sábado, 26 de abril de 2008

A decupagem gráfica do movimento: entrevista com Ennio Torresan

Um dos talentos brasileiros atuando no mercado internacional de animação, Ennio Torresan, natural de Petrópolis, no Rio de Janeiro, e formado pela Escola de Belas Artes, UFRJ, tem em seu currículo desenhos animados produzidos para todos os grandes estúdios dos EUA e da Europa.
Em entrevista exclusiva, ele fala de suas participações em Madagascar, Bee Movie e Bob Esponja, e joga luzes em projetos futuros, como Madagascar 2 e uma futura exposição na América.

***

OCTAVIO ARAGÃO – O caminho de um ilustrador profissional é árduo e exige muita dedicação, isso todos nós sabemos, mas o seu caso é especial. De Petrópolis para a Europa, quais foram os pontos altos da carreira de Ennio Torresan, ilustrador, animador e designer?

ENNIO TORRESAN – Uma vez num onibus 222 Bananal, que eu pegava da rodoviária do Rio para o Fundão/Belas Artes-UFRJ em minhas descidas e subidas diárias Rio-Petrópolis, vi-me no meio de uma discussão entre estudantes de belas artes.

Alguns deles diziam que apenas se consegue subir na carreira através de apadrinhamentos e eu insistia que talento e dedicação eram as únicas armas necessárias. Nunca me esquecerei daquele momento no ônibus lotado, onde o colega ria de minha ingenuidade e eu prometia a ele que isso não ficaria assim. Hoje, analizando o caminho, vejo que uma coisa leva à outra, porém o ponto de partida é você. A qualidade de seus aliados é diretamente proporcional às suas qualidades como pessoa e como profissional, e é mesmo incrível ver seus limites se expandindo e coisas estranhíssimas acontecendo como BOB ESPONJA, EL MACHO, MADAGASCAR...

Mas aqui vão os pontos altos de minha carreira:
Meu primeiro quadrinho publicado; Jornal Quadra da Praia, em 1985.
Minha primeira capa da revista MAD, em 1987.
Pintura de backgrounds-cenários do FIEVEL, em Londres, a partir de 1990.
Produção e direção seguido de premiação internacional do projeto pessoal EL MACHO, 93.
Estreia como diretor em Hollywood, do CSPICY CITY,pela HBO, em 96.
Direção de storyboards e roteiro do BOB ESPONJA, em 98.
Premiação de um Emmy pela direção do TEACHER’S PET, da Disney, em 2003.
Storyboard de MADAGASCAR, pela DreamWorks, em 2005.


OA – O início com animação foi no curso ministrado pelo César Coelho, um dos idealizadores do festival Anima Mundi. Você ainda pretende trabalhar no Brasil, ou esta terra é um cenário por demais nebuloso para que você vislumbre alguma possibilidade? É sempre bom lembrar que a nossa publicidade paga muito bem e é acessível à animação...

ET – Pois não foi? Em 86, na Casa de Cultura Laura Alvin, foi um dos cursos mais legais que jamais havia feito. Ele ampliou completamente minha forma de ver as coisas. Já trazia comigo um pouco de ilustrador e quadrinista. Quando misturei isso à animação, em um ano virou EL MACHO. Não foi facil produzir e dirigir o EL MACHO. Não tinha quase grana, mas sim o apoio de muitos profissionais talentosos. Adoraria voltar ao Rio e montar um estúdio de animação. Adoraria ser responsável por formar e influenciar profissionais da mesma forma que fui influenciado. Dar oportunidades, criar mercado, fazer ponte internacional, ajudar a inventar um estilo. Ajudar o Brasil a entrar neste mercado de longas e seriados. Fiquei impressionado com a qualidade do trabalho dos animadores brasileiros atuais que tive a oportunidade de apreciar quando fui convidado a fazer parte do juri do “Dia International da Animação”.

OA – Qual o seu trânsito com os roteiristas dos desenhos? É uma relação parecida com aquela que existe entre os desenhistas e escritores de HQs ou é mais independente? Você já deu palpite no roteiro de algum desenho animado?

ET – Los Angeles é o unico lugar do planeta onde a profissão de animador para os grandes estúdios vem com sindicato, plano de saúde e contrato assinado, onde agentes e advogados das duas partes discutem o seu salário pelos próximos, as vezes, ate' cinco anos. Daí, a relação entre os diversos departamentos duma produção, seja ela para TV ou cinema, que tende a separar as pessoas.

Em televisão, o roteiro já vem todo feito e o tempo até a finalização para exibição é curtíssimo. Em longas, muda-se absolutamente tudo inumeras vezes, até o filme ser lancado. BOB ESPONJA foi um caso à parte. Nós mesmos escrevíamos tudo no storyboard. Tínhamos uma semana para fazê-lo, e mais uma outra para mudancas e ajustes. Era uma loucura dar sentido àquilo tudo e com sucesso. Este foi um desenho exaustivo. Ao fim de seis meses estávamos todos mortos. Steve Hillenburg (o criador) teve um colapso de nervos e ausentou-se por um mês. No entanto, o resultado foi fenomenal. Muita energia e criatividade. Era uma competição tremenda entre os artistas do seriado para ver quem fazia o outro rir mais.

TEACHER’S PET, um desenho que dirigi pela Disney posteriormente, era lindo mas extremamente entediante. Os roteiristas eram os criadores. Nunca os víamos. Uma pena. O projeto acabou sendo cancelado em um ano. Acabei ganhando um Emmy pela direcao dele e não pelo BOB ESPONJA, que era muito melhor. Vai entender.

Hoje MADAGASCAR me lembra muito a epoca do BOB ESPONJA, com um pouco mais de tempo para respirar. Trabalho atualmente no MADAGASCAR 2. Acredito que ficará bem divertido.

OA – O que você prefere fazer: os conceptboards (desenhos inspiracionais), os storyboards (decupagem gráfica do movimento da animação) ou a animação em si, ficar desenhando quadro a quadro junto com uma equipe (confesso que eu ficaria com primeira opcão. Ainda tenho pesadelos com as aulas de desenho animado da universidade, onde desenhávamos pilhas e pilhas de folhas de acetato sobrepostas numa truca)?

ET – Ha, ha... essa é ótima, Octavio. Bem, já fiz de tanto em animação. Passando por quase todos os departamentos. Já trabalhei em longa e TV, de infantil a adulto, de lápis e papel a photoshop. A coisa que mais me fascinou nisso tudo e ainda hoje nos desafia diariamente é a estória. Todo o resto vem em função dela. Um filme pobre em todos os aspectos ainda consegue se sustentar com uma estória envolvente. Me interesso muito pela atuação dos personagens também. Fundamental para que a estória se torne real. É isso que me interessa nos filmes acima de tudo. Não tenho medo de desenhar. Que sejam 500 por semana, não importa. O que importa é o efeito final.

OA – Você tem algum sub-gênero narrativo preferencial? Ou seja, prefere contar histórias de fantasia, humor, surrealismo, naturalismo...?

ET – Isso tem dois aspectos. Quando produzo para mim mesmo, prefiro o absurdo, o surreal, o inusitado, estórias adultas e irônicas. Mas quando produzo para o mercado, visto o chapéu da obra, e crio ou materializo aquilo que seu público gostaria de estar assistindo.

OA – Uma pergunta aparentemente nada a ver, mas que faz sentido desntro deste site: o que você gosta de ler? E o que você importa de suas leituras para seu trabalho?

ET – Leio muito história geral e livros técnicos. De ficção, acabei de ler a trilogia de Manfredi sobre Alexandre. Adoro uma história em quadrinhos bem escrita. Mas quando não tenho tempo de comprar nada novo, acabo relendo os mesmos livros. Os técnicos são muito importantes. Todos os anos releio um dos vários livros de Syd Field sobre roteiros, só para exercitar e acender aquele lado do cérebro de uma forma nova. Acabei de ler pela segunda vez TRUE AND FALSE, de David Mamet, que escreve um exercício sobre o ator e sua versão em criar seu personagem. Geralmente leio cinco livros ao mesmo tempo. ESPINOZA SEM SAÍDA, de Garcia-Roza (presente de minha cunhadinha), NICHOLAS AGAIN, de Goscinny e Sempé, muito bem-humorado e super simples. O quadrinista Charles Burns é um dos meus favoritos. Lorenzo Mattotti sempre produz livros fenomenais conjuntamente com escritores ou não. Uma época havia me viciado em LONE WOLGF AND CUB, tive de comprar a coleção completa. Al Capp é um clássico. Faço assinatura de duas revistas de fofocas; Rolling Stone e Interview que só tenho pacência para ler cinco minutos a cada vez que me sento ao vaso.

Importo isso tudo para o meu trabalho.


OA – E o que você gosta de ver? Sim, porque às vezes a gente gosta de fazer um determinado tipo de material, mas detesta consumir essa mesma coisa.

ET - Clássicos do cinema: Luis Bunuel, Kubrik, Tati, Fellini, Antonioni, Hitchcock, Kurosawa, Miyazaki, Peter Sellers, entre muitíssimos outros. Também o cinema independente mundial. Curtas de animação desconhecidos. Algumas novelas brasileiras, alguns seriados de TV; Lost, Os Normais, A Grande Família, Battlestar Gallactica. Gosto muito de ópera. Adoro assistir a atores ruins, eles são muito divertidos. Raramente assisto aos filmes que faço. Assisto desenhos animados para TV ou cinema apenas com função educativa, para saber o que os outros estão fazendo. Critico cada fotograma sem perdoar. É muito dificil relaxar e curtir um desenho desses. Vejo a ciência por trás da obra. Me contorço todo na cadeira quando penso numa solução melhor do que a que está sendo apresentada.

OA – Todas as coisas que vi você fazendo foram excepcionais, mesmo aquelas com as quais você não tinha a menor intimidade, como modelagem em argila. Como você lida com o o trabalho? Está sempre insatisfeito ou resolve relativamente rápido, partindo para outro desafio em seguida?

ET – Raramente fico insatisfeito hoje em dia. Acho que meu trabalho chegou num nivel de qualidade que sempre sonhei alcancar. E por isso, resolvo cenas rapidamente e sou confiante no que apresento. Porém, tento sempre me aprimorar. Este mercado tem gente muito boa e é muito competitivo. Não posso deixar de me atualizar.

OA – Já sentiu inveja de alguém? Já houve situações complicadas em sua vida profissional, do tipo concorrência desleal ou puxadas de tapete inesperadas?

ET – Claro. Qual é a profissão onde isso não existe? Inveja é uma coisa natural, tudo mundo sente. A forma como a pessoa lida com isso é que vai direcionar o crescimento dela ou não. Já me passaram a perna e já estive em situações onde tive de despedir um colega, apesar de ser muito amigo dele. Para sobreviver nos grandes estúdios de animação americanos (isso também vale para os pequenos) é necessário inteligência emocional e não apenas talento e dedicação. Quanto mais alto o cargo, mais delicada é a relação que você tem com todos a sua volta.

OA – E o amanhã, o que será? Com o quê Torresan vai nos presentar no futuro?

ET – Agradeco muito pelas palavras. Quanto ao meu trabalho na DreamWorks, este certamente estará sempre chegando ao público brasileiro. ABELHAS, de Jerry Seinfeld, e MADAGASCAR 2 serão os próximos filmes em que trabalhei e serão lancados em 2007 e 2008, respectivamente.

Quanto ao meu trabalho pessoal, tem sempre muita coisa acontecendo. Pintura, publicação do quadrinho THE GUY FROM IPANEMA, exposicao em abril, em Los Angeles, de meu último trabalho de desenhos gestual/figurativo, e a criação de longas que venho escrevendo e que um dia, com um pouco de sorte e muito trabalho pesado, espero transformar em realidade.

OA – Ennio, esta foi uma das entrevistas mais divertidas e enriquecedoras que já tive o prazer de conduzir para este site/blog. Você é a prova viva que, com talento e dedicação, tudo é possível. Boa sorte e muito obrigado!

4 comentários:

Manel disse...

nossa! ninguém comentou essa entrevista? caramba, eu nem conhecia esse cara! foi ele q deu uma entrevista pra globo (n lembro qual programa) sobre estar trabalhando no bob esponja? ou será q há outro brasileiro na equipe?
muito legal essa entrevista! confirma tudo o q eu acredito! tenho que ler coisas assim diariamente, pois a mentalidade do capixaba (ao menos os de classe média) é: vc só é bom quando trabalha na área indústrial, q garante uma boa aposentadoria por aqui. mas se ficar com olhos só pro lugar onde mamãe te criou, vc nunca vai ver o tamanho real das oportunidades.
já disse outras vezes, e está se tornando meu mote: esforços na área de animação serão bem recompensados em curto prazo.

Octavio Aragão disse...

Sim, Manel, o Ennio é o brasileiro trabalhando o Bob Esponja. Ele ´mesmo um exemplo para todos nós e eu bem que gostaria de trazê-lo para uma SDesign da vida...

Ah, falando nisso, VAI DESENHAR!

Manel disse...

uhaiuhaiuha... deixa cumigo, chefia!

uma palestra desse cara numa Sdesign seria duca, ein! nêgo ia ficar doido... maior parte da galera do DI na Ufes não visualiza esse mercado de animação mundial. :^D

Octavio Aragão disse...

Sim, seria mesmo. MAs creio que o espaço para animação na SDesign já foi ocupado - e muito bem,por sinal - pelo César Coelho, no ano passado. Mas nunca se sabe...

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