A lembrança mais antiga que tenho da minha infância é a visão do segundo pôr-do-sol da Prisão dos Homens que Nunca Existiram. A Prisão é agraciada com três sóis. Por volta das três da tarde o primeiro e menor deles se põe, causando a doce sensação de um candelabro que teve duas de suas velas apagadas; o dia fica mais suave e melancólico. Às sete da noite, o segundo deles - o maior do trio - se põe, deixando o lugar de certa forma parecido com a Terra em um fim de tarde de outono. Finalmente, o terceiro vai para seu lugar abaixo da linha do horizonte às oito e meia da noite, não sem antes oferecer seu espetáculo de luz avermelhada. Pode ser um sonho ou leve impressão, mas sempre achei que minha vida começou naquele momento, observando o segundo sol se pôr, através das janelas do Orfanato Casimiro de Abreu.
O orfanato fica a poucos quilômetros da Prisão, mas pouca gente sabe disso. Ninguém sabe os motivos desta localização. Há rumores, claro, mas é melhor não pensar nisso. Bem, o certo é que ter sido criado ali influiu no fato de que hoje sou um agente de campo nível 3, de uma estranha organização policial voltada para problemas temporais. Sim, tais problemas existem. O tempo, ao contrário do que pensam, é perfeitamente sondável.
Para a minha sorte - ou não.
Ter sido criado sob a supervisão mais ou menos próxima de oficiais da Intempol deixou bem claro para mim qual seria o meu futuro (estranho falar em futuro agora). Um policial temporal não devia ser tão ruim - ou ao menos eu assim pensava na época. Crianças realmente funcionam em outro nível de compreensão. De qualquer forma, fui parar em um orfanato por motivos óbvios: meus pais haviam morrido muito cedo. O curioso é que foi apenas aos trinta anos de idade, já com quase dez de carreira na Empresa, que percebi o óbvio.
Eu detestava o meu trabalho, odiava os colegas da Empresa e o que eu era obrigado a fazer “em nome do dever” (embora nunca tenha ficado claro a quem eram dirigidos tais deveres). Por isso, é curioso como somente após tanto tempo cheguei à conclusão mais lógica. Se eu era um agente graças à criação em um orfanato supervisionado pela Intempol, então eu deveria fechar o ciclo. Deveria voltar no tempo e salvar minha mãe.
Não foi difícil convencer “amigos” do Departamento G a me entregar a ficha completa de Maria Silvana de Souza. Nascida no Rio de Janeiro, no Humaitá, em 1954; morta em 1974, durante o parto. Meu parto. Asmática, debilitada, dona de uma saúde frágil devido a um coração deficiente, ela não resistiu aos rigores necessários para que eu viesse a existir. Era uma mãe solteira. Nem mesmo o Departamento G me informou coisa alguma sobre meu pai. Talvez ele fosse um dos prisioneiros que nunca existiram, o que confirmaria alguns dos inúmeros boatos a respeito da existência do orfanato.
Também não descobri muita coisa sobre ela própria, o que não é de espantar. O Departamento G mantém apenas bancos de dados genéticos, não biografias. Foi quando percebi que tudo dependeria do Departamento %. Se a Empresa era lenta e burocrática, então os funcionários do % eram os reis da burocracia. Eram estatísticos, advogados, matemáticos e físicos, responsáveis por calcular o número mais aproximado ou indicado a respeito de qualquer possibilidade temporal. Verdadeiros reis da probabilidade e, entre eles, para minha sorte, um antigo colega de quarto do Casimiro de Abreu. Foi ele quem me deu a informação definitiva: os problemas cardíacos de Maria Silvana de Souza, ao que tudo indica, não eram congênitos; haviam sido resultado de uma cirurgia de sopro no coração conduzida de forma displicente e irresponsável por um médico da saúde pública estadual. Malditos anos 50.
Era terminantemente proibido a qualquer agente alterar para ganhos individuais e sem permissão oficial de seus superiores qualquer detalhe de sua vida pregressa ou de seus antepassados. Mas não me importei com isso: se tudo desse certo, eu não seria mais um agente, porque não teria crescido entre as escuras paredes de forro de carvalho do Casimiro de Abreu. Eu teria uma mãe, viva até mais tarde, e provavelmente seria um médico, um engenheiro, quem sabe um pintor. Muitas possibilidades.
Não havia de quem me despedir e, certa noite, reuni minhas poucas roupas em uma bagagem de mão, meu cartão cronal, minha caixa registradora e olhei pela última vez para as paredes metálicas do meu dormitório na sede da Empresa. Não havia motivos para um adeus final. Digitei uma certa data de 1958 e parti.
Através de um delicado processo de eliminação de pessoas e papéis, fiz com que o incompetente médico do Hospital dos Servidores, perto de uma estranhamente imunda Praça Mauá, fosse substituído por um especialista mais velho, mais competente e confiável. Claro, fiz tudo secretamente, sem que me deixasse revelar. Estive no hospital no dia da cirurgia e não consigo descrever o que senti ao encontrar minha mãe, finalmente minha mãe, aos quatro anos de idade. Uma menina linda, extremamente magra e macilenta. E minha avó materna, que a acompanhava, deveria ter a minha idade. Maravilhas e maravilhas, acompanhadas por uma leve tensão. Em pouco mais de uma hora, os rumos da vida de minha mãe seriam outros e, dali a alguns anos, ela não morreria no parto. Eu não seria um órfão, não seria criado em meio às ondulações de três sóis e, o melhor de tudo, não seria mais um agente. Seria um médico; um pintor.
Meia-hora depois, minha mãe de quatro anos estava morta.
Não me lembro do que aconteceu nos dias seguintes, mas perambulei como um fantasma pelas ruas do Rio de Janeiro. E com certeza eu deveria ser menos que um fantasma: com Maria Silvana de Souza morta ainda criança, eu jamais existiria. Eu seria um dos homens que jamais existiram, prisioneiro de minha própria arrogância e estupidez. E então percebi o quanto eu era destreinado nestes assuntos: quanto tempo demorava para uma linha temporal se desfazer? Alguém da Empresa já teria detectado esta mudança? A morte de uma criança, mesmo sendo minha mãe, era fútil e insignificante demais para ser percebida por eles? Mas certamente seria percebida pelo mestre final, o Tempo.
Meu cartão cronal não mais funcionava. Havia travado no dia e hora exatos em que minha futura não-mãe havia morrido. Com o passar dos anos, fui perdendo pelas ruas estes objetos. O cartão cronal foi trocado por algumas notas de cinco cruzeiros. Meus poucos pertences se perderam ao longo das décadas pelas ruas do Rio de Janeiro, que mudava a olhos vistos, me ensinando, afinal, o que é o tempo. Uma vida passada em um estranhamente lento fast-forward. Guardei apenas a caixa registradora, como uma lembrança de uma época breve em que várias coisas foram possíveis.
Não se é médico ou pintor quando não se sabe se sua existência é real. A minha certamente não poderia ser. Como era possível? Eu já morri, ou melhor: deixei de existir. O que esta carcaça carrega em mendicância é apenas um espectro recheado de culpa, paradoxo, inexistência e destruído pelo casamento entre infanticídio e matricídio. Estamos em 2005 agora. Quem iria imaginar que eu iria completar meus 77 anos de vida em um passado tão distante? Não lembro meu nome de batismo, nem meu número na Empresa. Lembro apenas dos piolhos em minha barba e do nome de uma criança. Para minha surpresa, após tantas décadas, a caixa registradora voltou a “andar”. Não consigo digitar nada nela, mas ela indica uma contagem regressiva. Faltam três dias para... o quê?
Não me deixe descobrir sozinho. Se me encontrar pelas ruas - estou na Avenida Atlântica, na Cinelândia, no Humaitá, mas nunca, nunca na Praça Mauá -, fale comigo. Diga qualquer coisa. Dois dias e meio agora. Eu preciso saber antes de descobrir.
http://www.hyperpulp.com
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Arquivo do blog
-
▼
2008
(65)
-
▼
maio
(11)
- Facing taboo: Interview with Norman Spinrad
- Palestra no Fantasticon 2008
- A identidade secreta do quadrinho nacional: entrev...
- Casting a play: Interview with Kim Newman
- Vida de estagiária: conto de Ana Cristina Rodrigues
- Mais imagens de Quarta-Feira
- Fast-forward: Reward? Um conto de Alexandre Mandarino
- O protagonista de A Mão que Cria, por J. J. Marreiro
- A Macabra Morte de McMurdock: conto de Carlos Orsi
- Estudos de cenário em Para Tudo se Acabar na Quart...
- Different changes: interview with Harry Turtledove
-
▼
maio
(11)
7 comentários:
Nada mal, Manda! Bom vê-lo pelas intemplagas novamente!
Preciso como sempre, Manda. Imaginei que o conto daria me outra direção, e é sempre bom ler ficção que surpreende.
Errata:
"Imaginei que o conto daria EM outra direção..."
Mandarino é nosso Grant Morrison.
Mandarino vive!!!
:-)
"Uma vida passada em um estranhamente lento fast-forward."
Essa frase está ecoando na minha cabeça.
Lento e caótico. Gostei muitíssimo do conto, e acho que não conhecia o autor.
omo10Congratulações e felecitações de um compatriota! Bom, saber deste grupo de lutadores pelo reconhecimento do sci-fi tupiniquim, do qual mesmo não fazendo parte - somente hoje tomando conhecimento - desejo somar como mais um nome entre vós. Gerson Avillez, quase chará de um dos seus.
Bom, tenho três livros escritos sobre a temática de desdobramentos de viagens temporais, um de contos "paralelos" e dois onde trata-se dos confrontos da chamada TEMPUS e seus Chronologs, como são referidos os temponautas. Mais dois livros tem sido escritos uma continuação e outro chamado 'Crossovers Tales' do qual o conto publiquei em meu blog, visite, dê opinião e me siga! Fico muito feliz se pudesse ser um colaborador!
http://blog.gersonavillez.com/2010/06/conto-ilusoes-do-tempo.html
Postar um comentário