quinta-feira, 28 de agosto de 2008
Um projeto para A Mão Que Cria
O que parecia improvável está acontecendo. O designer e cenarista Alexandre César resolveu botar as mãos na massa e produzir um protótipo do Nautilus Rapinante (NR), versão pós-tudo do submarino do capitão Nemo, que é um dos cenários de meu romance A Mão Que Cria.
O projeto acompanha de pertinho o clássico modelo do filme 20 Mil Léguas Submarinas, de 1954, mas como se fosse produzido hoje. Estou curiosíssimo para ver a versão final do bicho (e, claro, fico aqui imaginando como seria a visão do Alexandre para o Celacanto, submarino do Ariano, o vilão da história).
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
A Mão que Cria e Destrói Mundos, por Lúcio Manfredi
Antes de começar a falar sobre A Mão que Cria, espero que o leitor tenha a indulgência de me acompanhar por um ou dois parágrafos de name dropping, sem nenhum outro propósito que não o mais puro exibicionismo intelectual. Como, além de exibido, eu sou elitista, não vou falar dos inevitáveis Baudrillard, Deleuze, Barthes e outros mela-cuecas dos pós-modernetes. Em vez disso, prefiro citar três críticos norte-americanos contemporâneos, não tão cotados (mas também não tão rabugentos) quanto Harold Bloom, mas que têm umas coisinhas interessantes a dizer. Com alguma sorte e outro tanto de boa vontade, pode até ser que forneçam alguns balizadores úteis para quando, depois de muita enrolação e argumentos tortuosos, finalmente chegarmos ao coração da matéria, que é o primeiro romance de Octavio Aragão (oxalá cheguemos lá!).
O primeiro deles é McHale, Brian McHale (está escrito na plaqueta), que, em Postmodernist Fiction, lança uma tese curiosa – a de que a literatura modernista está para o pós-modernismo assim como o romance policial está para a ficção científica. Segundo McHale, tanto o romance policial quanto o modernismo se concentram em questões epistemológicas ou, mais exatamente, em uma questão epistemológica (por acaso, a mesma formulada por Pilatos há dois mil anos): que é a verdade? Como podemos determiná-la? E, mais importante ainda, é possível determinar o que é a verdade? Se o detetive clássico, sherlockpoirotiano, sempre respondia a essa pergunta com um sim triufante (da mesma forma que o romancista do sec. XIX estava crente de ter apresentado um retrato fiel e objetivo da realidade), o modernismo de um lado e o romance noir do outro trataram de problematizar essa certeza ingênua, enterrando a verdade sob uma camada grossa e praticamente impenetrável de distorções subjetivas. Mas nem Faulkner, nem Chandler jamais questionaram que existe uma verdade objetiva, uma boa e sólida realidade concreta, por detrás de todas as distorções.
É esse questionamento que marca a guinada pós-modernista. A partir de Beckett (que McHale considera um autor de transição entre os dois períodos), o eixo se desloca da epistemologia para o terreno ontológico. Contrariando o lema de Mulder, a verdade não está lá fora, esperando ser desvendada ou escapulindo das nossas tentativas de desvendá-la. O mundo torna-se algo que precisa ser criado. O autor deixa de ser um detetive para se converter num demiurgo, e a escrita, em vez de ser um instrumento de decifração, passa a ser uma ferramenta de construção da realidade. O romance policial não serve mais como parâmetro para esse tipo de literatura. O pós-modernismo precisa de um novo paradigma, e McHale vai buscá-lo na ficção científica, com sua ênfase no world building e no what if como plot devices – tá, três anglicismos numa talagada só é uma espécie de recorde negativo, mas que culpa tenho eu se essas expressões costumam ser empregadas em inglês?
O leitor mais atento vai observar que, em última análise, toda obra de ficção (científica, não-científica, clássica, modernista, pós-modernista e o diabo a quatro) é sempre uma realidade construída pelo autor. Mesmo quando o romance proclama aos quatro ventos que foi Inspirado em Fatos Reais, como aqueles filmes que costumam passar na Sessão da Tarde. Mesmo que o escritor seja tão hiperdetalhista que não se esquive nem de descrever o cheiro da bosta dos cavalos nas ruas de Dublin num 16 de junho do século passado. Na melhor das hipóteses, trata-se de um simulacro da bosta dos cavalos, um simulacro que só existe nas e pelas palavras do autor. A ficção é sempre e necessariamente um ato de world building, e se McHale está certo em apontar o world building como a característica essencial da ficção científica, então um certo autor que nos concerne de perto aqui está coberto de razão quando diz que tudo é ficção científica. Mas, por outro lado, isso cria um problema: nesse caso, o que é que distingue a literatura pós-moderna das demais? O que nos traz ao segundo crítico que eu queria citar.
Não foi Patricia Waugh quem criou o termo metaficção. O mérito cabe ao romancista norte-americano William H. Gass, em um ensaio do início da década de 70. Mas foi Waugh quem se dedicou a explorar consistentemente o conceito e suas implicações, e Metafiction – The Theory and Practices of Self-Conscious Fiction ainda é o livro de referência sobre o assunto, aquele a que todo mundo recorre, cita e mete o cacete quando acha que essa coisa de “metaficção” já deu o que tinha que dar.
Eu não acho.
Como o subtítulo do livro já entrega, metaficção é uma obra que se assume como ficção. Todo escritor paira sobre o tohu-va-bohu da página em branco e cria seu próprio mundo, geralmente com retalhos de outras obras que o influenciaram (repito, porque é importante: geralmente com retalhos de outras obras que o influenciaram). Mas, dentro do paradigma da ficção realista, ele é obrigado, ou se obriga, a fingir que não. É um mundo de faz-de-conta, mas o autor faz de conta que é o mundo. Todos os esforços são envidados para dissimular o caráter factício da criação literária, a fim de gerar o que Coleridge chamava de “suspensão voluntária da descrença” – a boa vontade do leitor em fingir que acredita no que tanto ele quanto o autor sabem que não passa de um simulacro feito de palavras.
Existe um motivo para essa dissimulação consentida, claro. É ela que permite ao leitor projetar elementos de sua própria psique sobre as estruturas narrativas e identificar aspectos inconscientes de si mesmo com os personagens, o que é um dos principais motivos pelos quais a ficção (sob qualquer forma ou veículo) ocupa um papel tão importante na vida das pessoas. Isso já está implícito na própria palavra grega para “entretenimento”, psicagogia, que, cacófatos à parte, quer dizer literalmente “o que conduz a alma”.
Mas alguns autores começaram a se perguntar se esse pacto – que o escritor e teórico John Gardner chamava de sonho ficcional – é a única maneira possível de “conduzir a alma” por meio da ficção. Gardner era irredutível em sua convicção, compartilhada por um bocado de gente que ganha a vida escrevendo, de que fazer o leitor se lembrar de que está lendo uma obra de ficção quebra o sonho ficcional e expulsa o cabra para fora da história, mais ou menos como perceber que se está sonhando costuma fazer o sujeito acordar, frustrado. Mas existe um tipo de sonho, os sonhos lúcidos, em que a pessoa sabe que está sonhando e, mesmo assim, continua a sonhar. E os sonhadores lúcidos garantem que é uma experiência muito mais interessante e enriquecedora do que o sonho convencional, que se faz passar pela realidade. No budismo tibetano, inclusive, é uma das técnicas usadas para conduzir à iluminação, fazendo-nos perceber que o mundo mesmo não passa de um sonho ilusório.
Pois a metaficção é o equivalente literário dos sonhos lúcidos: “Metaficção”, diz Waugh, “é um termo atribuído à escrita ficcional que, de modo autoconsciente e sistemático, chama atenção para seu status como artefato, a fim de questionar a relação entre ficção e realidade. Ao apresentar uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritos não só examinam as estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também exploram a possível ficcionalidade do mundo fora do texto literário ficcional.”
Meu coração phildickiano bate feliz quando lê coisas como essa.
Para atingir esse objetivo, os metaficcionistas criaram ou deglutiram todo um arsenal de técnicas, a maioria das quais baseada na metalinguagem. Não vou fazer um inventório de todas, porque foi para isso que Waugh escreveu um livro inteiro. Mas quatro delas são particularmente importantes para o nosso tema (que, caso você já tenha esquecido, é o primeiro romance de Octavio Aragão, A Mão Que Cria): a intertextualidade, a mistura de personagens reais e fictícios, a paródia (ou pastiche) e o uso de formas “populares” (quadrinhos, romance policial, ficção científica, etc).
Intertextualidade é um palavrão que os críticos adoram e sempre mencionam com um ar de reverência transcendental. Mas o significado é muito simples: é quando uma obra cita ou emprega personagens, cenários e situações de outra. Tem esse nome porque, com isso, cria-se um diálogo entre os textos.
Paródia e pastiche não são exatamente a mesma coisa, mas quase. Em ambos os casos, trata-se de uma imitação consciente e deliberada de um outro autor, de um estilo, das convenções de um gênero ou de um repertório específico de imagens. A diferença é que o pastiche é quase sempre escrito como uma homenagem, enquanto a paródia tem intenções críticas ou satíricas. Quer dizer, a paródia tem um viés irônico, muitas vezes sarcástico, que está ausente do pastiche. Mas, na prática, nem sempre é fácil distinguir um do outro, e paródia e pastiche volta e meia se misturam numa alegre hibridização carnavalesca.
Um caveat importante: na linguagem coloquial, costumamos empregar “paródia” e “pastiche” num sentido pejorativo. No universo da crítica, porém, são duas técnicas importantes, centrais mesmo na prática da literatura modernista e pós-modernista. Para se ter uma idéia, os capítulos de Ulysses são pastiches de diferentes estilos literários, e os romances de Thomas Pynchon são todos paródias. De fato, boa parte da literatura contemporânea é feita de pastiches e paródias, muitas vezes de gêneros literários que os críticos de nariz empinado costumam classificar como “menores” – policial, terror e nossa tão vilipendiada ficção científica. Como de vez em quando até existe justiça no mundo, uma das consequências desses pastiches foi obrigar os críticos a olharem esses gêneros mais de perto, fazendo com que alguns deles – não todos (só os mais inteligentes) – percebessem que não existe nada de “menor” nessas formas de literatura.
A mistura de personagens reais e fictícios é a mistura de personagens reais e fictícios.
Metaficção é um conceito que se mostrou bastante útil para se pensar uma parte significativa da literatura contemporânea. Mas, sendo a cabeça dos críticos como é, toda movida por operadores binários (se a então não-b), logo se caiu num dualismo simplório entre, de um lado, obras metaficcionais autoconscientes e, do outro, narrativas realistas, preocupadas em contar uma história e fazer um comentário relevante sobre o mundo. Se um autor fazia parte do primeiro grupo, necessariamente estava excluído do segundo, e vice-versa. Foi quando nossa terceira crítica, Susan Strehle, levantou-se indignada, mandando parar com a putaria. Em Fiction in the Quantum Universe, Strehle lista uma série de autores claramente identificados pelos críticos como “pós-modernistas” – capitaneados por Thomas Pynchon e Donald Barthelme – e que, no entanto, não se deixam reduzir à bitola estreita que opõe a metaficção ao sonho ficcional: “Rompendo a dualidade falsa e restritiva entre realismo e anti-realismo, esses autores pós-modernos conseguem obter uma fusão original que transforma ambas as linhagens de sua herança literária.”
Strehle segue argumentando que a ficção pós-modernista procura aderir a uma concepção da realidade mais compatível com a visão de mundo produzida pela física contemporânea, uma tese interessante que ela desenvolve com altos e baixos, mas que não tem rigorosamente nada a ver com o peixe que estamos vendendo, de modo que, coitada, a participação dela acaba por aqui.
Finalmente, Foucault.
Eu sei, eu sei, eu sei. Foucault é um dos mela-cuecas dos pós-modernetes que eu prometi deixar de fora. Juro que fiz o possível para manter os pós-estruturalistas bem afastados destas maltraçadas, mas o que eu posso fazer? Esses malditos franceses são insidiosos e têm um jeito todo próprio de se insinuar subrepticiamente, feito um nevoeiro (que é como T. S. Eliot descrevia o estilo pré-pós-estruturalista de Montaigne, que levava Pascal à loucura).
E o que Foucault insinua subrepticiamente – feito um nevoeiro, pois não? – são as heterotopias. Numa definição sucinta, as heterotopias são espaços, reais ou imaginários, que justapõem elementos normalmente considerados incongruentes ou onde diferentes planos de realidade convergem sem nenhum tipo de ordenação hierárquica. Por exemplo, um romance no qual personagens reais e fictícios convivem lado a lado é uma heterotopia. Uma história que reúne personagens provenientes de diversas obras criadas por autores diversos, mais ainda. As heterotopias literárias normalmente se passam em um tempo e espaço míticos, e Foucault insinua que talvez o próprio mito possa ser considerado como uma heterotopia primordial, do tipo que ele classifica (por razões que não vêm ao caso, mas que são de ordem iniciática) como heterotopias de crise. Na literatura brasileira, a heterotopia por excelência é o Sítio do Picapau Amarelo, que apresenta todas essas características ao mesmo tempo.
Dois pontos que Foucault levanta são particularmente interessantes para nós. O primeiro é que ele opõe as heterotopias explicitamente às utopias e implicitamente às distopias, “posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa”. Elas são “a própria sociedade aperfeiçoada” (ou piorada, no caso das distopias) ou “o inverso da sociedade”. Já com as heterotopias, percebe-se, o buraco é mais embaixo e a relação com o suposto mundo real não é simétrica. Em vez de apenas amplificar ou reverter as representações que fazemos do mundo, a heterotopia desarticula seus elementos e os insere numa configuração totalmente nova. Fosse Foucault um alquimista e poderia dizer que a heterotopia solve et coagula.
Eu falei “suposto mundo real”, e não foi por acaso. Porque o segundo traço das heterotopias, que nos conduz direto e reto de volta à metaficção, é seu “papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada”.
Tá certo, dirá o leitor impaciente, tudo isto é muito bacana (ou não), mas quando é que você vai chegar ao que realmente interessa? Quando é que vai começar a falar sobre A Mão Que Cria? Bem, talvez seja hora de uma pequena confissão. Eu menti quando disse que pretendia fazer um exercício de name dropping. Seria mais correto dizer que foi um exercício de name undropping. Porque a verdade é que, até agora, enquanto fingia estar falando de McHale, Waugh e Strehle (e Foucault, que acabou entrando como Pilatos no Credo), não fiz outra coisa senão falar sobre A Mão Que Cria.
Se você leu o livro, e sendo o cara esperto que é, já deve ter percebido isso. Se não leu, está esperando o quê, menino? Vá ler já! Depois, não quero ninguém reclamando de spoilers!
Porque, sim, spoilers haverá e, para discutir o princípio de composição do livro, é preciso entregar de cara seu maior segredo, um segredo tão ominoso que o próprio autor se furta a declará-lo, limitando-se a apontar para ele por meio de alusões veladas e referências indiretas. E o segredo é simplesmente este: Octavio Aragão é um pseudônimo. Por trás dele, esconde-se a figura inominável do dr. Victor Frankenstein.
Todo mundo conhece a história. É um dos mitos de criação da (pós-)modernidade. Conta como o dr. Frankenstein criou uma nova vida reunindo e costurando pedaços de outros corpos, ressuscitando-os com a poderosa centelha de um relâmpago criador. Pois foi exatamente assim que Aragão construiu seu romance: com fragmentos de outras histórias, personagens descontextualizados, recontextualizados e animados por uma centelha criadora que os trouxe novamente à vida e que – com a devida vênia a Barthes e Foucault, cuja genialidade não os impedia de eventualmente mijar fora do penico – só se pode chamar de autoral.
E aqui temos, de uma pernada só, todos os conceitos que introduzi no início desta (im)pensata. A Mão que Cria é um romance de ficção científica pós-moderno que empreende a construção de um espaço (world building) composto pela reunião de elementos heterogêneos (heterotopia) e que se assume, da primeira à última página, como uma obra de ficção autoconsciente (metaficção). Escrito num registro que oscila entre a paródia e o pastiche (repetindo, para não deixar margem a dúvidas: no sentido técnico desses termos, sem nenhuma conotação pejorativa, muito pelo contrário), recruta seu elenco nos grandes clássicos da ficção científica e da aventura, especialmente do século XIX e primeira metade do século XX, com eventuais empréstimos de outros gêneros e linguagens – há, por exemplo, uma horda de zumbis que migraram dos filmes de George Romero diretamente para as páginas do livro. Dessa forma, a galeria de personagens – às vezes com seu próprio nome, às vezes disfarçados, outras vezes substituídos por um duplo (como o filho de Axel Liddenbrock, o protagonista de Viagem ao Centro da Terra, de Verne) – forma um verdadeiro quem-é-quem da cultura pop. A intertextualidade é o princípio de composição e o eixo estruturante de A Mão Que Cria, que dialoga não só com outros textos, mas também com a História-com-H-maiúsculo, aquela que fomos condicionados a acreditar que se opõe a ficção. Em consequência, a realidade consensual é profundamente desestabilizada pela inserção de elementos ficcionais.
Mais do que um ponto de divergência, a eleição de Júlio Verne como primeiro presidente da França em 1886 é emblemática da proposta do livro. Verne, H. G. Wells e Mary Shelley foram os primeiros autores de ficção científica propriamente dita e formam as coordenadas de A Mão Que Cria. Foucault fez a gentileza de nos informar que as heterotopias se opõem tanto às utopias quanto às distopias, e é disso mesmo que trata o romance: o universo heterotópico de A Mão Que Cria dramatiza o conflito entre as utopias tecnológicas de Verne e as distopias científicas de Wells (especialmente A Ilha do dr. Moreau), com a sombra de Mary Shelley pairando nas entrelinhas, como um espectro rondando as páginas do livro. Haveria muito o que dizer sobre esse espectro, mas não vou falar nada porque, afinal, spoilers têm limite.
Estilisticamente, Octavio Aragão filia-se àquele time de autores mencionados por Strehle e que apostam todas as suas fichas na convicção de que é possível fazer metaficção sem romper com o sonho ficcional. No caso de Aragão, a aposta é plenamente bem-sucedida.
De acordo com o bitolamento dos críticos, a operação intelectual necessária para decodificar as referências bloquearia a capacidade do leitor de se entregar à suspensão voluntária da descrença, tornando difícil que ele se deixasse absorver pela história. Essa dificuldade seria diretamente proporcional à densidade das referências, gerando uma espécie de buraco negro às avessas: uma vez ultrapassada a massa crítica, em vez de atrair o leitor para dentro de seu universo, a obra o expulsaria violentamente. Com uma metralhadora giratória de referências e citações, explícitas ou implícitas, o leitor de A Mão Que Cria é lembrado praticamente linha a linha de que está lendo uma obra ficcional. Se a equação simplória dos críticos fosse verdadeira, a história não funcionaria nem à base de promessas a Santo Expedito.
E no entanto.
O erro desses críticos – que, como boa parte das pessoas de formação humanista, costumam ser de uma ignorância crassa em matéria de ciências – é achar que a decodificação das referências é uma operação intelectual. Não é. A percepção de semelhanças e a identificação de analogias são funções do hemisfério direito do cérebro. De fato, o reconhecimento de padrões é a base da própria lógica do hemisfério direito. Acontece que é essa mesma capacidade de reconhecer padrões que transforma uma coleção de fatos atomizados em uma história, uma estrutura narrativa. Experiências de EEG mostram que, quando uma pessoa lê uma história, a atividade do hemisfério direito se intensifica e, reciprocamente, uma das habilidades comprometidas por uma lesão no hemisfério direito é a capacidade de compreender narrativas.
Além disso, o que John Gardner chamou de sonho ficcional, traduzido em linguagem de gente, quer dizer que o cérebro do leitor traduz o que está lendo em uma série de imagens que se desenrolam como um filme na cabeça dele. Puxando a sardinha para a minha brasa, o texto escrito funciona como um roteiro, uma série de instruções que o cérebro usa para gerar uma representação espacial, uma cena. E ganha um doce quem adivinhar em que parte do cérebro essa cena é construída.
Em outras palavras, captar uma referência, perceber a Gestalt de uma história e criar uma cena mental ativam exatamente a mesma parte do cérebro. (Para os que gostam de exatidão: essa parte é o hipocampo do hemisfério direito, responsável tanto por estabelecer correlações entre percepção e memória quanto por gerar representações espaciais.) Ou seja, se forem bem trabalhadas, as referências não só não interrompem o sonho ficcional como, pelo contrário, contribuem para reforçá-lo.
E Octavio Aragão maneja as referências com mão de mestre.
Um dos motivos pelos quais o romance funciona tão bem é o ritmo vertiginoso da narrativa. Todo esse papo de “intertextualidade”, “metaficção” e o caramba a quatro pode dar a impressão de que A Mão Que Cria é um exercício de punhetagem intelectual, mas basta o primeiro parágrafo do prólogo para dissipar o equívoco:
Quatro homens morreram sem saber o que acontecia. A lâmina desceu de algum ponto das sombras e degolou-os em dois movimentos. Um semicírculo à direita, outro à esquerda. Morreram em silêncio, respeitando a catedral de Notre Dame.
Não conheço nenhum outro autor na ficção científica brasileira capaz de descrever tão bem cenas de ação, combinando uma economia espartana de meios com uma capacidade de visualização que, em alguns momentos, chega a adquirir intensidades quase alucinatórias. É bater o olho nas primeiras linhas para entrar num turbilhão que nos arrasta por quase um século de história, com idas e vindas no tempo e uma proliferação de tramas que, no início, causam uma sensação desorientadora de estranhamento. Mas o estranhamento é estratégico e, aos poucos, à medida que as peças do mosaico vão se encaixando, adquirem sentido e formam a Gestalt da história: o confronto entre as forças desencadeadas por duas criaturas super-humanas que, devotos de São Teófilo, decidiram tomar o destino nas mãos e moldar o mundo a sua imagem e semelhança.
Deles é a mão que pune.
De Octavio Aragão é a mão que cria.
O primeiro deles é McHale, Brian McHale (está escrito na plaqueta), que, em Postmodernist Fiction, lança uma tese curiosa – a de que a literatura modernista está para o pós-modernismo assim como o romance policial está para a ficção científica. Segundo McHale, tanto o romance policial quanto o modernismo se concentram em questões epistemológicas ou, mais exatamente, em uma questão epistemológica (por acaso, a mesma formulada por Pilatos há dois mil anos): que é a verdade? Como podemos determiná-la? E, mais importante ainda, é possível determinar o que é a verdade? Se o detetive clássico, sherlockpoirotiano, sempre respondia a essa pergunta com um sim triufante (da mesma forma que o romancista do sec. XIX estava crente de ter apresentado um retrato fiel e objetivo da realidade), o modernismo de um lado e o romance noir do outro trataram de problematizar essa certeza ingênua, enterrando a verdade sob uma camada grossa e praticamente impenetrável de distorções subjetivas. Mas nem Faulkner, nem Chandler jamais questionaram que existe uma verdade objetiva, uma boa e sólida realidade concreta, por detrás de todas as distorções.
É esse questionamento que marca a guinada pós-modernista. A partir de Beckett (que McHale considera um autor de transição entre os dois períodos), o eixo se desloca da epistemologia para o terreno ontológico. Contrariando o lema de Mulder, a verdade não está lá fora, esperando ser desvendada ou escapulindo das nossas tentativas de desvendá-la. O mundo torna-se algo que precisa ser criado. O autor deixa de ser um detetive para se converter num demiurgo, e a escrita, em vez de ser um instrumento de decifração, passa a ser uma ferramenta de construção da realidade. O romance policial não serve mais como parâmetro para esse tipo de literatura. O pós-modernismo precisa de um novo paradigma, e McHale vai buscá-lo na ficção científica, com sua ênfase no world building e no what if como plot devices – tá, três anglicismos numa talagada só é uma espécie de recorde negativo, mas que culpa tenho eu se essas expressões costumam ser empregadas em inglês?
O leitor mais atento vai observar que, em última análise, toda obra de ficção (científica, não-científica, clássica, modernista, pós-modernista e o diabo a quatro) é sempre uma realidade construída pelo autor. Mesmo quando o romance proclama aos quatro ventos que foi Inspirado em Fatos Reais, como aqueles filmes que costumam passar na Sessão da Tarde. Mesmo que o escritor seja tão hiperdetalhista que não se esquive nem de descrever o cheiro da bosta dos cavalos nas ruas de Dublin num 16 de junho do século passado. Na melhor das hipóteses, trata-se de um simulacro da bosta dos cavalos, um simulacro que só existe nas e pelas palavras do autor. A ficção é sempre e necessariamente um ato de world building, e se McHale está certo em apontar o world building como a característica essencial da ficção científica, então um certo autor que nos concerne de perto aqui está coberto de razão quando diz que tudo é ficção científica. Mas, por outro lado, isso cria um problema: nesse caso, o que é que distingue a literatura pós-moderna das demais? O que nos traz ao segundo crítico que eu queria citar.
Não foi Patricia Waugh quem criou o termo metaficção. O mérito cabe ao romancista norte-americano William H. Gass, em um ensaio do início da década de 70. Mas foi Waugh quem se dedicou a explorar consistentemente o conceito e suas implicações, e Metafiction – The Theory and Practices of Self-Conscious Fiction ainda é o livro de referência sobre o assunto, aquele a que todo mundo recorre, cita e mete o cacete quando acha que essa coisa de “metaficção” já deu o que tinha que dar.
Eu não acho.
Como o subtítulo do livro já entrega, metaficção é uma obra que se assume como ficção. Todo escritor paira sobre o tohu-va-bohu da página em branco e cria seu próprio mundo, geralmente com retalhos de outras obras que o influenciaram (repito, porque é importante: geralmente com retalhos de outras obras que o influenciaram). Mas, dentro do paradigma da ficção realista, ele é obrigado, ou se obriga, a fingir que não. É um mundo de faz-de-conta, mas o autor faz de conta que é o mundo. Todos os esforços são envidados para dissimular o caráter factício da criação literária, a fim de gerar o que Coleridge chamava de “suspensão voluntária da descrença” – a boa vontade do leitor em fingir que acredita no que tanto ele quanto o autor sabem que não passa de um simulacro feito de palavras.
Existe um motivo para essa dissimulação consentida, claro. É ela que permite ao leitor projetar elementos de sua própria psique sobre as estruturas narrativas e identificar aspectos inconscientes de si mesmo com os personagens, o que é um dos principais motivos pelos quais a ficção (sob qualquer forma ou veículo) ocupa um papel tão importante na vida das pessoas. Isso já está implícito na própria palavra grega para “entretenimento”, psicagogia, que, cacófatos à parte, quer dizer literalmente “o que conduz a alma”.
Mas alguns autores começaram a se perguntar se esse pacto – que o escritor e teórico John Gardner chamava de sonho ficcional – é a única maneira possível de “conduzir a alma” por meio da ficção. Gardner era irredutível em sua convicção, compartilhada por um bocado de gente que ganha a vida escrevendo, de que fazer o leitor se lembrar de que está lendo uma obra de ficção quebra o sonho ficcional e expulsa o cabra para fora da história, mais ou menos como perceber que se está sonhando costuma fazer o sujeito acordar, frustrado. Mas existe um tipo de sonho, os sonhos lúcidos, em que a pessoa sabe que está sonhando e, mesmo assim, continua a sonhar. E os sonhadores lúcidos garantem que é uma experiência muito mais interessante e enriquecedora do que o sonho convencional, que se faz passar pela realidade. No budismo tibetano, inclusive, é uma das técnicas usadas para conduzir à iluminação, fazendo-nos perceber que o mundo mesmo não passa de um sonho ilusório.
Pois a metaficção é o equivalente literário dos sonhos lúcidos: “Metaficção”, diz Waugh, “é um termo atribuído à escrita ficcional que, de modo autoconsciente e sistemático, chama atenção para seu status como artefato, a fim de questionar a relação entre ficção e realidade. Ao apresentar uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritos não só examinam as estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também exploram a possível ficcionalidade do mundo fora do texto literário ficcional.”
Meu coração phildickiano bate feliz quando lê coisas como essa.
Para atingir esse objetivo, os metaficcionistas criaram ou deglutiram todo um arsenal de técnicas, a maioria das quais baseada na metalinguagem. Não vou fazer um inventório de todas, porque foi para isso que Waugh escreveu um livro inteiro. Mas quatro delas são particularmente importantes para o nosso tema (que, caso você já tenha esquecido, é o primeiro romance de Octavio Aragão, A Mão Que Cria): a intertextualidade, a mistura de personagens reais e fictícios, a paródia (ou pastiche) e o uso de formas “populares” (quadrinhos, romance policial, ficção científica, etc).
Intertextualidade é um palavrão que os críticos adoram e sempre mencionam com um ar de reverência transcendental. Mas o significado é muito simples: é quando uma obra cita ou emprega personagens, cenários e situações de outra. Tem esse nome porque, com isso, cria-se um diálogo entre os textos.
Paródia e pastiche não são exatamente a mesma coisa, mas quase. Em ambos os casos, trata-se de uma imitação consciente e deliberada de um outro autor, de um estilo, das convenções de um gênero ou de um repertório específico de imagens. A diferença é que o pastiche é quase sempre escrito como uma homenagem, enquanto a paródia tem intenções críticas ou satíricas. Quer dizer, a paródia tem um viés irônico, muitas vezes sarcástico, que está ausente do pastiche. Mas, na prática, nem sempre é fácil distinguir um do outro, e paródia e pastiche volta e meia se misturam numa alegre hibridização carnavalesca.
Um caveat importante: na linguagem coloquial, costumamos empregar “paródia” e “pastiche” num sentido pejorativo. No universo da crítica, porém, são duas técnicas importantes, centrais mesmo na prática da literatura modernista e pós-modernista. Para se ter uma idéia, os capítulos de Ulysses são pastiches de diferentes estilos literários, e os romances de Thomas Pynchon são todos paródias. De fato, boa parte da literatura contemporânea é feita de pastiches e paródias, muitas vezes de gêneros literários que os críticos de nariz empinado costumam classificar como “menores” – policial, terror e nossa tão vilipendiada ficção científica. Como de vez em quando até existe justiça no mundo, uma das consequências desses pastiches foi obrigar os críticos a olharem esses gêneros mais de perto, fazendo com que alguns deles – não todos (só os mais inteligentes) – percebessem que não existe nada de “menor” nessas formas de literatura.
A mistura de personagens reais e fictícios é a mistura de personagens reais e fictícios.
Metaficção é um conceito que se mostrou bastante útil para se pensar uma parte significativa da literatura contemporânea. Mas, sendo a cabeça dos críticos como é, toda movida por operadores binários (se a então não-b), logo se caiu num dualismo simplório entre, de um lado, obras metaficcionais autoconscientes e, do outro, narrativas realistas, preocupadas em contar uma história e fazer um comentário relevante sobre o mundo. Se um autor fazia parte do primeiro grupo, necessariamente estava excluído do segundo, e vice-versa. Foi quando nossa terceira crítica, Susan Strehle, levantou-se indignada, mandando parar com a putaria. Em Fiction in the Quantum Universe, Strehle lista uma série de autores claramente identificados pelos críticos como “pós-modernistas” – capitaneados por Thomas Pynchon e Donald Barthelme – e que, no entanto, não se deixam reduzir à bitola estreita que opõe a metaficção ao sonho ficcional: “Rompendo a dualidade falsa e restritiva entre realismo e anti-realismo, esses autores pós-modernos conseguem obter uma fusão original que transforma ambas as linhagens de sua herança literária.”
Strehle segue argumentando que a ficção pós-modernista procura aderir a uma concepção da realidade mais compatível com a visão de mundo produzida pela física contemporânea, uma tese interessante que ela desenvolve com altos e baixos, mas que não tem rigorosamente nada a ver com o peixe que estamos vendendo, de modo que, coitada, a participação dela acaba por aqui.
Finalmente, Foucault.
Eu sei, eu sei, eu sei. Foucault é um dos mela-cuecas dos pós-modernetes que eu prometi deixar de fora. Juro que fiz o possível para manter os pós-estruturalistas bem afastados destas maltraçadas, mas o que eu posso fazer? Esses malditos franceses são insidiosos e têm um jeito todo próprio de se insinuar subrepticiamente, feito um nevoeiro (que é como T. S. Eliot descrevia o estilo pré-pós-estruturalista de Montaigne, que levava Pascal à loucura).
E o que Foucault insinua subrepticiamente – feito um nevoeiro, pois não? – são as heterotopias. Numa definição sucinta, as heterotopias são espaços, reais ou imaginários, que justapõem elementos normalmente considerados incongruentes ou onde diferentes planos de realidade convergem sem nenhum tipo de ordenação hierárquica. Por exemplo, um romance no qual personagens reais e fictícios convivem lado a lado é uma heterotopia. Uma história que reúne personagens provenientes de diversas obras criadas por autores diversos, mais ainda. As heterotopias literárias normalmente se passam em um tempo e espaço míticos, e Foucault insinua que talvez o próprio mito possa ser considerado como uma heterotopia primordial, do tipo que ele classifica (por razões que não vêm ao caso, mas que são de ordem iniciática) como heterotopias de crise. Na literatura brasileira, a heterotopia por excelência é o Sítio do Picapau Amarelo, que apresenta todas essas características ao mesmo tempo.
Dois pontos que Foucault levanta são particularmente interessantes para nós. O primeiro é que ele opõe as heterotopias explicitamente às utopias e implicitamente às distopias, “posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa”. Elas são “a própria sociedade aperfeiçoada” (ou piorada, no caso das distopias) ou “o inverso da sociedade”. Já com as heterotopias, percebe-se, o buraco é mais embaixo e a relação com o suposto mundo real não é simétrica. Em vez de apenas amplificar ou reverter as representações que fazemos do mundo, a heterotopia desarticula seus elementos e os insere numa configuração totalmente nova. Fosse Foucault um alquimista e poderia dizer que a heterotopia solve et coagula.
Eu falei “suposto mundo real”, e não foi por acaso. Porque o segundo traço das heterotopias, que nos conduz direto e reto de volta à metaficção, é seu “papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada”.
Tá certo, dirá o leitor impaciente, tudo isto é muito bacana (ou não), mas quando é que você vai chegar ao que realmente interessa? Quando é que vai começar a falar sobre A Mão Que Cria? Bem, talvez seja hora de uma pequena confissão. Eu menti quando disse que pretendia fazer um exercício de name dropping. Seria mais correto dizer que foi um exercício de name undropping. Porque a verdade é que, até agora, enquanto fingia estar falando de McHale, Waugh e Strehle (e Foucault, que acabou entrando como Pilatos no Credo), não fiz outra coisa senão falar sobre A Mão Que Cria.
Se você leu o livro, e sendo o cara esperto que é, já deve ter percebido isso. Se não leu, está esperando o quê, menino? Vá ler já! Depois, não quero ninguém reclamando de spoilers!
Porque, sim, spoilers haverá e, para discutir o princípio de composição do livro, é preciso entregar de cara seu maior segredo, um segredo tão ominoso que o próprio autor se furta a declará-lo, limitando-se a apontar para ele por meio de alusões veladas e referências indiretas. E o segredo é simplesmente este: Octavio Aragão é um pseudônimo. Por trás dele, esconde-se a figura inominável do dr. Victor Frankenstein.
Todo mundo conhece a história. É um dos mitos de criação da (pós-)modernidade. Conta como o dr. Frankenstein criou uma nova vida reunindo e costurando pedaços de outros corpos, ressuscitando-os com a poderosa centelha de um relâmpago criador. Pois foi exatamente assim que Aragão construiu seu romance: com fragmentos de outras histórias, personagens descontextualizados, recontextualizados e animados por uma centelha criadora que os trouxe novamente à vida e que – com a devida vênia a Barthes e Foucault, cuja genialidade não os impedia de eventualmente mijar fora do penico – só se pode chamar de autoral.
E aqui temos, de uma pernada só, todos os conceitos que introduzi no início desta (im)pensata. A Mão que Cria é um romance de ficção científica pós-moderno que empreende a construção de um espaço (world building) composto pela reunião de elementos heterogêneos (heterotopia) e que se assume, da primeira à última página, como uma obra de ficção autoconsciente (metaficção). Escrito num registro que oscila entre a paródia e o pastiche (repetindo, para não deixar margem a dúvidas: no sentido técnico desses termos, sem nenhuma conotação pejorativa, muito pelo contrário), recruta seu elenco nos grandes clássicos da ficção científica e da aventura, especialmente do século XIX e primeira metade do século XX, com eventuais empréstimos de outros gêneros e linguagens – há, por exemplo, uma horda de zumbis que migraram dos filmes de George Romero diretamente para as páginas do livro. Dessa forma, a galeria de personagens – às vezes com seu próprio nome, às vezes disfarçados, outras vezes substituídos por um duplo (como o filho de Axel Liddenbrock, o protagonista de Viagem ao Centro da Terra, de Verne) – forma um verdadeiro quem-é-quem da cultura pop. A intertextualidade é o princípio de composição e o eixo estruturante de A Mão Que Cria, que dialoga não só com outros textos, mas também com a História-com-H-maiúsculo, aquela que fomos condicionados a acreditar que se opõe a ficção. Em consequência, a realidade consensual é profundamente desestabilizada pela inserção de elementos ficcionais.
Mais do que um ponto de divergência, a eleição de Júlio Verne como primeiro presidente da França em 1886 é emblemática da proposta do livro. Verne, H. G. Wells e Mary Shelley foram os primeiros autores de ficção científica propriamente dita e formam as coordenadas de A Mão Que Cria. Foucault fez a gentileza de nos informar que as heterotopias se opõem tanto às utopias quanto às distopias, e é disso mesmo que trata o romance: o universo heterotópico de A Mão Que Cria dramatiza o conflito entre as utopias tecnológicas de Verne e as distopias científicas de Wells (especialmente A Ilha do dr. Moreau), com a sombra de Mary Shelley pairando nas entrelinhas, como um espectro rondando as páginas do livro. Haveria muito o que dizer sobre esse espectro, mas não vou falar nada porque, afinal, spoilers têm limite.
Estilisticamente, Octavio Aragão filia-se àquele time de autores mencionados por Strehle e que apostam todas as suas fichas na convicção de que é possível fazer metaficção sem romper com o sonho ficcional. No caso de Aragão, a aposta é plenamente bem-sucedida.
De acordo com o bitolamento dos críticos, a operação intelectual necessária para decodificar as referências bloquearia a capacidade do leitor de se entregar à suspensão voluntária da descrença, tornando difícil que ele se deixasse absorver pela história. Essa dificuldade seria diretamente proporcional à densidade das referências, gerando uma espécie de buraco negro às avessas: uma vez ultrapassada a massa crítica, em vez de atrair o leitor para dentro de seu universo, a obra o expulsaria violentamente. Com uma metralhadora giratória de referências e citações, explícitas ou implícitas, o leitor de A Mão Que Cria é lembrado praticamente linha a linha de que está lendo uma obra ficcional. Se a equação simplória dos críticos fosse verdadeira, a história não funcionaria nem à base de promessas a Santo Expedito.
E no entanto.
O erro desses críticos – que, como boa parte das pessoas de formação humanista, costumam ser de uma ignorância crassa em matéria de ciências – é achar que a decodificação das referências é uma operação intelectual. Não é. A percepção de semelhanças e a identificação de analogias são funções do hemisfério direito do cérebro. De fato, o reconhecimento de padrões é a base da própria lógica do hemisfério direito. Acontece que é essa mesma capacidade de reconhecer padrões que transforma uma coleção de fatos atomizados em uma história, uma estrutura narrativa. Experiências de EEG mostram que, quando uma pessoa lê uma história, a atividade do hemisfério direito se intensifica e, reciprocamente, uma das habilidades comprometidas por uma lesão no hemisfério direito é a capacidade de compreender narrativas.
Além disso, o que John Gardner chamou de sonho ficcional, traduzido em linguagem de gente, quer dizer que o cérebro do leitor traduz o que está lendo em uma série de imagens que se desenrolam como um filme na cabeça dele. Puxando a sardinha para a minha brasa, o texto escrito funciona como um roteiro, uma série de instruções que o cérebro usa para gerar uma representação espacial, uma cena. E ganha um doce quem adivinhar em que parte do cérebro essa cena é construída.
Em outras palavras, captar uma referência, perceber a Gestalt de uma história e criar uma cena mental ativam exatamente a mesma parte do cérebro. (Para os que gostam de exatidão: essa parte é o hipocampo do hemisfério direito, responsável tanto por estabelecer correlações entre percepção e memória quanto por gerar representações espaciais.) Ou seja, se forem bem trabalhadas, as referências não só não interrompem o sonho ficcional como, pelo contrário, contribuem para reforçá-lo.
E Octavio Aragão maneja as referências com mão de mestre.
Um dos motivos pelos quais o romance funciona tão bem é o ritmo vertiginoso da narrativa. Todo esse papo de “intertextualidade”, “metaficção” e o caramba a quatro pode dar a impressão de que A Mão Que Cria é um exercício de punhetagem intelectual, mas basta o primeiro parágrafo do prólogo para dissipar o equívoco:
Quatro homens morreram sem saber o que acontecia. A lâmina desceu de algum ponto das sombras e degolou-os em dois movimentos. Um semicírculo à direita, outro à esquerda. Morreram em silêncio, respeitando a catedral de Notre Dame.
Não conheço nenhum outro autor na ficção científica brasileira capaz de descrever tão bem cenas de ação, combinando uma economia espartana de meios com uma capacidade de visualização que, em alguns momentos, chega a adquirir intensidades quase alucinatórias. É bater o olho nas primeiras linhas para entrar num turbilhão que nos arrasta por quase um século de história, com idas e vindas no tempo e uma proliferação de tramas que, no início, causam uma sensação desorientadora de estranhamento. Mas o estranhamento é estratégico e, aos poucos, à medida que as peças do mosaico vão se encaixando, adquirem sentido e formam a Gestalt da história: o confronto entre as forças desencadeadas por duas criaturas super-humanas que, devotos de São Teófilo, decidiram tomar o destino nas mãos e moldar o mundo a sua imagem e semelhança.
Deles é a mão que pune.
De Octavio Aragão é a mão que cria.
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