindo do ouvido do Jonas. “Que nojo!..”

O verme caiu em seu ombro e daí para o chão. Estava vivo ainda, cheio de muco e sangue. Como o bicho parecia querer fugir, tentei pisar nele, mas ele empinou-se todo e ameaçou pular em mim.

– Ai... merda! – gritei, dando um pulo para trás, evitando que caísse em mim. Peguei um manual pesado que estava na mesa e joguei no verme.

Acertei em cheio. E, por garantia, pulei no manual e fiquei pisando várias vezes. Com muito cuidado, chutei o manual e vi que a lesma nojenta não iria mais atacar ninguém.

– Renó... Renó... – gemeu Jonas. Ele estava bem mal e parecia à beira da morte.

– Que era aquilo que saiu de seu ouvido, Jonas?

– Con...trole... eles... ai, dói muito... não vou agüentar mais, acho que vou morrer...

– Vai nada, rapaz... Quem fez isso com você?

– Farinelli... cuidado... – respondeu Jonas, num sussurro rouco tão baixo que quase não ouvi. Quase não sentia seu pulso e pensei em levá-lo ao ambulatório, mas desisti. O que eu poderia dizer ao médico do trabalho? “Olha, doutor, eu só ‘naniquei’ o cara e fiz um verme comedor de miolos pular do ouvido dele. Simples, né?”... Nem fodendo, meu...
Jonas facilitou meu lado e morreu ali, sentado e boquiaberto, com a baba eterna escorrendo pela barba... só que agora sem retorno.

Escondi o corpo atrás de um dos armários e sentei-me para me acalmar e pensar qual seria meu próximo passo.

Primeiro, aquela porra de verme era “alérgica” aos nanomeks.

Segundo, aquela “coisa” nojenta controlava seus hospedeiros.

E terceiro, quem pôs aquela “meleca rastejante” na cabeça do coitado lá atrás foi o Farinelli.

“Isso não é normal... humano... Será que o Farinelli é um yithiano?”, pensei assustado. Mesmo com o inibidor taquiônico, não estava preparado para enfrentar os tais alienígenas, tão falados durante meu treinamento básico na Academia. Tínhamos ouvido falar que os yithianos costumavam fazer trocas mentais, usando o infeliz do hospedeiro como “cavalo”. Mas nunca ouvira falar do uso de vermes para controle mental... É revoltante, argh!..

Escondi os restos da lesma esmagada num dos armários, esperando poder levá-los para análise na Intempol, depois que essa merda federal terminasse... se terminasse. Com sorte, talvez até pudesse conseguir um espécime vivo... o duro seria pegar aquela coisa nojenta sem ser atacado...

“Calma, Renó”, pensei com meus botões. “Tudo vai dar certo e o Farinelli não passa de um homem comum... filho da puta, mas comum... Não era à toa que o puto do gerente era conhecido como ‘Farinelli, il castrato’ ... Não... Ele se parecia mais com um yieldiano, de tanto se preocupar com metas de produção, rendimentos e toda essa merda que os administradores gostam de despejar em nossos ouvidos, enchendo-os como penicos... Se realmente existisse tal raça ruim, com certeza esse seria seu nome...”

Mesmo assim, precisava me garantir.

Fui até a baia do Farinelli. Liza, sua assistente, ainda estava lá.

Sozinha.

– Que é isso, mulher? O expediente já acabou e estagiários não ganham hora extra...

– Do jeito como andam as coisas por aqui, nem você vai ganhar – respondeu Liza mostrando, no rosto cansado, um sorriso sincero. – Preciso terminar só mais alguns relatórios. Mas... você não ia para a Estação do Chopp? Eu te vi saindo com a turma...

– É... tive que voltar para resolver umas pendências. – respondí. Ela tinha visto uma outra versão minha, um Renó mais moço e mais tranqüilo do que eu, que estava tremendo na base.

Resolvi mudar o rumo da conversa:

– Você sabe se o Farinelli ainda está na fábrica?

– Ele está na “masmorra”, com o Lúcio Flávio, há mais de uma hora – respondeu Liza indicando, com um movimento da cabeça, a sala em frente.

Nem sei quantas vezes já estive naquela “masmorra”, com o Farinelli soltando os cachorros em todos nas reuniões... que merda...

– Ah, sei... será que o esporro vai demorar muito? Preciso falar com “il castrato”...

– Você gosta de brincar com o perigo, né? Espere só mais um pouco, se não me engano... Olha lá, você está com sorte – Liza apontou para a porta da sala em frente, que se abriu. O supervisor de produção Lúcio Flávio saiu de lá, cumprimentou-nos e dirigiu-se rapidamente a produção. Pela cara dele, a “comida de toco” foi profunda...

– Vou nessa... valeu, querida – peguei em suas mãos e dei um beijo.

Aproximei-me da porta da “masmorra” e vi o Farinelli ainda sentado, falando ao celular. Quando me viu, perguntou-me:

– Renó, a placa “Daddy” da O’Nell suporta até que freqüência?

– Acho que até 1,5 GHz...

–Têm ou não certeza? – replicou Farinelli impaciente, mostrando o celular. – Preciso dessa informação para uma cotação urgente...

– ... até 1.52 GHz, barramentos SpitfireWire e AGP3D4X e chipset NOIA 88009 – e disparei um manual na cara da figura... ô cara folgado...

– Ok, é o suficiente – e repassou a informação. Desligou o celular e olhou para mim.

– Sim? – perguntou me encarando... Cara, aqueles olhos azuis e profundos sempre foram muito estranhos para mim, mas depois do que vi acontecer com o Jonas, eles pareciam ter um brilho nada natural. E quando ele se levantava, como agora, com aquele corpanzil de estivador, era difícil se manter calado. Falei qualquer coisa:

– Funcionou legal aquela configuração do seu modem?

– Ficou bom sim, Renó, obrigado. Só isso?

– Bom... na verdade estou com alguns problemas na área de testes – respondi encarando Farinelli. Por via das dúvidas, aproveitei para acionar o inibidor taquiônico, que estava disfarçado de caneta, assim como a mini-Glock. Não queria ser ‘cavalo’ de ninguém, não senhor!

– Renó, Renó, por que você está “escalando” esse assunto até meu nível? – perguntou Farinelli, voltando a sentar-se. – Só se for por razões administrativas... Não está com problemas de comunicação com os supervisores?

– De certa maneira – respondi, tentando não enrolar muito, mas sem abrir o jogo. E se o Jonas me enganou?.. Continuei:
– Alguém alterou, sem minha autorização, alguns programas de teste. Talvez seja preciso retestar os últimos lotes de produção.

– Desculpe, Renó, de novo, mas o que isso me diz respeito? Se é assunto técnico, resolva com o pessoal técnico, desde que não interfira com nossas entregas. Estou muito ocupado administrando essa porcaria de fábrica e tentando salvar nosso business – retrucou Farinelli, com sua voz mais ferina. – Onde está sua pró-atividade, meu amigo?

“E agora? O cara já estava ficando de saco cheio e eu não tinha obtido qualquer informação relevante sobre os sabotadores...
Mas que merda de agente eu era, que não sabia nem interrogar direito”.

– Agora, se me der licença preciso... hum... só um minuto, Renó – pediu Farinelli, atendendo o celular. – ... sim?.. estou na sala 5... quê? – e encarou-me de uma forma tal que gelou minha espinha. – ... sei... está aqui sim... certo, eu espero.

Ele desligou o celular e continuou me encarando, agora com aquele sorriso quase “diabólico” que todos conheciam.

– Sabe, Renó, esse seu “problema” técnico me fez lembrar nossa última reunião.

– Mesmo? Não estou conseguindo me lembrar de qualquer ligação... sinto muito, Farinelli, mas suas reuniões são tão ricas que me deixam completamente absorto por dias, tamanha a quantidade de informação relevante.

– Isso... vá brincando que eu ainda te ferro, engraçadinho...

– Que é isso? Onde está seu senso de humor?

– Já, já, mostro meu “senso de humor” para você... – replicou Farinelli. Ele levantou-se e foi até o flip chart, onde retirou pacientemente as folhas usadas, dobrando-as e guardando-as. Passou a mão em seus cabelos loiros, alisando-os e jogando-os pra trás, e me encarou.

– Além do mais, a bajulação não fica boa quando feita por quem não domina com perfeição essa arte... Acho que seu colega Luciano “Melecão” faz isso com mais classe que você.

– Tá certo... como sempre – e dei um sorriso pra amenizar o clima, cada vez mais pesado. – Ahm... mas voltando ao assunto da reunião passada...

– Em órbita, Renó... como sempre, em órbita. Vocês, ditos “engenheiros”, vivem nas alturas nessa fábrica, achando-se além dos problemas “mundanos” e nada técnicos... Isso é ridículo! – falou Farinelli num tom agressivamente irônico. – Esqueça-se de tudo o que você aprendeu e deixe de pensar como engenheiro, meu rapaz. Suas ações, pensamentos e até sua “alma imortal”... tudo isso, deve estar focado no business. Deixe de agir como um reles funcionário público, apoiando-se nas mais esfarrapadas respostas padronizadas... Só assim você resolverá os verdadeiros problemas da fábrica.

“Sei... É por obrigar os engenheiros a pensar assim que essa fábrica tá uma merda”, pensei em responder-lhe, mas achei melhor não provocar:

– Ah, agora me lembrei do tema da reunião...

– Bom para você – retrucou Farinelli. Nesse momento bateram na porta, que abriu mostrando o supervisor Lúcio Flávio, com o Altair Nogueira logo atrás. Esse último era responsável pela sala de manutenção e carregava uma pequena maleta metálica. –
Ah, ótimo... entrem, por favor.

“Não sei por que, mas acho que o barraco desabou”, pensei. “Será que o Altair descobriu o corpo do Jonas?.. Calma, calma...”

– Espero que você não se importe, mas ocorreram alguns fatos que precisam de esclarecimento. Por isso chamei os dois – falou-me Farinelli.

– É mesmo? Como posso lhe ajudar?

– Uma mão lava a outra, meu amigo. – replicou Farinelli, sorrindo ao esfregar as mãos. – Preciso que me responda uma pergunta, bem simples e direta: você sabe onde está o Jonas?

– Não sei. Na área de testes? – “Ai,ai,ai... a coisa tá ficando preta”, pensei. Até o Lúcio Flávio e o Altair, cada um me cercando e vigiando, pareciam estar mais próximos e desconfiados, parecendo os dois lados de uma morsa que não parava de me prensar.

– Espero uma resposta direta e você me vem com uma pergunta vaga... lamentável – falou Farinelli, meneando a cabeça. – “Pas de nouvelles, bonnes nouvelles”... talvez seja hora de criar as novidades. Revistem-no!

– Como é?.. Hei, cuidado!.. – reclamei em vão, pois enquanto o Lúcio Flávio me segurava, o Altair me apalpava e cutucava, retirando tudo o que eu tinha nos bolsos. Por sorte havia escondido meu cartão cronal e a Caixa Registradora... como se fosse sorte ficar preso nessa LT com três potenciais assassinos...

– Ele está limpo – disse Altair.

“Parece que eles nem notaram que o inibidor taquiônico e a mini-Glock estavam disfarçados de simples canetas” – pensei, agora mais confiante, pois sabia que não enfrentava yithianos ou coisa parecida . “Ótimo! Agora só preciso jogar minha cartada e dar umas blefadas.”

– Posso saber a razão dessa violência toda?

– Tenho quase certeza que você está mentindo e matou o Jonas – retrucou Farinelli, que mexia na maleta aberta.

– Brincou? Ele morreu?.. Como?..

– É ridícula essa sua tentativa de me enrolar, Renó. Além de não saber puxar o saco direito, você é um péssimo mentiroso. O Altair já encontrou o corpo do Jonas, que foi visto pela última vez com você e passando muito mal... e encontrou também os restos disso – e tirou da maleta um cilindro translúcido, com algo se mexendo dentro...

“Fodeu!.. Dou meu cu na praça se aquilo não for um daqueles vermes que infestavam a cabeça do Jonas” – pensei
preocupadíssimo. Precisava ir rapidinho para o plano B, e desligar o inibidor taquiônico seria o primeiro passo. Fui pegando minhas coisas na mesa, como quem não quer nada, e desliguei o inibidor. “Puxa conversa, Renó, enrola...”

– Que é isso?

– Digamos que isso irá ajudá-lo a soltar a língua, tornando-o fiel aos nossos propósitos – disse Farinelli, destravando cuidadosamente o cilindro, ao mesmo tempo em que usava uma pinça para pegar a coisa movente. Ele tirou o “verme”, que se mexia e coleava nojentamente na ponta da pinça. – Infelizmente, o “hospedeiro” troca sua criatividade pela lealdade incondicional... Mas no seu caso, acho que sairá ganhando.

Farinelli estava diabolicamente alegre e feliz, quando aproximou aquela “coisa” de meu rosto.

Quase surtei, quando vi “aquilo” tão perto. Segurei a ânsia de vômito e subvocalizei os comandos do plano B: “Link B, memorizar, ativar”.

Fechei os olhos e ouvi os estampidos secos. Três.

Abri os olhos a tempo de ver uma coisa inacreditável. Foi tudo muito rápido, mas pude ver claramente Lúcio Flávio e Altair caindo e desintegrando-se no chão ao meu lado. Parecia um sonho louco e teria me perdido nele, não fosse o Farinelli me empurrar com força em sua tentativa de fuga. Dei um chute forte em suas pernas, fazendo-o desequilibrar-se tempo suficiente para pegar a mini-Glock que caíra no chão.

– Pode parecer pequena, mas é mortal – disse, enquanto mantinha Farinelli na mira da caneta-pistola. Ele fora ferido no ombro mas, estranhamente, não sangrava nem parecia sentir dor alguma. Mesmo assim não podia vacilar com um cara tão perigoso.

– Agora você vai me acompanhar, meu chapa. E fique certo que eu vou te espremer tanto que, no final, você estará falando tão fino que fará jus ao apelido, seu castrado de merda!

Inesperadamente, Farinelli sorriu tranqüilamente como se não estivesse sob ameaça. Encarou-me com aqueles olhos azuis profundos e sinistros, deu uma piscadela e falou:

– Hum... estou gostando muito mais de você agora. Manipulação temporal... Então você é mais que um simples e pedante funcionário subcontratado pela Intempol, heim? Ótimo!

O puto falava com aquela voz suave e pausada que sempre usava em reuniões, como se quisesse mesmo nossas “almas”. E o pior era que ele estava vindo em minha direção.

– Para trás, coisa ruim, não estou brincando!

– Nem eu, Renó – retrucou calmamente Farinelli. – Posso mostrar-lhe como “nós” somos melhores que a Suntronics...

Eu devo ter me distraído com a conversa mole, pois ele já estava quase sobre mim. Fiquei tão assustado que atirei na hora.

O dardo entrara pelo olho esquerdo.

E novamente, para meu espanto, vi uma “pessoa” desintegrando-se completamente, deixando apenas uma mancha escura no chão.

“Pronto”, pensei. “A merda está feita e não tenho muita coisa para informar... Vou levar o que for possível e deixar o resto para a turma da limpeza”.

E saí da LT.


* * *

– Foi assim que aconteceu – disse Renó, finalizando seu relatório. Aproveitou a pausa para colocar na mesa uma pequena e transparente caixa de coleta biológica. – Estes são os restos do “verme” que infestava o crânio de Jonas. Espero que sirvam para alguma coisa.

Todos examinaram cuidadosamente as amostras.

– Obrigado, Renó – completou Parmegianni e dirigiu-se ao comissário Fraga. – O que você acha? Parece que confirma sua suspeita.

– Quase. Como nenhum dos sabotadores foi apreendido, vivo ou morto, devo confiar apenas nas palavras de Renó. Isso sem contar com o uso inusitado dessas criaturas – Fraga apontou as amostras na mesa. – Renó, você pode responder-me algumas perguntas sobre os sabotadores?

– Claro.

– Ótimo... Você pode dizer se eles tinham batimentos cardíacos? Se eles tinham alguma deformidade ou mutação nas mãos?

– Bem... não tive oportunidade de segurar os pulsos mas... sim, os três tinham o dedo mínimo um pouco torto, não é Luciano?

– É verdade... agora que você falou, sempre fiz o possível para não mostrar minha curiosidade “mórbida” sobre esse assunto, quando estava perto deles. Mas, e daí? Ainda não tô entendendo nada...

Fraga acendeu mais um cigarro, soltou uma longa baforada e continuou:

– Não é a primeira vez que encontramos esses seres. Foi no site matriz da Scoville Electronics, uma de nossas firmas de fachada em San Diego. D. Vincent, um de meus agentes, auditava as contas dessa empresa quando teve um encontro quase fatídico com eles. Desde então, vem vasculhando e recolhendo tudo sobre esses seres. Como agora foi a primeira vez que os vimos usando ceti-eels, tudo indica que não são da Terra.

– Ceti o quê? – perguntou Melecão.

– Pelos restos que o Renó trouxe e pela descrição dos sintomas, são ceti-eels, moluscos de areia de Tau Ceti-A5. Quando entram na tuba auditiva, logo procuram alojar-se na cóclea como que para alimentar-se do fluido interno. Todo esse processo
é obviamente muito doloroso e fica ainda mais se o hospedeiro ficar agitado, irritadiço. Por isso esses ceti-eels são muito usados para tortura e interrogatório, quando os algozes incitam os hospedeiros à obediência compulsória, que por sua vez aumenta o fluxo de anticoagulantes excretado pelos ceti-eels, que aliviam a dor, etc...

– Vocês usam isso... essas “coisas” em seres humanos!?.. – questionou Melecão, com cara de espanto.

– Eu expliquei o processo fisiológico, não disse que usávamos os ceti-eels. Temos métodos mais eficazes – replicou Fraga, que o olhava estranhamente por entre a fumaça do cigarro. Melecão achou melhor não se aprofundar muito nesse assunto:

– Tá legal... Mas por que esses alienígenas querem acabar com a Intempol?

– Ninguém disso isso – replicou Fraga. – Eles queriam apenas destruir a Suntronics. Tudo não passou de uma guerra de mercado.

– Como assim?

– Essa eu posso explicar – retrucou Parmegianni. – Eles queriam desacreditar a Suntronics, como fabricante de placas para a Intempol, favorecendo outra montadora que ainda não conhecemos. E com a performance muito irregular nos últimos lotes de GoogolPlex, já estávamos pensando em mudar de parceria. Resumindo, nada mais que concorrência... desleal, é claro.

– Que sacanagem! – reclamou Melecão, que cutucou seu colega Renó. – É, frutinha, parece que vamos mudar de endereço de novo...

– Lembre-se que foi por sua causa, Luciano – retrucou Parmegianni.

– É mesmo, seu boca aberta – replicou Renó.

– Eu sei, eu sei... mas me explique uma coisa, Renó. Como você enviou aquele palimpsesto, se estava preso naquela sala? E como o Farinelli e seu bando foram eliminados?

– Foi um ato desesperado, mas não havia jeito – disse Renó. – Quando beijei a mão da Liza, aproveitei para injetar-lhe alguns nanicos. Um deles, de persona, fez um download de minha mente, transformando-a numa extensão minha por tempo suficiente para enviar o palimpsesto...

– Humm... seu implante deve ter adorado essa experiência de “ser mulher”...

“Gordo broxa”, falou Renó, mexendo os lábios sem emitir qualquer som e continuou:

– ... E um nanico de RF, que fez crescer um micro-receptor no nervo ótico dela. Foi assim que passei as tetracronos, tornando os três meliantes alvos perfeitos para as cronobalas...

– Ah, então foram cronobalas – comentou Melecão. – Mas o Farinelli não foi eliminado de imediato...

– Travei os alvos no crânio de cada um, mas quando o puto do Farinelli aproximou aquela “coisa” rastejante de meu rosto, me assustei e fixei o alvo no bicho.

Ao chegar nesse ponto, Fraga resolveu intervir, falando diretamente com Parmegianni:

– Bom, acho que podemos encerrar essa reunião e considerar a missão um relativo sucesso.
Parmegianni entendeu a mensagem e levantou-se.

– Claro, claro... Renó, você ajudou-nos bastante e arriscou-se além do exigido em sua descrição de cargo... Obrigado. – Virou-se para Melecão – Para você também... apesar de tudo.

– Ah, obrigado pela lembrança, chefinho... “apesar de tudo”...

– Não abuse de minha paciência pois você saiu no lucro, rapaz. Por hora, vocês estão dispensados e podem voltar às suas atividades normais.

Melecão e Renó saíram então, deixando-os com todos os problemas técnicos e administrativos advindos da última missão.

– Não vejo a hora de molhar o bico no chopp e esquecer toda essa zorra...

– O quê!.. mas você é um gordo escroto mesmo... Meteu a gente nessa confusão toda e pensa que com cerveja tudo fica melhor e acaba bem. Ah, vá pra porra, meu!

– Ih, acho que magoei nosso “agente-de-campo-pelego”... Como é mesmo? Deixe-me ver... “arriscou-se além do exigido”... Me engana que eu gosto, frutinha. Aposto que você adorou implantar-se na estagiária, heim?

– Você é doente, cara! Nunca mais voltei a vê-la depois que saí da sala 5... e vá se foder!

– Uuuhh, que excitante... mas deixo pra você, não sem antes lhe receitar um relaxante muscular... 20cc de piroculina na veia bostérica.

– Só fala merda... gordo nojento!

E assim, como sempre, continuaram trocando “amabilidades” até chegarem à sala de transição mais próxima. Subiram na plataforma e quando se preparavam para saírem da dimensão da Empresa, foram interpelados pelo esguio robô HK24:

– E aí, como estamos? Expurgaram alguma LT?

– VÁ À MERDA, HK!! – gritaram Renó e Melecão quase ao mesmo tempo, antes de desaparecerem da plataforma, deixando o pobre e disfuncional robô HK24 com os leds faciais num vermelho muito intenso.


* * *

Melecão e Renó chegaram na Estação do Chopp a tempo de ouvir o final de outra “oração da cachaça” do Walney:

... Ventanu num tá;

Capim num mexi atoa;

Peixe num é purque num tem lagoa;

VEM NIMIM, COISA BOA!!

– Muito legal... nem me esperaram, porra – reclamou Melecão, olhando invejosamente para os vários copos vazios de pinga sobre a mesa.

– Ah, meu chapa, não deu pra esperar vocês terminarem o “boquete” lá no banheiro – falou um dos engenheiros.

– É ruim, heim? – retrucou Renó, já sentado e a procura de bebida. – Garçom!.. mais um... quantos?.. mais quatro chopps...

Ficaram assim, divertindo-se e bebendo, até que Melecão recebeu um bilhete de uma daquelas crianças que vendem rosas nos bares e restaurantes.

– Obrigado, querida, compro suas flores outro dia, tá?.. Mas deixe-me ver esse “torpedo”...

No papel estava escrito: “A ignorância não é abençoada!”

– Mas que merda de bilhete é... – começou Melecão, quando foi interrompido por uma dor de cabeça muito intensa. “Ah, não... é uma Apresentação...”, pensou. Mas dessa vez era diferente, como se suas memórias estivessem duplicadas.

Melecão olhava para seus amigos, para o bar e para todos os lugares, como se estivesse procurando uma âncora, um marco para guiá-lo. Mas o mundo exterior passava por seus olhos como num filme em câmera lenta, bem lenta.

Foi quando percebeu que uma mulher muito linda, parada num canto do bar, olhava-o com interesse. E parece que o mesmo ocorreu com ela, pois vinha em sua direção. Enquanto ela caminhava, Melecão viu-a atravessar várias pessoas como se fosse um fantasma.

– Ou estou no Céu ou isso tudo é uma simulação... – sussurrou.

– Digamos que é um pouco de cada – replicou a mulher. Era a morena de olhos verdes mais linda que o Melecão jamais vira. – Pode me chamar Sonia Priantii, ou pelo menos o self-prog dela.

– Posso te chamar de anjo, gata... tesão?!

– Fique a vontade, desde que me escute. Você recebeu uma sobreposição de implante de persona. Você tem memórias de duas LTs.

– Peraí, que papo é esse?

– Você foi sacaneado... fui bem clara agora?

Melecão entendera muito bem a última frase. Era como se existissem dois dele ao mesmo tempo. Quando ele e Renó saíram da
Estação do Chopp, deixaram vários amigos que agora não mais existiam ou já não trabalhavam na Suntronics. Nessa LT, Nando morrera num acidente de moto, Saulo e Ortega saíram da fábrica há meses e nesse exato momento comemoravam o bota-fora do Walney, não o do Ortega.

“O mais louco em tudo isso é que aqui estou casado há muito tempo com Carina, a mulher da minha vida que me deu uma filha linda, Mariana”, pensou Melecão. “Mas me lembro também claramente que sempre fui solteiro e namoro a gostosa da Márcia Moretti”.

– Sinto mas a Márcia que você conheceu não existe mais em qualquer LT. Eles a levaram para a Prisão.

– Como você leu meus pensamentos?

– Haja paciência... eu já estou em seus pensamentos, meu querido. Sou um simulacro, esqueceu?

– Tá, tá... Eles quem? Quem são esses filhos-da-puta do caralho?!

– A Empresa, colega.

– Por quê? A gente dá o sangue pela Intempol e recebe isso...

– Porque foi o melhor para eles, o mais prático, o mais barato e o mais conveniente. Resumindo, eles assim o quiseram e pronto.

– Mas o Parmegianni teria nos avisado para sair da LT antes de qualquer alteração...

– Ele sabia e não fez nada porque é pau-mandado. Você sabe como é...

– Sei... quem tem cu, tem medo...

– Não diria com essas palavras, mas você acertou em cheio no “espírito da coisa”.

– E com certeza o escroto do Fraga fez a cabeça dele...

– Acho que não. A conivência do Parmegianni comprou-lhe uma já cobiçada promoção para o Departamento M .

– Ah, brincou... desde quando o Parmegianni se interessava pelo depto. de “Merda”?

– Desde que viu que a tecnologia usada pelo depto. T é low profile... fim de carreira, meu querido...

– Ah é? Pois foi com essa tecnologia que o velho Armstead-González viajou no tempo pela primeira vez e nos deu a
Intempol...

– Pois fique sabendo que o último crono-salto não será feito com “essa” tecnologia, “Melecão”... e quanto ao estabelecimento
da Intempol, se eu pudesse crono-saltaria a tempo de avisar Armstead-González sobre as cagadas que fizeram com sua criação. Mas meu self-prog não está aqui para discutir esse assunto, por isso vamos ao que interessa de fato. Você foi traído pela Intempol e eu estou lhe dando a chance de revidar. Aceita?

– Caso contrário?..

– Não acontecerá nada com você, fisicamente. Mas seu mnemoimplante, sua segunda persona, será sumariamente apagada... bem como essa nossa conversinha, é claro...

– Ok. O que não entendi picas é o que você ganha com tudo isso? Por que você precisa de mim? Por que você quer destruir a Intempol?

– Nossa, como você é afobado! Você é assim na cama?

– Se quiser me conhecer na intimidade, peça para a Sonia Priantii original me ligar, gata...

– Eu já conheço sua “intimidade”, fofo, estou nela agora... e, que eu saiba, você broxou com a Márcia Moretti...

– Cacete, por que todo mundo vive me lembrando de algo que não fiz, porra?!

– Ah, é... verdade... Quem sabe um dia nós consigamos recuperar essas memórias perdidas, heim?

– Você sabe onde pode “enfiar” essas tais memórias... Tá, foi mal, desculpe... É que isso tá me deixando louco. Agora, por favor, poderia responder minhas perguntas?

– Ok, você está perdoado, menino mau... Reta e direta, então. Não pretendo destruir a Intempol, mas trazê-la de volta às origens. Preciso de pessoas como você e o Renó, que conheçam os procedimentos da Empresa na palma da mão e tenham grande capacidade técnica. E, finalmente, o que eu ganharei com tudo isso... ora, Poder! Por hora, é só isso que você precisa saber. Satisfeito?

– Humm, nas próximas eleições meu voto será seu... Sabe, sinto que você tá me enrolando, mas fazer o quê... Tá bom, eu topo.

– Ótimo. Seu implante foi permanentemente fixado. Preciso ir, meu querido. Como self-prog, estou no fim, mas iremos nos encontrar outras vezes. E não tente me procurar. Obviamente não como Sonia Priantii, uma das muitas identidades que uso.
Tchau!

Melecão sentiu de novo aquela dor de cabeça e uma desorientação leve. Quando se sentiu melhor, viu que ainda segurava o bilhete. A seu lado, Renó também segurava um papel e olhava para Melecão como se estivesse acordando.

– Você também? – perguntou Renó, numa voz meio esganiçada. – A tal de Sonia falou contigo?

– Falou e eu topei a parada.

– Eu também, óbvio. Não sei o que “sua” Sonia mostrou, mas minhas novas... velhas?.. memórias me deixaram completamente embriagado. Cara, nessa LT o Dú nem existe...

– Essa é demais! – reclamou Melecão. – Perdi a mulher mais gostosa da Suntronics e o frutinha está preocupado com a porra do Dú. Tenha dó, meu! Agora é que eu preciso mesmo encher a cara...

“Você ainda me paga, Parmegianni!”, pensou Melecão irritado.


* * *

Memórias... podemos nos perder nelas e mesmo assim não querer sair mais.

Mas eu precisava voltar para a realidade, pois tinha trabalho a fazer. Peguei minhas coisas e preparei-me para sair do quarto do hotel.

Ouvi barulhos no corredor. Peguei minha SigSauer e aproximei-me da porta. Quando ouvi as batidas, perguntei quem era e escutei a resposta em português:

– Sou eu, Tales.

Ele também falara corretamente a contra-senha. Mesmo assim, achei melhor abrir a porta com cuidado. Seu colega estava acompanhado de um homem alto e um pouco gordo, que me olhava sorridente.

– Podemos entrar?

Deixei-os entrar e convidei-os a sentar. O estranho aceitou de pronto, sentou-se perto da janela e lá ficou, encarando-me nos olhos como se fossemos velhos conhecidos. Como já estava ansiosa, decidi quebrar o clima.

– Esperava apenas por você, Tales. O que houve?

– Nada, nada... Conhece o agente Luciano Cardoso? Ele veio nos ajudar na missão.

– Não – falei, estendendo a mão para cumprimentá-lo. Ele tinha um aperto forte e seguro. – Prazer.
Ele continuou segurando minha mão e perguntou:

– Você não se lembra de mim?

Que pergunta mais estranha, pensei. Respondi curiosa:

– Não, sinto muito. Mas qual o motivo da pergunta?

– Só curiosidade. Você me faz lembrar uma pessoa muito querida.

– Sei... bom, já que você trabalhará conosco, acho que devemos repassar o escopo da missão.

Ele olhou para Tales, que meneou a cabeça concordando.

– Certo... certo... Nossa missão visa evitar o assassinato do Mahatma Nehru no “presente” atual, 30 de Janeiro de 1948 dC, com a remoção prévia do extremista paquistanês Jamaal Hissarum dos jardins da Birla House... Posso falar uma coisa?

– Sim, continue.

Luciano largou o dossiê na cama, suspirou e disse:

– Sinto muito, mas sua missão não é essa...

Aquilo me abalou. Peguei minha arma e me preparei para o pior.

– Como assim?

– E se eu te falar que você foi enganada? Todo mundo sabe que nunca existiu um Mahatma Nehru e sim Mahatma Gandhi, que foi e “deve” ser morto, nessa mesma data, pelo extremista hindu Nathuram Godse...

– Pare já com isso – cortei-lhe a fala e olhei para Tales, controlando minha adrenalina – Que palhaçada é essa?

Foi aí que ouvi o tal Luciano falar a frase mais estranha e sem propósito em toda minha vida:

– “A ignorância não é abençoada!”

Por um momento fiquei um pouco tonta e com dor de cabeça. Quando voltei a realidade, notei um rosto sorridente me olhando. Eu conhecia aquele rosto.

– Lú?.. É você mesmo, Lú querido?

– Sou eu mesmo, gata. Seu Melecão do coração...

Quem diria... Estava abraçada com meu fofinho.

Eu voltara a ser Márcia Moretti, pelo menos as memórias da mulher que foi “deletada” de outra LT. Agora percebia também que a pessoa que eu conhecia como Tales era na verdade o Renó.

Tudo voltara ao normal... o mais próximo do normal que uma aventureira temporal teria. Pelo que ouvi do mnemoimplante,
Farinelli não gostara nem um pouco de perder a concorrência e voltara a atacar, com seus alienígenas, outro fabricante de placas... Eliminar “novamente” o cretino, essa era minha verdadeira missão.

Mas tudo ficaria bem agora... só precisava levar o Lú ao médico para resolver seu problema de ejaculação precoce...

Memória é uma coisa engraçada...


* * *

A Intempol© foi criada por Octavio Aragão em seu conto Eu Matei Paolo Rossi (em “Outras Copas, Outros Mundos”, editora Ano-Luz, 1998), bem como os conceitos fundamentais (como o uso do Cartão Cronal e da Caixa Registradora e o traje padrão da empresa). O conceito de níveis hierárquicos foi criado por Fábio Fernandes e Octavio; a explicação técnica (ou tecnobaboseira, technobabble... como preferirem) de como funciona a viagem no tempo foi criada por Paulo Elache e Carlos Orsi Martinho. Os Arquivos e a Biblioteca apareceram pela primeira vez na novela A Vingança da Ampulheta, de Fábio Fernandes (em “Intempol© - uma Antologia de Contos Sobre Viagens no Tempo”, editora Ano-Luz, 2000). A Prisão dos Homens que Nunca Existiram é criação de Octavio Aragão; ela recebeu o nome de Henry Armstead-González em Vingança... Armstead-González aparece pela primeira vez em A Revanche da Ampulheta, de Fábio Fernandes (editora Ano-Luz, 2001); os yithianos são criação de H.P.Lovecraft e foram apresentados ao universo da Intempol© como uma homenagem de Carlos Orsi Martinho em seu conto A Mortífera Maldição da Múmia (em “Intempol© - uma Antologia de Contos Sobre Viagens no Tempo”, editora Ano-Luz, 2000).

Essas e outras informações podem ser encontradas no site da Intempol©: www.intempol.com
Intempol© é copyright de Octavio Aragão.

A tight team: Interview with Chad Walker


Chad Walker is, alongside his twin Eric, one of the Walker Boys, two American illustrators and game designers who are beginning to win the American market with his work, an update of the “Image Style” of the 90’s. In their site, http://www.walkerboystudio.com , the brothers and their staff of designers build a new set of web based games which seems to be one step ahead in the market. Their experience in game products such as AGE OF KINGS, AGE OF CONQUERORS and AGE OF MHYTOLOGY gave them possibility to recriate the scenario of the American Civil War in their latest project, Civil War: War Between the States, that emulate the great battles of that time.

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CHAD WALKER – Here you go. Thanks for the great questions!


OCTAVIO ARAGÃO – The first time I saw a work by you guys was the first issue of the new version of PROPHET, a character created by Rob Liefeld that was a mix of Captain America, Rambo and Conan. How was that first contact with the industry and how you guys worked together in that story?

CW – That was an amazing experience to start off drawing Prophet in the comic industry. I remember the excitement in getting to draw one of the coolest characters Rob ever came up with (my opinion :D) Eric and I worked really well together in terms of art because we simply divided the pages up between each other drawing what ever parts interested us the most. I remember when Rob gave us the plot for the Prophet Storyline. Eric and I were talking with
him at the Florida convention and he told us that he wanted us to draw the Prophet book. He had us get paper and pencil in hand and start writing. He talked his way through the whole first issue while we wrote down everything. That was definitely a first and fun experience.


OA – You have obvious influences of the artists who worked for Image back in the 90’s, when Jim Lee and Marc Silvestri were the great reference in American Comics. Now, more than 10 years before the Image boom, how do you guys see their heritage? Was it good or bad to the Industry?

CW – I think what they did for the industry was great at the time. I think the direction they started heading was perfect in terms of creating a larger fan/reader base...but they as well as marvel and dc dropped the ball big time. Instead of continuing to be innovative and one step ahead, they topped off. Think about it this way, the comic industry is not competing book against book...it's competing against the movie industry, games, television, novels, etc. Comic books are entertainment so they fall in to a category in which the marketplace is flooded with exciting ideas and novelty. I personally believe that our forefathers of comics started something that
didn't exist, built up ideas and characters that would be remembered forever and then we had the generation of guys (Image) who surfed the wave of their work. The question is, did they simply surf and do a few extra tricks to impress the crowds or did they transcend and build the skateboard for times when waves weren't great. I think you can answer that question. You can only ride a wave for so long, but if you're innovative you'll always find ways to keep the motion going.


OA – You two seem to be great friends of Liefeld. Why none of the gigs you drew for him was completed, even when it was based in good stories and established characters like Youngblood and Prophet? And how do you deal with all that Liefeld bad press?

CW – We are all definitely great friends. In terms of the books, well... you would probably have to ask Rob about that, he has so many projects and stories going on that trying to keep up with what's next on his plate is a bit difficult for me to figure out. I personally would love to see those stories completed as well. Wonderful characters, stories and great art :).


OA – Your site is a very good promotional tool and based in a lot of fan based activities, sketches and technical tips like the “Picture and Texture of the Week”, but there’s a special link in there called “Civil War: War Between the States". Could you please talk more about it? Is it some kind of Alternate Reality Online game? Or is it something else?

CW – Great question! 'Civil War: War Between the States' is a Real Time Strategy game based around the American Civil War where the North and South fought passionately for what they believed to be God's will. Each side had strong beliefs and opinions on how they felt the country should be run. Walker Boys Studio is working on portraying the Civil War with all its strength and horrifying battles.


OA – The Walker Boys Studio have a staff of six creative minds related to comics, games, music and design. Tell us a little about your upcoming projects on this fields. How’s the working relation inside the WBS?

CW – The staff that makes up WBS is an incredibly tight team. We are all devoted to moving forward with our projects, while keeping everyone smiling with an occasional practical joke or two. =-) We have recently completed a new book that will be out in a few months from Wordware Publishers. Be sure to keep your eyes peeled for it.

Thanks Octavio. I appreciate the questions and a chance to chat with you on things I love talking about.


OA – Thank you very much, Chad. Hope we’ll be seeing more of the Walker Boys in the future.

CW – Take care and God bless.

domingo, 15 de junho de 2008

Cenas bacanas de Para Tudo Se Acabar na Quarta-Feira



Estas páginas são algumas das mais importantes da HQ. E o Manel não está fazendo feio... notem como as aulas de desenho anatômico ajudam a um ilustrador!

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Bons tempos aqueles: conto de Alexandre Soares

- Serjão?
- Fala, Botelho.
- Tô com um problema aqui...
- Diz logo qual é.
- Temos um recorrente aqui.
- É só prender o sujeito fora do tempo.
- Não podemos fazer isso.
- Porque não, droga?
- Olhe para ele.
Sérgio Petraglia segurou a foto. Era um rapaz de seus dezesseis, dezessete anos. Classe média. Parecia o tipo cujas roupas são escolhidas pela mãe.
- Não tem cara de cronoterrorista.
- E não é.
Serjão levantou a sombrancelha grisalha.
- Explica isso melhor.
Botelho estendeu a Serjão outra foto. Era uma moça bonitinha, com sardas claras, quase da cor da pele. Cabelos cor-de-cobre, ondulados, curtos. Olhos verde-acinzentados. Uns quinze, dezesseis anos.
- Uau.
- Uma graça, não é?
- O que tem ela?
- É a namorada dele.
- Com uma namorada dessas ele fica brincando de viajar no tempo?
- Na verdade essa foto foi tirada por um dos nossos agentes. É de 1924.
Serjão estancou.
- Posso culpar o moleque?
- E daí? A gente até entende mas não pode fazer nada. Vai que surge uma nova pessoa dessa brincadeira aí.
- Na verdade essa é a terceira vez que o detemos. Mas ele já foi para o passado MUITO mais vezes.
- E não criou uma nova LT?
- Ainda não. Ele levou tempo conquistando a confiança da família da moça. Não deu tempo de surgir nenhuma consequência grave, por isso demoramos a detectar o infeliz. Mas ele volta. SEMPRE volta.
- Conheço esse filme...
- Fui escalado para passar uma descompostura nele. O moleque chorou. E não foi de medo. Para ele parecia muito pior nunca mais ver a menina.
- Ih...
- "Ih" mesmo. Porque TODO MUNDO sabe que ele vai voltar. E vai chegar uma hora que não vamos poder fazer nada. Ninguém quer meter esse moleque no xilindró para sempre só porque calhou de gostar de uma menina que não devia! Sabe aquela secretária do terceiro andar, aquela que lê Sabrina e Júlia? Chora só de ver a gente puxando a figurinha para a cela.
- O garoto é do tipo romântico, não é? Vai levar muita patada da vida...
- E PORQUE ACHA QUE ELE FOI BUSCAR MULHER NO PASSADO? Eu perguntei a ele se não tinha mulher hoje em dia para ele ser obrigado a ir buscar no passado. Ele perguntou se eu tinha certeza que isso era uma boa escolha. Fiquei sem saber o que dizer, acredita?
Fazia sentido.
Serjão foi adolescente na virada do século vinte para o vinte e um. Não era um bom tempo para ser adolescente: das meninas bonitinhas mais acessíveis, boa parte escutava uma barulheira monocórdica com letras vulgares, tingiam o cabelo de um louro oxigenado tão falso que pareciam mais espantalhos, mesmo se fossem morenas ou negras, e em casos extremos gostavam de ser chamadas de "cachorras" ou coisa pior. Ao menos assim era como ele se lembrava. Ele odiava isso. Mas as garotas que fugiam desse maldito padrão, se não eram nerds gordinhas de óculos, ou eram malucas que se vestiam de preto e posavam de góticas de butique, ou - e esse era o caso mais doloroso - eram as patricinhas lindas que jamais dariam mole para ele.
Quando ele passou sete meses no ano de 1948, ele começou a considerar se o momento em que a mulher passou a poder usar calças compridas não foi o momento em que a humanidade passou da civilização para a barbárie. "Se era uma merda em meu tempo, imagine hoje..." pensou Serjão com seus botões.
- A gente tá tratando o caso com luva de pelica, mas daqui a pouco os cabeças vão se meter no meio. Com eles não tem papo. Se garfarem o garoto, já era.
- O que você pretende fazer?
- Pensei em deixar ele passar uma noite lá na prisão fora do tempo para ver se ele cria juízo.
- TÁ MALUCO? Se esse garoto entrar lá, NÃO SAI MAIS VIVO!
- E o que você quer que eu faça?
Serjão levou a mão direita ao rosto e começou a pensar. De repente, surgiu um sorriso no canto de sua boca.
- Eu tenho uma solução, mas é bastante irregular. E vai dar trabalho.
- Vai bagunçar a linha do tempo?
- Não. Pelo contrário, tudo vai ficar como se ele nunca tivesse posto os pés em 24.
- O que você pretende afinal de contas?
- Resolver dois coelhos de uma só cajadada.
- Como assim?
- Lembra do caso Delmiro?
Botelho arregalou os olhos.

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Mais uma vez André prometeu nunca mais viajar pelo tempo. Estava tranquilo. Porque ele sabia que o tempo só corre de forma paralela na cabeça de quem pensa assim. Ele poderia perfeitamente prometer à sua doce Anabel que voltaria no dia seguinte e esperaria pacientemente até a vigilância cochilar de novo. Ela sempre cochila, cedo ou tarde. E a cada reencontro, ele retornava mais apaixonado.
E três meses depois ele retornou - para o dia seguinte. A cada intervalo de meses para ele, cumpria o ritual de um encontro que para ela era diário. Às escondidas do pai, que era um homem bem conservador, ela costumava cobrir os lábios de um discreto carmim. Filha de seu Menezes casava virgem, e não agradavam a ele as novidades de comportamento e vestuário que os anos loucos trouxeram. Deixar Anabel cortar o cabelo curto já foi um grande ato de tolerância da sua parte.
Quando a viu, André procurou conter emoções exageradas. Ela cedo ou tarde teria que saber de onde ele veio. "Mas não hoje", pensou. Ela se vestiu de forma mais casual dessa vez, se emperiquitou menos. Ele respirou fundo - não queria deixar a emoção provocar nenhum deslize de sua parte - e se dirigiu para ela, feliz da vida. Atravessou a rua de paralelepípedos e gritou "Anabel?", interrompendo a caminhada da moça.
Ela estancou e perguntou: "Eu conheço você?"
Nesse momento André entrou em pane.
- Como assim, "eu conheço você?"
- Eu deveria reconhecer?
O coração de André disparava. Ele não entendia nada.
- Que história é essa? Sou eu, o André, isso é algum tipo de brincadeira?
- Sou eu quem deveria perguntar isso.
- Eu sou seu namorado, já esqueceu?
- Namorado? Você é maluco ou algo assim?
- Olha, eu quero saber o que está acontecendo - e nesse ato ele segurou o pulso da menina. Não deveria ter feito isso. Ela respondeu aos berros com um "me larga" e rapidamente ela estava dando gritos de socorro.
Aquele era um bairro familiar e rapidamente as poucas luzes que ainda não estavam acesas naquele final de tarde começaram a brilhar. André não conseguia processar mentalmente o que estava acontecendo, mas ele não era tão burro a ponto de não saber que seria linchado pela vizinhança em peso se não saísse correndo do local. Imediatamente largou o pulso de Anabel e saiu em desembestada carreira, procurando alguma viela onde pudesse se esconder. Isso não era fácil.
Quando ele se deu por seguro, atrás de um monturo de lixo num beco, se deu conta que estava enganado. À distância, podia ver muita gente à sua procura. O seu Manoel do açougue, andando com o facão de corte na mão. Dona Jurema, a viúva do general, que manejava tão bem a carabina quanto o falecido - e metia mais medo à primeira vista do que todos os demais presentes. Gustavão, o mulato quarentão da oficina. Todos gente com quem ele se dava, gente de quem ele gostava. E agora isso.
E de repente, ainda oculto pelo lixo, ele viu a polícia chegar. E com eles, o agente Botelho da Intempol, acompanhado por outro agente que ele não conhecia. E ficou claro para André: apagaram suas visitas à 1924 do tempo. E lhe veio a mente que poderiam ter apagado até a sua PRÓPRIA existência do tempo. Quando ele voltasse, seus pais não o reconheceriam. Jamais teriam tido um filho. A idéia lhe encheu de calafrios.
Subitamente, uma mão pesada repousou em sua mão. André se sobressaltou.
- Calma, rapaz, ou essa gente vai te pegar. Não pense que é esse lixo que vai te esconder.
O dono da mão era um homem barbudo, de cabelos compridos, na casa dos quarenta ou cinquenta, cheio de rugas de expressão. Ele sorria e tinha um ar de imensa calma.
- Vamos logo antes que eles venham para cá?

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- Não ligue para o tamanho desse sobrado, rapaz. Ele é nanico mas é discreto, limpo e os vizinhos não enchem o saco. Todo dia vou à padaria de manhã e como um pão de primeira. Estou mal acostumado. Depois que se come o pão de 1924, a comida de nosso tempo parece alguma coisa reprocessada.
- Eu sei - respondeu, sorrindo, André. "Qual é o seu nome?"
- João Delmiro. Você não me conhece, não é?
André coçou a cabeça.
- E deveria?
- Não, não, não deveria. Agora estou notando. De que década você é, 1990, 2000, 2010?
- E você, de que década é? - retrucou, pouco confortável.
- Tudo bem. Não precisa responder. Se um estranho me levasse para sua casa sabendo que você é um viajante do tempo, eu também desconfiaria que pudesse ser um agente da Intempol.
- E você acha que eu poderia ser um?
- Você é um garoto - disse Delmiro sem deixar de seguir seu caminho para a cozinha. O café estava quase pronto. O cheiro era muito bom.
André não respondeu. Sentou num dos caixotes que se amontoavam na sala desorganizada - até porque não havia nenhum sofá. O mobiliário era parco. Delmiro voltou com duas xícaras de um café excelente e quando o rapaz estendeu sua mão, o peso do caixote de madeira cedeu sob suas nádegas, rachando o tampo.
- Melhor eu sair daqui de cima...
André estancou ao ouvir o barulho da madeira quebrada atingir o metal de dentro da caixa. De repente lhe veio à mente o que aquilo deveria ser. Trêmulo, pegou a xícara. Delmiro ficou sério.
- Porque você veio ao passado, rapaz?
André não soube responder.
- E o que aquela moça que você agarrou tem a ver com isso?
André silenciou e Delmiro respirou fundo. Parecia ser um homem paciente. Ele se dirigiu para a caixa e puxou uma metralhadora.
- AK-8870. Coisa da década de 2060. Já era artigo velho quando peguei, nem traficante de morro usa mais essa coisa. Ia ser enviado para fundição, acredita? Obsoleto - e nesse ato ele engatilhou a arma - mas bem conservado. Muito bem conservado.
- P-porque você tr-trouxe essas armas... essas armas para... ahn...
- Vocês moleques não tem nenhuma noção de história, não é? - Sorriu Delmiro. "Você sabe o que é uma revolução liberal?"
- Acho que isso aconteceu na Europa do século dezenove... acho...
- Então você estudou em cursinho pré-vestibular. Melhor do que nada. Bem... Sabe que estamos em Estado de Sítio neste país, não sabe? Bom... dia cinco de junho vai haver um levante. O general Isidoro Dias Lopes e o Major Miguel Costa vão levantar suas tropas nesta cidade, e pretendem marchar até o Rio de Janeiro para depôr o presidente. O levante vai ser conjunto e contar com participação de quartéis no Rio Grande do Sul. Infelizmente o Artur Bernardes...
- O presidente...
- Sim, o presidente... ele e as forças leais a ele vão ser avisadas. Vai começar aqui a história da Coluna Prestes. E eles tinham um ideário liberal, entende? Fazer no Brasil o que toda nação decente fez a partir da Revolução Francesa, cortar seus ranços feudais e pôr a burguesia industrial no poder.
André ouvia silenciosamente. Respirou fundo e perguntou:
- Vai armar a Coluna Prestes?
- Não. Eles tiveram contato com o socialismo justamente em campanha, percebe? Haveria o risco deles quererem implementar uma revolução socialista no Brasil. E todo mundo sabe para onde isso leva. Enquanto isso a burguesia industrial subiu ao poder com o golpe de 1930, mas o Vargas cometeu o erro de NÃO VARRER os velhos coronéis do mapa. No final estivemos sempre sob as mãos deles.
"Cronoterrorista", pensou ele enquanto ouvira Delmiro. "Meu Deus, eu tô no passado sendo perseguido pela Intempol e falando com um CRONOTERRORISTA!"
- Por outro lado imagine a idéia dos levantes nos quartéis do sul do país NÃO terem sido esmagados. Artur Bernardes seria derrubado e qualquer mudança de cunho ideológico seria implementada imediatamente. Duvido que Vargas não emerja como liderança após aquele ano de depressão internacional...
André terminou seu café. Mal sentiu o gosto. Se ajeitou para sair o mais educadamente possível.
- ... e você ainda não me disse PORQUE está aqui no passado.
De repente, três batidas secas foram dadas com violência na porta.
- Abram logo, POLÍCIA!
A porta foi arrombada em segundos e André foi rendido com facilidade: encostaram o rapaz na parede e rapidamente o algemaram. Delmiro deu mais trabalho. O homem correu, descalço, para a porta dos fundos e pulou a murada de trás, parando no quintal do vizinho. Não se deteve com o lamaçal, com galos, galinhas, nem, claro, com o cocô de galinha. Mas não pôde com o vira-lata enorme que protegia a casa. Antes de atingir o portão da casa do vizinho, algo arrancou com força um pedaço de sua coxa. Delmiro caiu no chão com um grito, e quando se deu conta, um bando de homens apontava suas armas para ele.
Enquanto isso, a polícia não perdeu tempo em enfiar André num camburão, cutucando seu corpo com o cassetete da mesma forma que se enfia uma roupa apertada dentro de uma gaveta cheia.

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O esporro que André ouviu dos agentes Serjão e Botelho não se comparava à sensação de abandono que ele sentia. Não havia sido apagado do tempo, mas poderia muito bem estar sujeito a isso. Foi posto para dormir na cela comum. Não conseguiu. Estava deprimido demais até para repousar. Mas de manhã até tomou o café da manhã com pão, manteiga e café-com-leite. Eram horríveis. Toda a comida lhe parecia horrível.
Após a refeição ele foi levado novamente ao gabinete dos dois agentes. Sentou-se, esperando por qualquer coisa. O mais velho, Serjão, foi o primeiro a falar.
- Você está enrascado, rapaz.
- Eu já falei tudo o que sabia.
- Sim, mas isso não muda o fato de que te pegaram na casa de um cronoterrorista cercado de armas de 2060.
André já não tinha mais esperanças. Estava com a resignação dos que sabiam que não há nada mais o que se fazer.
- Vão me apagar da história?
Botelho puxou um cigarro, acendeu, tragou e soltou uma baforada.
- Não, você teve sorte. Muita sorte. O Delmiro limpou tua cara. E mal ou bem você é culpado de contravenção, não de crime.
André respirou aliviado, pareceu encolher na poltrona. Mas Botelho o fuzilou com o olhar: "Mas não vai ficando aliviado não! Na próxima vez a gente não vai querer saber! Da próxima vez a gente revisa o caso Delmiro e te zera da história com uma cumplicidade nas costas! ACABOU! FECHOU! FINITO!!! E estou falando sério, FUI CLARO?"
- Agora se manda, rapaz. Não quero nunca mais te ver aqui na delegacia. E mais uma coisa...
Botelho puxou um envelope pardo e jogou nas mãos de André.
- Procura uma namorada mais nova.

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Anabel Menezes Garcia morreu lá pelos idos de 1981. Se casou aos dezoito anos, com um rapaz filho de portugueses, e foi a mãe de uma família grande, com vários filhos e filhas que também viriam a ter famílias igualmente grandes lá pelos anos quarenta e cinquenta. Aos trinta anos, ela já estava desgastada pela combinação de trabalho doméstico e várias gestações. Aos quarenta, ela parecia quase uma velha.
Mas ela foi muito querida pelos que a cercaram. Como esposa, como mãe, como avó. André não conseguia tirar os olhos de uma foto em especial, a que a mostrava velhinha cercada por toda a família. Tentou se imaginar velho, ao lado dessas crianças que não iriam nascer caso ele a levasse de seu tempo. Não conseguia.
Ele olhou para o jazigo da família do tal Garcia com quem ela se casou. Ela e o marido, lado a lado pela eternidade. Não era um pensamento ruim.
Assim que terminou de olhar para as fotos, as devolveu ao envelope de papel pardo que colocaria aos pés da lápide. Se sentia triste e solitário. Voltou-se em direção à saída. Era um fim de tarde ensolarado, mas as nuvens de chuva se aproximavam e eram anunciadas por uma brisa fria. Atravessou o portão do cemitério, que ficava numa rua de ladeira, e começou a descer.
Não percebia que dois agentes o observavam, de dentro de seu carro.
- Serjão?
- Hum?
- Já parou para pensar se isso fosse um filme?
- O que tem isso?
- Bom, ele foi visitar a lápide da velha e deixou o envelope lá pelo visto.
- E daí?
- Bom, nessas horas o normal seria que aparecesse uma neta ou bisneta dessa Anabel. Aí ela iria perguntar porque deixou aquelas fotos ali e como é que as achou. Aí ele iria achar ela bonitinha...
- E de repente a mesma atriz que fez a mocinha do passado poderia fazer o papel da "neta", apenas com um corte de cabelo diferente, certo?
- É, é por aí... e ele a convida para um café ou algo assim, ela não sabe porque aceita, e a câmera acompanha os dois se misturando à multidão enquanto se afasta.
- E todos vivem felizes para sempre.
- Seria um filminho vagabundo, não é?
- Se fosse um filme. E eu não pago para ver um filme com um final que a gente já sabe antes mesmo de começar. Já temos isso DEMAIS nesse ramo de trabalho.
Serjão puxou um maço de cigarros do bolso do terno. Respirou fundo.
- Foi um risco e tanto fazer o caminho dele cruzar com o Delmiro quando tudo estava já resolvido.
- Foi. Mas sabíamos que ele estava ali. Foi assim que ele foi pego na versão... hm, antiga da sua captura. E conhecemos o sujeito. Ele não ia matar o garoto.
- Poderia ter fugido e nos enrascado de vez.
- Mas deu tudo certo, não?
Ofereceu um cigarro a Botelho, e antes de acender o seu, usou sua extremidade para apontar para a direção de André, que esperava tranquilamente um ônibus em seu ponto. Duas meninas bonitinhas passaram por ele. Usavam bermudas de lycra. De longe podia se ver que uma tingira o cabelo de um vermelho que não existia na natureza. André estava cabisbaixo, mas não pôde deixar de olhar para as meninas enquanto elas se afastavam. Elas ainda eram bonitas de se ver. E ele não tirava os olhos delas.
Serjão sorriu com a cena.
- Vamos embora, Botelho, já fizemos o que a gente tinha que fazer - e com isso eles desceram a ladeira com o carro. "Tô a fim de te levar a uma padaria aqui perto. O pão dela não é como era há trinta anos, mas ainda tá muito bom."
- Não é melhor ir para trinta anos atrás e pegar o pão como era?
- Boa idéia. Acho que vou pegar leite na garrafa também.
E entraram numa rua deserta para voltarem ao passado mais uma vez. Botelho aproveitou, passou na quitanda e levou alguns tomates para sua mulher. Ela sempre se impressionava de como seu marido trazia tomates vermelhos e polpudos ao voltar do trabalho.

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